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quarta-feira, 27 de abril de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 132


A Cura (uma história verídica)

Cynthia Guimarães Taveira

Num acto de desespero enfrentara a lista telefónica das Páginas Amarelas. Aquela situação não poderia continuar, tinha de resolver os seus problemas de uma vez por todas. Com o coração a bater mais do que o normal, fechou os olhos, esticou o dedo indicador, e percorreu com ele a página que tinha à frente, de cima para baixo e de baixo para cima. Parou ligeiramente a meio. Aí estava o que procurava: uma psicóloga escolhida ao acaso, num jogo entre a falta de visão e o tacto, arbitrado pela coincidência.

Olhou para a morada: não ficava muito longe de sua casa. Telefonou, marcou consulta e respirou fundo. Tinha ganho coragem. Pela primeira vez ia falar com alguém sobre os seus problemas, alguém que tinha estudado e praticado na resolução de dúvidas, hipóteses, questões, medos. Tudo iria correr bem, pensou de si para si.

Chegou enfim o dia. Pelo caminho pensava no que iria dizer. Pensava ser sucinto, não se alongar muito com pormenores: diria que a sua relação com a mãe era um pouco distorcida, causadora de sofrimento e que a sua relação com o irmão, estudante de psicologia, estava a tornar-se demasiado irracional para seu gosto: à medida que avançava no seu Curso, aumentava o número de tareias que levava dele sem motivo lógico aparente. A sua tristeza residia na família. A sua angústia residia no facto de não saber lidar com eles: a distorção da mãe, as tareias do irmão.

Entrou. Sentou-se. Uma senhora magra, de cabelo escuro, perguntou-lhe, no final do preenchimento de uma longa ficha: -- Então. O que se passa?

Respondeu com palavras breves, procurando esconder a mágoa. Queria saber, no fundo, porque não conseguia lidar com os outros e porque é que um sentimento de culpa do tamanho do céu o acompanhava desde o nascer do dia ao seu término.

A senhora psicóloga sorriu. Um sorriso calmo que o fez sentir bem. Depois disse:

- Em relação à sua mãe, vai ter de a pôr num lar, mais cedo ou mais tarde. Mas diga-me, o que faz?

- Por enquanto estudo na Faculdade.

Disse-lhe o Curso, o nome da Faculdade e eis que a doutora se abre, agitada, pergunta-lhe o nome dos professores. Pacientemente, ele lhe vai respondendo, ao que ela, com alguma emoção na voz, reage a alguns nomes, dizendo que os conhece, de onde os conhece, o que fizeram juntos.

A senhora não se calava, começando a dizer que estava ainda a resolver alguns problemas.

- Alguns muito antigos, sabe -. disse ela, fazendo uma cara misteriosa. - Estudei em Évora, tirei lá um mestrado, mas não me entendi com aquela terra, nem com os professores, nem com o reitor da universidade. Havia algo ali que não entendia e que não se dava comigo, sabe?

Acenava, compreensivo, com a cabeça. Procurava dentro de si algumas palavras que a sossegassem e eis que por fim, a psicóloga agitada lança as últimas verificações:

- Sabe, vim a descobrir porque é que não me sentia bem naquela cidade. Eu fui lá queimada por bruxaria no tempo da Inquisição, numa outra vida. E ainda não resolvi essa questão.

Engoliu em seco, fez um sorriso tímido e meio receoso e respondeu:

- Com o tempo, talvez com o tempo isso passe.

Saiu do consultório e respirou o ar fresco da Primavera. Sentia a sua cabeça muito mais leve do que quando entrou no consultório. Pensou de si para si que não tinha problema nenhum à vista do que tinha presenciado.

Mas ficaram marcas da consulta: nunca internou a mãe num lar, por ser desumano, ao irmão considera-o patológico e hoje, sempre que conhece um psicólogo ou psicóloga, sente-se extremamente bem. Leve mesmo, diria. Como se não tivesse problema nenhum. Nem angústia, nem culpa, nem dúvidas. Gozava de uma saúde mental perfeita. Estava curado.

2 comentários:

  1. Esta história exemplar salienta um aspecto de uma outra «face oculta» de que raramente se fala -- a de que não estamos nada bem da cabeça. Nem do coração, aliás.

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  2. E assim é meus queridos, não é por nada que o deus dos terapeutas, sejam médicos,sejam psicólogos, é Esculápio ou Asclépio, o Curador Ferido que cura por causa de sua ferida!Curamos muito mais pelo que somos do que pelo que falamos.
    Abraços do Brasil

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