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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 16 de março de 2011

LANCES E RELANCES, 1



A arte de conversar e o sentimento da natureza no pensamento português
(a propósito de um sismo)

Eduardo Aroso


Um sismo deve fazer-nos cismar. Os recentes e chocantes acontecimentos verificados no Japão não podem deixar de nos levar de novo à reflexão sobre a relação do Homem com a Natureza. Sendo certo que variados são os modos pelos quais podemos abordar o assunto, importa-nos, como é de esperar, tocar aquele ponto onde o ser humano deve encarar a “mãe cósmica” como ente, ao contrário de a tomar enquanto meio utilitário, tão ao gosto do materialismo, mesmo que disfarçado de melosas justificações em nome do progresso.
O sucedido, nestes dias de Março, antecedendo mais uma Primavera que se espera seja também nas consciências, e que convergiu catastroficamente numa explosão nuclear, fará, por certo, com que a alma humana se torne mais contrita para uma sincera interrogação. Se a história da escravidão humana é deveras tenebrosa - seja qual for o campo de observação, marca de uma humanidade ainda no percurso que aspira à luz -, quando um dia se escrever a história da escravidão a que o Homem tem sujeitado a Natureza, estaremos então no átrio de um novo Génesis.
A referida catástrofe levou-nos a meditar em duas realidades do pensamento português, aparentemente desligadas, mas de facto entranhadas num lusismo galaico-atlântico e ainda de certas maresias mediterrânicas. Uma delas, citada numa das cartas de António Telmo a Pedro Sinde, refere-se à arte de conversar; a outra é a do nosso proverbial sentimento da Natureza, se exceptuarmos certo furor municipalista hodierno e muito especialmente turístico, de a sujeitar a caprichos vários em nome do progresso. Mas como é que o gosto de conversar e uma particular e íntima comunhão com a Natureza podem estar entrelaçados?
Sobre a carta de António Telmo a Pedro Sinde, lemos o seguinte excerto: «Não sei se o Pedro já reparou em que os nossos grandes poetas e filósofos se caracterizam, por um dos seus lados, pelo prazer de conversar» (…) Todavia, estamos sozinhos. O lugar do diálogo é nas montanhas. 27-04-2008». Recorde-se que o prazer de conversar, muito provavelmente resultante da necessidade do movimento do pensamento, herdámo-lo da Grécia antiga, no passeio do mestre e do discípulo. Ele faz descobrir calendários e relógios diferentes. Aqui é caso para perguntar se é (também) esta a dimensão que Pessoa atribui ao derradeiro verso de Mensagem «É a hora». Seria ainda o mesmo relógio que Agostinho da Silva olhava para dizer que «o tempo dá-o Deus de graça»?
Quando o filósofo de Estremoz remata a carta dizendo «todavia, estamos sozinhos. O lugar do diálogo é nas montanhas» só pode significar a solidão do homem contemporâneo perante a Natureza interior, pois, no que respeita à exterior, sabemos nós a ênfase com que a ela se agarra não a podendo ter, mutilando-a, plastificando-a, ou incutindo-lhe horrorosas excrescências. E já que falámos do Japão, não sabemos que relação haverá entre tudo isto e a oposição entre a chamada «tecnologia de ponta» nipónica e a sua quase veneração da tradição e da família. Em Portugal, os guias dos monumentos sabem que o maior número de visitantes estrangeiros orientais é japonês, e quanto mais antigo o monumento, mais isso se observa.
Para além do que se pode especular quanto às forças da natureza sob a forma de catástrofes como reflexo de desajustado viver humano, tanto quanto sabemos, pela primeira vez na História, nos recentes acontecimentos do Japão estamos perante o efeito directo e imediato de uma força imensa da Terra que também faz explodir um reactor nuclear com terríveis consequências. Este é um ponto de ruptura onde cabe a já conhecida expressão «cisão extrema» aplicada aqui ao ser humano no seu meio ambiente natural, fruto de uma relação interior e exterior cada vez mais desajustada. A lucidez de Sampaio Bruno levou-o por certo a enfatizar uma vivência titânica e essencial do homem com o homem, mas também deste com e para a Natureza.
O nazismo e o comunismo, por exemplo, foram no campo social e político uma cisão extrema onde podemos encontrar certa correspondência com uma filosofia sem Deus, isto é, em que a razão ao invés de ser a «razão animada» como pretende Álvaro Ribeiro, se transforma numa razão fora de toda a alma, esteja ela num país ou espalhada por várias culturas, ébrias todavia do mesmo mórbido materialismo.
Naquele jeito de Frei Agostinho da Cruz, nas suas belas e caridosas palavras «Verei o Criador nas criaturas», Portugal só se pode agarrar à Natureza, seja pelo lado de fora, seja pelo lado de dentro. À cor azul do mar atlântico que espelha o céu, no dizer do poeta, corresponde uma outra, a do centro do mundo, para a qual também sempre nos movemos. À mais antiga nação da finisterra, ao invés da cisão da terra e do mar, nesta «nesga de terra debruada» coube-lhe a sorte ou o Fado de ser lugar ou leito do sonho. «Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse». Guarde-nos o Arcanjo de funestas cisões entre nós e a mãe-natureza, para que brilhem ainda, no azul exterior do céu e no interior do mistério, os versos de Pessoa, como se quisessem dizer-nos que o nosso pensar-agir é o de unir Homem e Natureza, o Homem com o seu irmão, em espírito fraterno de «vida conversável».

Quase equinócio da Primavera de 2011
Eduardo Aroso

1 comentário:

  1. Escolhi a fotografia do leão Christian porque mostra bem que somos nós que moldamos a natureza à nossa imagem e semelhança. Deveria haver uma relação de amor com a natureza e esta, de certeza, nos amaria, como este leão que deixa de ser fera para se tornar num companheiro. O tempo em que "os animais falavam" era um tempo em que conseguamos comunicar com eles e com a natureza. A natureza está sempre a dialogar connosco, nós é que já não a sabemos escutar, e ela assim, pode fazer-se ouvir da pior maneira. Se nos harmonizarmos com ela esta tornar-se-á mais harmoniosa. Esta sabedoria vem na Biblía, não é nada de novo. Os próprios japoneses sabem disso porque a sua religião oficial é, no fundo, um animismo intenso, onde homem e natureza só fazem sentido juntos. Quando se quebra esse laço, quebra-se o sentido da própria vida, e até mesmo, o destino da vida em si. Obrigada pelo textinho. Muito interessante.

    Saudações da Cynthia

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