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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 28

António Carlos Carvalho

Há dias, vendo um documentário do canal História sobre a acção de Aristides de Sousa Mendes durante a Segunda Guerra Mundial, salvando cerca de 30 mil refugiados contra tudo e contra todos, veio-me à memória o momento em que tomei conhecimento da existência desse Homem Justo.
Foi há 30 anos. A RTP passava uma série que causou escândalo e controvérsia: «Holocausto». Houve países que proibiram a transmissão da série. Por cá, a série passou sem sobressaltos mas a mim levantou-me um problema de consciência – era importante recordar o «outro lado» dessa tragédia: recordar aos portugueses que Portugal foi refúgio e porto de abrigo de muitos milhares de refugiados, ou seja, dos que tentavam precisamente escapar ao tal destino dos campos de extermínio. É um episódio que nos honra, e nos justifica enquanto nação, ser espiritual com destino próprio, mas de que pouco se fala (há meia dúzia de livros que referem o assunto, entre os quais os romances «Deus não dorme», de Suzanne Chantal, «Croisade sans croix», de Arthur Koestler, «Uma noite em Lisboa», de Erich Maria Remarque, e, claro, o texto de Saint-Exupéry, «Carta a um refém»).
Falei então com uma senhora, judia austríaca, que se refugiou em Lisboa e aqui ficou até morrer, e com a Comunidade Israelita de Lisboa, em busca de informações, dados, histórias exemplares.
Foi exactamente durante uma conversa na sinagoga que Joshua Ruah, de quem me tornei amigo e admirador, passou ao repórter uma história incrível: a de Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus nesse mês decisivo de Junho de 1940, quando a cidade de Montaigne triplicou o número dos seus habitantes com a multidão de refugiados de várias nacionalidades (além do próprio Governo francês) que ali procuraram abrigo. E de como Sousa Mendes, recusando obedecer às ordens injustas e desumanas de Salazar, acabou por passar dezenas de milhares de vistos aos que demandavam em Portugal o porto de saída para a liberdade. E também o que lhe aconteceu: demitido, expulso da carreira diplomática, perseguido e ostracizado mesmo pelos que se diziam seus amigos, obrigado a desfazer-se dos seus bens para sobreviver, socorrendo-se dos serviços da mesma Cozinha Económica que oferecia refeições aos refugiados. A partida dos filhos para outros países, a solidão desse homem honrado, que viria a morrer no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, no ano de 1954.

Aristides de Sousa Mendes
Fiquei de boca aberta: como era possível que eu não conhecesse essa história incrível? Fiz um suplemento de quatro páginas em «A Capital», tomando «Holocausto» como pretexto para falar dos refugiados, dando então o devido destaque ao caso Sousa Mendes.
Dias depois tive reacções da parte de uma sobrinha do cônsul e também de um habitante de Cabanas de Viriato, terra natal de Sousa Mendes, convidando-me a visitar a terra e ver o estado em que se encontrava a mansão do cônsul, agora abandonada depois de ter sido lar hospitaleiro de muitos refugiados durante a guerra.
Também um antigo director do jornal, o embaixador Mário Neves, me contactou para me passar o dossier da tentativa de reabilitação de Sousa Mendes, cujas peças então publiquei.
O que mais me espantou foi a resistência dos próprios diplomatas à justiça que devia ser prestada a Sousa Mendes – somente em 1988 é que se conseguiu a reabilitação oficial do cônsul que disse não a Salazar. Por mais estranho que pareça, ainda havia diplomatas de carreira que não perdoavam a Sousa Mendes ter desobedecido a ordens superiores, mesmo que fossem injustas. E eu a lembrar-me do que Eichmann dissera no seu julgamento em Jerusalem, que se tinha limitado a obedecer a ordens...
Visitei o palacete da família Sousa Mendes, que chegou a ser pocilga e aviário, vi as ruínas dessa casa outrora nobre e alegre. Voltei lá alguns anos depois para filmar uma série documental e caminhei sobre um soalho pejado de fendas e de cartas assinadas pelo próprio Sousa Mendes.
A ruína continua lá, a desfazer-se, apesar de todos os projectos entretanto anunciados para a sua recuperação.
Em Israel, Aristides de Sousa Mendes é considerado um Justo entre as nações. Em Bordéus e nos Estados Unidos, prestaram-lhe diversas homenagens. Por cá, fizeram dois livros e dois documentários sobre a sua biografia.
Mas se fizerem um inquérito de rua, como as televisões gostam de fazer, tenho a certeza de que muito poucos saberão dizer quem ele foi.
Para mim, o meu Portugal está representado por algumas, poucas, figuras como a de esse português antigo, um homem de princípios, capaz de perder tudo para ficar de bem com a sua consciência.
Uma velha tradição judaica diz que, em cada época, o mundo subsiste porque se apoia em 36 Justos. Aristides de Sousa Mendes foi certamente um deles.
É de homens como ele que agora carecemos. É essa a nossa verdadeira crise.

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