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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 26 de agosto de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 81

António Telmo
Isabel Xavier

Acabara de arrumar uma caixa de fotografias quando reparei que separara duas delas: uma do meu pai, a última a ser-lhe tirada antes de morrer (alguns dias antes, apenas); a outra de António Telmo, de quando veio às Caldas lançar o livro de poemas Catedral, de que sou autora. Agarrei em duas molduras que tinha em casa: coloquei as fotografias nas molduras e coloquei as molduras lado a lado, sobre um móvel da sala.
Só então tomei consciência do que estava fazendo: juntando a imagem do meu pai (já falecido) à de António Telmo. Senti uma inquietação, o coração acelerou-se no meu peito, como se tivesse aí acabado de abrir uma ferida que ainda não sarou. Passados dias soube pelos amigos aquilo que as minhas mãos já “sabiam” e me haviam “dito” quando executaram aqueles gestos: António Telmo estava muito doente.
Agora voltei a ficar órfã. É assim que me sinto e a dor é tão funda que ainda não sou capaz de falar do António Telmo sem falar de mim, sem falar do que sinto, sem conjugar os verbos na primeira pessoa do singular. Mas sei que alguma vez deixará de ser assim.
Para mim, os lutos duram, as lágrimas ainda me hão-de correr pelo rosto muitos dias. Mas também serei capaz de sorrir quando me lembrar de como ríamos os dois facilmente, de como António Telmo me disse graças até à última vez que conversámos ao telefone (“Não desligue, Isabel! Gosto tanto de a ouvir, de ouvir o tom da sua voz!” dizia-me após um longo ataque de tosse).
Então eu contava-lhe o que andava fazendo. Contava-lhe que retirara de casa muitas coisas: móveis, objectos de toda a ordem e que lá estavam a mais; contava-lhe que assim tinha muito mais espaço… E o António Telmo, maroto, numa alusão à tendência de simpatia ou conversão ao Islamismo que alguns amigos vinham manifestando ultimamente: “Tenha cuidado, Isabel. Veja lá se isso é apenas o começo de um processo e qualquer dia fica só com tapetes em casa, também…” E ria, ria, e eu acompanhava-o nesse riso. E isto passou-se dois dias antes de eu partir para Estremoz para velar e sepultar o seu corpo, que a mão amiga da morte quis libertar do sofrimento que tão estoicamente, tão heroicamente, viveu. Um exemplo até ao fim.
Ainda bem que a Vida me fez conhecer, conviver e aprender com António Telmo. Ainda bem que ele quis que eu o acompanhasse nos seus últimos dias na Terra deste modo tão caloroso e amigo.
Vejo agora que, no ano passado, no poema que escrevi saudando o António Telmo pelos seus 82 anos, os verbos estão conjugados na primeira pessoa do plural: ainda bem! Vamos ser nós, os amigos, a valermo-nos uns aos outros! (“Quem é que a Isabel acha que são verdadeiramente os meus amigos?”)

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