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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O CAMINHO DO CAMINHO, 23









Enigmas no Caminho: Animais totémicos

Cynthia Guimarães Taveira
 
Diz um textinho alquímico (do qual não me lembro bem, nem qual é, nem aonde li, porque são muitos) que o homem contém em si todos os animais. De facto, conseguimos imitar todos os animais mas o contrário não se passa. Duas mãos projectadas em sombra sobre uma parede são suficientes para fazer nascer uma águia, um coelho, o que quer que seja.

António Telmo não gostava nada de insectos porque, dizia, eram animais diabólicos. Para ele a simetria dos insectos correspondia a uma perversidade que facilmente se poderia projectar no ser humano. De facto, as sociedades totalitárias aproximam-se muito da simetria. Basta ver a arquitectura dos fascismos e dos comunismos para se constatar essa ideia de simetria um pouco claustrofóbica, bem como a simetria das marchas dos exércitos dessas sociedades, e ainda a simetria nas hierarquias que sempre se impõem mesmo quando é uma sociedade socialista. A mecanização do homem anda a par com a forma como algumas colónias de insectos se organizam. Um centro (uma rainha), para a qual todos trabalham de maneira a manter um esquema social extremamente viciado.. São sociedades fechadas sobre si próprias que, no fenómeno humano, acabam sempre por se abater sobre si próprias. No entanto, pela minha parte, gosto de observar os insectos e a sua variedade quando me afasto um pouco deste olhar mais geral de António Telmo. A variedade de insectos é extraordinária. Assim como a variedade dos restantes animais.

Muito comum é noção de totem. Uma pessoa ou um grupo, adoptam um animal totémico (ligado à sua mitologia) e, a partir daí, tabus e adorações giram em torno desse animal.

Os novos grupos neo-pagãos também têm tendência para a identificação com determinados animais, quer em termos gerais (alguns deles vindos da mitologia e folclore europeus), quer em termos particulares, ao ponto até, de nesses novos rituais, só poderem entrar pessoas que já tenham descoberto qual o seu animal totémico. Equipara-se uma pessoa a um animal, o que, na minha perspectiva é um pouco redutor, até porque a minha experiência diz-me o contrário: são os animais que nos adoptam a nós. Que nos escolhem como um espécie de “totem”, que nos adoram, que nos protegem. Nós temos que fazer o mesmo que os deuses fazem connosco: protegê-los, escutá-los, encaminhá-los para serem mais humanos, assim como os deuses nos encaminham para sermos mais divinos.

Digo isto por causa da minha estranha relação com os gatos, foram eles que me explicaram por a + b como é que as coisas se faziam e de como o totemismo era de alguma forma uma inversão das relações hierárquicas na natureza. Passo a explicar (sei que vou chocar neo-pagãos, mas paciência).

Sempre gostei de cães. Em criança, as minhas tardes eram passadas com cães. Com o cão pai, com a cadela mãe e com os cães filhos, todos pertencentes a uma vizinha. Foi essa paixão, aliás, que me abriu portas para uma linguagem invisível, só possível com o coração. Nunca liguei muito a gatos em criança, no entanto, eles vinham atrás de mim. Onde quer que eu estivesse, fora da minha zona de conforto (expressão que agora se usa muito) aparecia um gato. Nunca os enxotei mas tembém não lhe ligava grande coisa, mas eles pareciam fixados em me acompanhar, apesar da minha falta de jeito para lidar com eles.

Um dia fui ao Egipto, e entre muitas coisas esquisitas que se passaram, sonhei que três gatos cinzentos me mordiam as mãos. Mordiam com tal força e ternura que acordei encharcada em suor, eles estavam a matar-me pela dor! Na altura não entendi o significado de tal sonho. Anos mais tarde, a após algumas perseguições por parte de gatos, eis-me por vias do acaso rodeada em casa de gatos adoptados. Continuam fixados em mim, num diálogo muito próprio, muitas das vezes ligado à justiça pura: com eles não posso ser injusta, pois imediatamente a seguir ou tropeço, ou me magoo “sem querer”, demasiadas vezes “sem querer” para não achar aí um denominador comum. Os gatos, pelo menos os meus, exigem-me a máxima atenção e, em troca, veneram-me, ao ponto de ter chegado à conclusão que o que se passava era o contrário: eu era o humano totémico deles e a nossa relação, era ao invés -- venerando-me, seguindo-me, olhando fixamente os meus olhos, eu, hierarquicamente acima, só tinha que os respeitar, amar, encaminhar, tornando-os os melhores gatos possível, humaniza-los, puxar por eles. Em troca, havia uma relação de “vasos” comunicantes com proporções justas, de causas e efeitos. A justiça e a misericórdia eram rigorosamente aplicadas para ambos, os gatos por vias estranhas também geravam castigos e recompensas, assim como eu gerava o mesmo.

Os cães, que continuo a adorar, vão ter de esperar porque neste momento tenho uma relação estranha com os gatos. A mesma que temos com os deuses, com os anjos, com o divino. A natureza ensina e nós ensinamos a natureza, em espirais de conhecimento e amor. Pã, aparece sempre nas encruzilhadas e, numa linguagem dúbia, propõe-nos que adivinhemos o segredo da enigmática resposta ao enigma da esfinge.

2 comentários:

  1. A propósito de cortes ontológicos, um dos de maior utilidade, é aquele que nos religa à natureza de uma forma surpreendente: compreende-se a aranha e o seu fio.

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  2. Porque há um fio que nos liga a todos, tecido por uma aranha...

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