Num acto de desespero enfrentara a lista telefónica das Páginas Amarelas. Aquela situação não poderia continuar, tinha de resolver os seus problemas de uma vez por todas. Com o coração a bater mais do que o normal, fechou os olhos, esticou o dedo indicador, e percorreu com ele a página que tinha à frente, de cima para baixo e de baixo para cima. Parou ligeiramente a meio. Aí estava o que procurava: uma psicóloga escolhida ao acaso, num jogo entre a falta de visão e o tacto, arbitrado pela coincidência.
Olhou para a morada: não ficava muito longe de sua casa. Telefonou, marcou consulta e respirou fundo. Tinha ganho coragem. Pela primeira vez ia falar com alguém sobre os seus problemas, alguém que tinha estudado e praticado na resolução de dúvidas, hipóteses, questões, medos. Tudo iria correr bem, pensou de si para si.
Chegou enfim o dia. Pelo caminho pensava no que iria dizer. Pensava ser sucinto, não se alongar muito com pormenores: diria que a sua relação com a mãe era um pouco distorcida, causadora de sofrimento e que a sua relação com o irmão, estudante de psicologia, estava a tornar-se demasiado irracional para seu gosto: à medida que avançava no seu Curso, aumentava o número de tareias que levava dele sem motivo lógico aparente. A sua tristeza residia na família. A sua angústia residia no facto de não saber lidar com eles: a distorção da mãe, as tareias do irmão.
Entrou. Sentou-se. Uma senhora magra, de cabelo escuro, perguntou-lhe, no final do preenchimento de uma longa ficha: -- Então. O que se passa?
Respondeu com palavras breves, procurando esconder a mágoa. Queria saber, no fundo, porque não conseguia lidar com os outros e porque é que um sentimento de culpa do tamanho do céu o acompanhava desde o nascer do dia ao seu término.
A senhora psicóloga sorriu. Um sorriso calmo que o fez sentir bem. Depois disse:
- Em relação à sua mãe, vai ter de a pôr num lar, mais cedo ou mais tarde. Mas diga-me, o que faz?
- Por enquanto estudo na Faculdade.
Disse-lhe o Curso, o nome da Faculdade e eis que a doutora se abre, agitada, pergunta-lhe o nome dos professores. Pacientemente, ele lhe vai respondendo, ao que ela, com alguma emoção na voz, reage a alguns nomes, dizendo que os conhece, de onde os conhece, o que fizeram juntos.
A senhora não se calava, começando a dizer que estava ainda a resolver alguns problemas.
- Alguns muito antigos, sabe -. disse ela, fazendo uma cara misteriosa. - Estudei em Évora, tirei lá um mestrado, mas não me entendi com aquela terra, nem com os professores, nem com o reitor da universidade. Havia algo ali que não entendia e que não se dava comigo, sabe?
Acenava, compreensivo, com a cabeça. Procurava dentro de si algumas palavras que a sossegassem e eis que por fim, a psicóloga agitada lança as últimas verificações:
- Sabe, vim a descobrir porque é que não me sentia bem naquela cidade. Eu fui lá queimada por bruxaria no tempo da Inquisição, numa outra vida. E ainda não resolvi essa questão.
Engoliu em seco, fez um sorriso tímido e meio receoso e respondeu:
- Com o tempo, talvez com o tempo isso passe.
Saiu do consultório e respirou o ar fresco da Primavera. Sentia a sua cabeça muito mais leve do que quando entrou no consultório. Pensou de si para si que não tinha problema nenhum à vista do que tinha presenciado.
Mas ficaram marcas da consulta: nunca internou a mãe num lar, por ser desumano, ao irmão considera-o patológico e hoje, sempre que conhece um psicólogo ou psicóloga, sente-se extremamente bem. Leve mesmo, diria. Como se não tivesse problema nenhum. Nem angústia, nem culpa, nem dúvidas. Gozava de uma saúde mental perfeita. Estava curado.
Esta história exemplar salienta um aspecto de uma outra «face oculta» de que raramente se fala -- a de que não estamos nada bem da cabeça. Nem do coração, aliás.
ResponderEliminarE assim é meus queridos, não é por nada que o deus dos terapeutas, sejam médicos,sejam psicólogos, é Esculápio ou Asclépio, o Curador Ferido que cura por causa de sua ferida!Curamos muito mais pelo que somos do que pelo que falamos.
ResponderEliminarAbraços do Brasil