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domingo, 24 de outubro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 45



António Carlos Carvalho

«O futuro é tão incerto que a mais pequena linha que possamos hoje publicar é uma vitória arrancada aos poderes das trevas» -- escrevia Walter Benjamin ao seu amigo Gershom Scholem em 11 de Janeiro de 1940.

Cito esta frase terrível porque é completamente actual e urgente: também para nós o futuro é incerto e qualquer frase que possamos publicar nos dias de hoje continua a ser uma vitória sobre os poderes das trevas que estão à nossa volta, hoje como há setenta anos. E quando é tão difícil publicar ideias em livro, um blogue como este torna-se um canal privilegiado para esse fim. (Por isso mesmo continuo a estranhar que sejamos tão poucos a colaborar nele -- como se ainda não tivéssemos percebido a importância deste espaço neste tempo…)

Cito também esta frase de Benjamin porque acaba de sair a tradução de mais um volume, o quarto, das obras escolhidas desta figura fundamental do nosso tempo: «O Anjo da História», publicado pela Assírio & Alvim, com edição e tradução de João Barrento. (Antes foram publicados «Origem do Drama Trágico Alemão», «Imagens de Pensamento» e «A Modernidade»).

Este quarto volume reúne precisamente um conjunto de textos do pensador alemão acerca da sua visão muito particular da História, nomeadamente «Sobre o conceito da História», que aparece geralmente referido como «Teses sobre a filosofia da História». Neste texto, muitas vezes apresentado pelos biógrafos como sendo «o testamento de Benjamin», o autor escreve:

«Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da História deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir de fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos progresso é este vendaval.»

Benjamin adquiriu este desenho aguarelado de Klee em 1921, teve-o consigo sempre que era possível nas suas errâncias, como se fosse o seu anjo tutelar, guardião, sobretudo inspirador. Quis mesmo fazer uma revista com esse título. Deixou-o em testamento a Gershom Scholem (que depois escreveu «Benjamin e o seu anjo») e encontra-se actualmente guardado no Museu de Israel.

Walter Benjamin suicidou-se na noite de 26 para 27 de Setembro de 1940, em Port-Bou, aldeia espanhola junto à fronteira com a França, depois de ter atravessado penosamente os Pirinéus para tentar fugir a uma nova detenção num campo de internamento e a consequente entrega às mãos dos nazis. Perante a ameaça de ser devolvido às autoridades francesas, Benjamin, exausto de forças e de ânimo, pôs termo à vida. No dia seguinte, os outros fugitivos que se encontravam com ele receberam autorização para seguir viagem, em direcção a Lisboa…

Pergunto-me o que poderia ter acontecido se ao menos Benjamin tivesse esperado mais 24 horas -- imagino Benjamin em Lisboa, o que esta cidade lhe teria inspirado (ele que tanto gostava de deambular pelas cidades, como um flâneur experimentado), imagino o que poderia ter sido uma conversa no Martinho da Arcada entre Benjamin e Pessoa -- se Pessoa não tivesse morrido cinco anos antes… Interrogo-me ainda para onde Benjamin teria seguido depois, ele que nunca saíra da Europa…

Walter Benjamin, uma das figuras mais perturbadoras do século XX (e que nos continua a inquietar, se o quisermos e soubermos ler), foi um dos verdadeiros «vencidos da vida» -- e da História. Mas escreveu, escreveu muito.

Como por exemplo:
«Esperamos dos que virão a nascer, não o agradecimento pelas nossas vitórias, mas a rememoração das nossas derrotas. Isto é consolação: a única consolação que pode existir para aqueles que já não têm esperança de consolo».

1 comentário:

  1. Embora nas trevas do presente que nos cobrem diariamente, creio que havendo um Criador ele cuidará das suas criaturas, apesar da nossa rebeldia recalcitrante (assim dizia S. Paulo). Mas isto não nos pode deixar tranquilos quanto ao poder salvífico de Deus. A expressão de Agostinho da Silva é favoravelmente dolorosa «Se o tempo que vivemos for mesquinho, amesquinha o eterno».
    Parece que não queremos ganhar consciência do presente e de um passado mais ou menos recente. Por isso é que – a História tem-no demonstrado –todas as especulações muito encorpadas sobre o futuro, com excepção das proféticas, infelizmente poucas, e talvez das poéticas e outras superiormente inspiradas, são simplesmente a expressão da nossa pequenez limitada ao pensamento lógico-racionalista. O mesmo é dizer que os historiadores dominantes “fazem as suas contas” pelas contas que a economia lhes fornece.

    Obrigado pela informação da tradução de «O Anjo da História» de Walter Benjamin.

    Abraço do Eduardo Aroso

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