(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 119



Educação Moderna

Cynthia Guimarães Taveira

- Pai, onde vamos?
- Vamos ao Museu de Arte Antiga.
Pai e filho caminhavam de mãos dadas naquele Domingo de Sol. Havia um encanto especial na forma como a luz incidia sobre a cidade que parecia deserta.
- Não é bonito, filho, a maneira como o sol bate nas folhas das árvores? Repara, parece que mudam de cor, ficam mais brilhantes, mais vivas do que em dias cinzentos..
- Pai, é como se o sol pintasse as árvores outra vez, não é?
- Agora disseste uma grande verdade, é isso mesmo.
- Pai, o que é que vamos ver?
- Vou mostrar-te como é que pessoas que já morreram há muito tempo pintavam. Vamos ver quadros bonitos.
Subiram as escadas do velho palacete que albergava as obras primas, e, encantado, o menino descobria um mundo passado de telas, óleos. Nessa manhã, descobriu a pintura e os seus efeitos e questionava tudo: quem eram as pessoas que estavam dentro dos quadros, se já tinham morrido. Como é que se pintava antigamente e quais o materiais? O pai, deliciado com o interesse do filho, desdobrava-se em explicações, ele próprio descobria novos ângulos, novos pormenores nas salas que se desdobravam, quentes e acolhedoras.
Pararam em frente aos Painéis e o pai explicou-lhe a importância do quadro e a forma como este representava os portugueses, chamando-lhe a atenção para os detalhes, o cuidado com que havia sido pintado.
- Pai, tens uma caneta?
- Para que é que queres a caneta?
- Para fazer bigodes neles todos.
O pai, deveras espantado com a ousadia do filho, decidiu então sentá-lo em frente ao quadro e explicou-lhe:

- Filho, não podes fazer bigodes no quadro porque ainda és uma criança. As crianças estão no tempo de serem educadas.
- Que é ser educado, pai?
- É sobretudo saber olhar e saber estar com tranquilidade. É saber apreciar o melhor que o mundo tem, é admirar a beleza das coisas: de uma pintura, de uma árvore. É saber sorrir e estar bem, é tratar os outros com cuidado para que não se magoem, é tentar fazer coisas bonitas como os desenhos que fazes lá em casa, é tornar o mundo ainda melhor, mais alegre, mais feliz. Isso é ser educado e tu estás nesse tempo.
- Então se fizer bigodes estou a estragar o quadro, não é?
- De maneira nenhuma, quando puderes fazer bigodes é porque já és grande e responsável, já sabes aquilo que fazes, já não tens de ser educado.
- Então quer dizer que estou preso enquanto for criança?
- Sim, meu filho, só quando fores adulto é que vais descobrir as maravilhas da “liberdade de expressão” e nessa altura vais poder fazer tudo o que quiseres aos quadros: pintá-los por cima, pisá-los, até podes escrever asneiras em cima deles que não faz mal. Também podes pintar os prédios com riscos para toda a gente ver.
O filho ficou calado durante uns momentos, contemplando os Painéis.
- Pai.
- Diz filho.
- Este quadro é bonito?
- Agora, na tua idade, é bonito; quando fores mais velho, não sei. Depois decides quando fores livre.
- Pai.
- Diz, filho.
- A liberdade é bonita?
- A liberdade é a coisa mais bonita que há no mundo.
- Mais bonita que este quadro?
- Mais bonita que este quadro, por isso é que o podes pintar por cima quando fores grande.
- Obrigado, pai, por me teres trazido aqui. Fiquei a saber que a liberdade é a coisa mais bonita do mundo e que um dia vou ser livre.

E abraçou o seu pescoço, dando-lhe o beijo que justifica só por si o facto de ter filhos.

3 comentários:

  1. A arte (em itálico) contemporânea revela alguns problemas. É mais teoria do que manufactura, é mais choque do que resposta, é mais negócio do que arte. Todos querem ascender, mas para isso, é necessário insultar sensibilidades. Estes casos não se prendem com liberdade de expressão, ligam-se sim a técnicas comerciais agressivas que são punidas judicialmente.
    Leiam algumas obras relacionadas com o estranho mundo da arte contemporânea, envolvendo os negociantes de arte mais conceituados do mundo, as casas leiloeiras, os fabricantes de produtos aos quais se põe indiscriminadamente o rótulo de arte, e ficarão a compreender todo o mecanismo estranho que envolve este mundo. A arte desapareceu, foi substituída por produtos ôcos que a evocam.

    ResponderEliminar
  2. Mais nefasto é a educação dada hoje aos estudantes. A sensibilidade educa-se; vai para onde a conduzirmos. Mas há os paradoxos da vida, e apesar deste frenesim por certos tipos de "vanguardismos" , embora eles existam (raramente), há um número razoável de pessoas que contempla arte clássica com uma certa nostalgia, que eu denomino de auto-terapia. Perante tanta desarmonia, falta de rigor, do melhor sentido estético, ausência total de Simbolismo, na maioria da arte contemporânea – ainda que possa ter, nalguns casos, certa imaginação, muitas vezes tresmalhada - o amante da beleza compraz-se na arte onde o equilíbrio existe. Ora se se procura, quase sempre inconscientemente, essa arte, é porque se está doente. É uma enfermidade que existe num mundo de possibilidades mas sem possibilidade de nos redimir pela beleza que o materialismo tem afastado lentamente.
    Que estranho fenómeno é o daqueles que, depois de um dia extenuante de trabalho, na sua maioria não sabendo música, mesmo sem educação musical auditiva, ouvem música de Bach, Vivaldi ou Mozart?

    Eduardo Aroso

    ResponderEliminar
  3. (Continuando o comentário)

    Disse atrás «Ora se se procura, quase sempre inconscientemente, essa arte, é porque se está doente».
    Entenda-se que nem todos o fazem por necessidades terapêuticas imediatas!
    Pelo contrário, os outros, por convicção e aguçada sensibilidade, estão mais saudáveis que nunca!!!

    Eduardo Aroso

    ResponderEliminar