(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 30 de setembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 29

António Carlos Carvalho

Em matéria de livros novos, como em quase tudo o resto neste mundo de hoje, raramente tenho boas notícias. Geralmente é a sensação do «déjà lu», do já lido, do «já li isto em qualquer lado». Ou então contam-me coisas do mundo editoral que me deixariam os cabelos em pé, se ainda os tivesse...
Mas às vezes há uma boa surpresa. Como agora aconteceu: Moacyr Scliar ganhou o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro, e pela terceira vez, com o seu novo romance, «Manual da Paixão Solitária» (edição Companhia das Letras), inspirado pelo episódio bíblico das relações entre Judah, seus filhos e Tamar.
Ora uma notícia destas deixa-me contente por três boas razões:
-- porque Moacyr Scliar é um excelente contador de histórias, coisa que constitui o primeiro requisito da literatura (todos precisamos que nos contem histórias, até mesmo Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias, segundo uma máxima da tradição judaica);
-- porque Moacyr Scliar é um velho senhor com 72 anos e 88 livros publicados, e não um daqueles jovens escritores, muito novos e muito frescos, que julgam ter inventado a literatura, mas que o marketing valoriza, ansioso por novidades;
-- porque Moacyr Scliar é um homem grande, de estatura e de coração, um dos poucos escritores que entrevistei e que se me revelaram iguais ao que escreviam.

Moacyr Scliar
Este descendente de judeus russos, nascido no bairro do Bonfim, em Porto Alegre, médico de profissão e escritor por vocação, é o autor de um certo livro que devíamos todos ler: «A Estranha Nação de Rafael Mendes» (L&PM Editores, 1983) – o título diz-nos tudo. O resto, só lendo.
Mas aqui vai um pequeno excerto:
«Os Mendes fixaram raízes no Rio Grande do Sul, com o tempo tornaram-se uma família tradicional, embora não fizessem parte da aristocracia rural propriamente dita. Tive, entre meus antepassados gaúchos, um fazendeiro, um comerciante; meu pai foi engenheiro, mas o nome Mendes tornou-se respeitado, pelo menos no círculo de minhas amizades. Quanto às remotas raízes ... Ninguém me falou de cristãos-novos, nem da Inquisição, nem dos essénios, nem dos profetas, nem da Árvore do Ouro ...
E, no entanto, algo havia; certa atracção pelo exótico, pelo misterioso, pelo oculto; certo fascínio pelo paradoxo; alguma perturbação ao passar por sinagoga; uma sensação de dissimulação; e perplexidade. Não a perplexidade do olho arregalado, da boca aberta e do queixo caído; uma perplexidade menor, embrionária; mas inquietante, de toda forma; inquietante o suficiente para demandar auxílio de um guia de perplexos, se disponível. O que não acontecia.»

terça-feira, 29 de setembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 32

Álvaro Ribeiro visto por António Cândido Franco*

RIBEIRO, Álvaro (1905-1981). Álvaro Carvalho de Sousa Ribeiro nasceu no Porto e faleceu em Lisboa. Frequentou a primeira Faculdade de Letras do Porto, onde se vinculou a Leonardo Coimbra e a Teixeira Rego, e nela concluiu em 1931 o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Participou activamente nas derradeiras actividades da Renascença Portuguesa, ainda que não tenha chegado a colaborar nas últimas séries do seu órgão, a revista A Águia. Assim como assim, a sua assiduidade na livraria da Renascença Portuguesa, à Rua dos Mártires, levou-o a dirigir com Casais Monteiro e Manuel Maia Pinto a última nova publicação da Renascença, a revista Princípio (1930), que, por uma aproximação à Seara Nova e à revista Presença, se propunha combater nas novas gerações a influência do Integralismo Lusitano e do pensamento reaccionário e antidemocrático.
Dois anos depois, dispersos os discípulos de Leonardo Coimbra e encerradas de vez as portas da Faculdade de Letras do Porto, fechadas ainda as duas últimas publicações da Renascença Portuguesa, as revistas A Águia e Princípio, e desfeita a sociedade cultural portuense, surge em Lisboa o manifesto da Renovação Democrática, assinado por Álvaro Ribeiro e Pedro Veiga. O movimento depressa se tornou um pólo de atracção para os antigos alunos da Faculdade de Letras do Porto ou para os colaboradores mais novos da revista A Águia, como Domingos Monteiro e Eduardo Salgueiro, acabando por se tornar o herdeiro que melhor procurou prosseguir e interpretar em novo contexto, o do Estado Novo, os ideais democratistas da Renascença Portuguesa. As movimentações duraram até 1943, ano em que Álvaro Ribeiro se estreou em livro com O Problema da Filosofia Portuguesa, dedicado a José Marinho e publicado por Eduardo Salgueiro na Editorial Inquérito. Com o opúsculo, procurou Álvaro Ribeiro desenhar a Filosofia Portuguesa como movimento cultural herdeiro da Renascença Portuguesa, mas sublinhando desta vez, quase em exclusivo, as fontes esotéricas ou acroamáticas em detrimento das sociais ou das cívicas.
Depois disso, nos anos ímpares, com uma regularidade quase matemática, publicou Álvaro Ribeiro até ao fim da vida uma vasta obra de prosador, de pedagogo, de hermeneuta e de memorialista, em que pretendeu por um lado actualizar um racionalismo aristotélico muito atento aos problemas da linguagem verbal, no qual via a genuína matriz do pensamento português, desde Pedro Hispano ou de Álvaro Pais (século XIV), e por outro magistralizar a tradição esotérica do saber, sobretudo judaico-cabalista, no qual inseria a renovação moderna do pensamento português, começada para ele com Sampaio Bruno.
Nesse sentido, atendendo à sua dupla filiação racionalista e ocultista, o poeta português moderno que mais vivamente interpelou o Álvaro Ribeiro pensador de enigmas foi pessoa. Dele compilou em volume os textos publicados na revista A Águia em 1912, dedicados à poesia saudosista; a recolha, A Nova Poesia Portuguesa (1944), foi a primeira compilação de dispersos do poeta e antecedeu muitas outras iniciativas do género, a primeira das quais a recolha de Jorge de Sena, Páginas de Doutrina Estética (1945), que contou com larga e generosa colaboração de Álvaro. Assinale-se por fim a coincidência, decerto consciente, senão procurada, entre as iniciais da «Filosofia Portuguesa» e as de Pessoa.

BIBL.: DOMINGUES, Joaquim, Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional. Introdução à Obra de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1997; GALA, Elísio, A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999; GOMES, Pinharanda, «Álvaro Ribeiro: Da Renascença Portuguesa à Filosofia Portuguesa», in Aa. Vv., O Pensamento e a Obra de José Marinho e de Álvaro Ribeiro, vol. II [inteiramente dedicado a Álvaro Ribeiro], Lisboa, IN-CM, 2005.
António Cândido Franco
____________
*entrada sobre Álvaro Ribeiro publicada no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Caminho, 2008.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

AFORISMOS, 4

Eduardo Aroso

16 - Nos extremos raianos dos actos rígidos decretados e das rotundas da banalidade onde se cultivam torres de Babel, para além dessa fronteira, começa Portugal.
17 - Os nossos olhos deixaram de ver longe, com lucidez, quando se voltaram para um ponto fixo, demasiado fixo. Vimos em demasia a cor e o preço da pimenta, e quantas vezes rejeitámos a temperança, embriagando-nos com o cheiro da especiaria. Aí criámos cataratas que importa retirar.
O nosso mandala deve ser o círculo, ou melhor, a esfera. Nos tempos em que se pressentiu que a fortuna poderia vir a desfazer-se, e quando nos encontrámos no caminho fatídico da expulsão de quem já morava no nosso coração, ainda assim, a melhor herança foi a esfera armilar para nos lembrar a necessidade quotidiana de olhar o mundo. Diz-se na teoria do mandala que, até que tudo se harmonize, não se deve fixar ponto algum. O olhar deve ser uma totalidade. Só depois encontraremos o ponto central ou, se quisermos, alguma revelação. Em geografia somos periféricos. Espiritualmente, só nos podemos realizar no centro do mundo. Do lado de fora, há que olhar ainda a linha do horizonte.
18 - «Se não é eleito, que se eleja!» Foi assim que Agostinho da Silva respondeu à pergunta habitual de quem geralmente cultiva meias-verdades sobre o nosso destino colectivo. Com rompante intuição, ou com sabedoria história, ou o Janus bifronte, o autor de Reflexão teria meditado naquele ponto tão enigmático que tem sido Ourique: o nosso primeiro Rei, ele próprio se armou cavaleiro, isto é, elegeu-se!
19 - Constituição Europeia – a esfinge clonada.
20 - Os assaltos (à mão armada ou desarmada) à cultura portuguesa ocorrem do seguinte modo: na impossibilidade de roubarem para transaccionar no mercado, os ladrões tudo escondem, de modo que ninguém destape, ou então deixam tinta de um tipo mais moderno e sofisticado que graffiti, para que seja difícil ler o que havia antes…

domingo, 27 de setembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 6

Cynthia Guimarães Taveira


O terror vem antes do terrorismo
Todas as sociedades que promovam ou de alguma forma conduzam ao suicídio ou à loucura são sociedades doentes. Quantos suicidas temos nós? Quantos loucos sem graça passam por nós na rua? Outras patologias mais loucas do que o suicídio ou a loucura parecem cair numa espécie de normalidade assustadora. O encontro com essa realidade aconteceu quando vira o filme americano “Forrest Gump“. Saíra da sala horrorizado como se de um filme de terror se tratasse. “Forrest Gump” é mesmo um filme de terror sobre a verdadeira ameaça que cai neste momento sobre a espécie humana para além das outras traduzidas em danos físicos ao planeta. Curiosamente foi um filme que emocionou milhares. Saiam comovidas as pessoas da sala de cinema, fungando e limpando as lágrimas. O filme relata a história de um pobre diabo que sofre de um atraso e que por via dos sucessivos acasos da sua história de vida se torna presidente de um grande grupo empresarial. O filme acaba com uma pena, leve ao vento, que, tal como Forrest Gump, inocente e para sempre prisioneiro de um estado infantil, voara ao sabor do acaso. A patologia, a deficiência mental era assim exorcizada com a fórmula simples de um sentimentalismo barato e antigo como o mundo: coitadinho, não sabe o que faz, mas até consegue. A plateia era toda Jesus Cristo, no alto da sua cruz, desta vez não pedindo perdão pela maldade dos homens, mas sim abençoando todos os atrasados do mundo, tornando-os ídolos, senão mesmo modelos exemplares de uma beatitude descontrolada, apenas ao sabor do vento, que Deus ajuda, que Deus eleva, que Deus torna empresários de multinacionais. A perversidade tem vários rostos, e neste mundo há que estar atento...
E atentos ainda à questão da memória. Peguemos em dois pólos. O autismo e o Alzheimer. Duas patologias em moda por força da persistência e do número crescente com que se infiltra nas nossas crianças e nos nossos idosos. De um lado, o autismo. Revisitado agora na televisão pela mão de um documentário sobre duas gémeas com sérios problemas. Lembravam-se de todos os dias que viveram, sem excepção. Do que tinham comido ou da meteorologia de um determinado dia. Chamavam-se a si próprias computadores humanos pois sabiam o calendário mundial de cor. Sabiam-no sem saber como. Apenas o sabiam, de forma que as duas gémeas eram uma colecção de factos, ao jeito da história factual nascida com o positivismo. Factos que para nada serviam, catálogos vazios sem os respectivos livros. Por várias vezes, nesse documentário, foram apelidadas de génios por desenvolverem uma memória privilegiada. Com síndromes ou sem síndromes de nomes de médicos, o autismo está a crescer em número e uma das constantes é esta capacidade anormal de memorizar qualquer coisa.
Do outro lado temos o Alzheimer, estado demente da pessoa, no qual esta já nada retém, até poder chegar ao ponto de se esquecer de si própria. Não saber quem é. Por enquanto esta patologia não é tão venerada como as capacidades a que o autismo conduz mas, provavelmente, lá chegaremos, até porque a democracia, tal como nos é dada a viver nos dias de hoje, só pode viver, respirar e alimentar-se à custa da desmemorização sucessiva dos indivíduos. Se assim não fosse não eram necessárias campanhas eleitorais, verdadeiros processos de desmemorização, substituindo uma realidade imediata por outra.


Com estas observações, e enquanto percorria o caminho do caminho, chegara à conclusão de que toda a memória deveria ser doseada. De nada servia tudo esquecer, de nada servia tudo lembrar. Todas as lembranças deviam ser quanto baste, e algumas até transformadas consciente ou inconscientemente de forma a encaixarem numa linguagem simbólica que lhes devolvesse um sentido. Era isso que faziam os escritores, os contadores de histórias e as lendas que percorriam o corpo da História.


Forrest Gump era o protótipo do americano comum. O americano que todos deveriam ser. Um vencedor, sem que interessasse como ou porquê. Ler os livros de Bill Bryson pode ser bastante didáctico se procurarmos assegurarmo-nos do risco que corremos enquanto espécie.
O americano, feliz, quer-se junto à televisão, tal como as duas gémeas autistas em frente ao ecrã assistindo a um concurso-fantochada e fachada de um possível conhecimento, assentando num papel as perguntas e respostas, assentando as vezes que uma campainha ou um gongo tocam, assentando tudo para que de nada sirva a não ser para estatísticas, estatísticas que servem sempre a democracia e nada mais...


Este elogio da normalidade do anormal lembra o filme tristíssimo, esse sim, esclarecedor, onde Peter Sellers no papel de Mr. Chance, vivendo em função de uma televisão, conhecendo o mundo e a vida só em função daquilo que o ecrã lhe dá, acaba memorizado por ele e desmemorizado de si mesmo. O inverso dos homens da Renascença que se queriam plenos, amantes de todas as disciplinas, conhecedores dos jogos simbólicos das histórias, pintores e matemáticos, alargando cada vez mais o espectro das possibilidades de conhecimento, ao contrário de hoje, em que se corre o risco de chamar génio a alguém que é apenas deficiente, só porque sabe fazer contas rapidamente, mas está morto para o mundo, para si próprio e pior, para a face transcendente do homem, feito à imagem e semelhança de Deus. E Deus não é autista nem tem Alzheimer.


No caminho do caminho, não se deve perder o trilho... e estranhamente este conduz-nos para cima, para a nossa transcendência, para onde todas as nossas possibilidades boas são aproveitadas, expandidas, até a um limite que não podemos imaginar.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 5

Carlos Aurélio

3 - Vê o leitor que fui descendo e que agora já não escuto ninguém nos altos cumes entre os poetas, antes ensurdeço num mísero vale entre a vozearia meio alterada de uma taberna. Teve que ser porque, apesar dos plebeus que nos desgovernam, ainda acalento velada esperança no povo. Se mesmo assim, for o povo português de cerviz dura e contumaz que nem o seu instinto de sobrevivência escute, quero eu mesmo exilar-me na Ilha dos Amores, acaso os seus anjos guardiães permitam a entrada a tão tosco pedinte. Ou então − ó meu Deus, tudo vendemos! Vi há dias num grande camião, quatro centenárias oliveiras portuguesas a serem levadas para Espanha, as suas raízes no ar e arrancadas da nossa terra − ou então, dizia eu, como a questão de Olivença permanece em aberto, recolho-me subversivamente a essa Terra das Oliveiras, para nela levantar sozinho de novo Portugal. Fica assim Portugal uma ilha dentro de Castela, uma ilha de terra com terra à volta, irreconhecível e por isso inexpugnável. Nela farei um poema conforme souber, em português e com o último sopro que me restar. Morrerei nessa terra que é a Saudade por inteiro, quente e seca, em agonia longe do mar. Nela descansarei para sempre em pura identificação com a Pátria que me deu a língua com que escrevo e nomeio o mundo, a língua com que amo e sofro. Pode, numa sepultura em duplo quadrado similar ao nosso mapa do rectângulo pátrio, ser o epitáfio assim escrito: «Nesta tumba, tombou Portugal». Imagino agora como foi pungente de dor a agonia de Camões em 1580: «Morro, mas morro com a Pátria».

Igreja de Santa Maria Madalena, Olivença
Tudo isto é artifício dramático? Antes fosse, que mais valeria ser tomado como louco, que rouco vou ficando entre a gente mouca a quem falo. Tudo isto é ininteligível e extemporâneo para os ouvidos modernos? Claro que sim e por isso mesmo dramático. Lembro agora a história de um pobre frade que, em 1580, foi dos poucos entre o clero − ele e o bispo da Guarda − que sempre negou a Filipe II o direito de tomar-se como Rei de Portugal. Morreu sozinho num frio calabouço e na terra estrangeira dos iberistas do lado de lá, este nosso Frei Heitor Pinto. Morreu mas dizendo: «Que el-rei Filipe me queira meter em Castela, pode fazê-lo; mas meter Castela em mim, isso é impossível». Paz à sua alma!


Post-Scriptum: aos portugueses que restam há ainda o consolo da língua portuguesa, que guarda em si um mundo espiritual por inteiro. Há também algumas romarias religiosas, o tesouro esquecido que é a Galiza, a sardinha e a castanha (ambas assadas) e alguns (poucos) poetas e gente que sabe filosofar. Só com estes é profícua, sã e desejável a relação com Castela e, melhor ainda, com as Espanhas.

Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte; 3.ª parte; 4.ª parte

Março/2007

ABDEL HAYY, IPSIS VERBIS

Reflexões entre Brasil e Portugal
1. Há quem negue, mas não deixa de ser interessante que o Ceará, uma zona desértica do Brasil, tenha um nome tão semelhante ao deserto magrebino: Sahara. Poderiam os mouriscos, viajando nas caravelas e chegados a uma zona cuja paisagem lhes era tão familiar ter atribuído o único nome que descreve essa imensa aridez ardente na sua língua natal? Será, pois, o Ceará, o Sahara do Brasil?
2. Em Portugal, um pouco por todo o lado, há lendas de mouras encantadas, de tesouros dos mouros, de princesas ou príncipes mouros. Há quem diga que o povo “ignorante” atribui a tudo o que seja antigo o atributo de “mouro”. É um facto, mas isso não explica a razão. A razão deve ser uma só: o povo é o guardião da memória “colectiva” do país e, neste caso, aquilo que ali se guarda é a memória de que houve um tempo maravilhoso que este país viveu, um tempo que foi o do Portugal mourisco e, por isso mesmo, também cristão e judeu. A ingratidão e o complexo do discípulo que quer matar o mestre é que fazem com que se acabe por esquecer entre as elites, aquilo que o povo “sabe” muito bem.
Dirão os eruditos que muitas dessas lendas são mesmo pré-românicas, quanto mais pré-islâmicas. Mas o importante aqui não são as lendas, mas o facto de o povo ter revestido essas lendas (por todo o país, de norte a sul!) com uma veste “moura” e não outra. Só quem tiver perdido um mínimo de objectividade é que pode ficar indiferente à quantidade de lendas ligadas a “mouros”.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 4

Carlos Aurélio

[conclusão do 2.º capítulo]
Se Afonso Henriques fundou Portugal como nação, a pátria portuguesa que precisa do espírito criador de uma língua nasceu com Camões: «Esta é a ditosa pátria minha amada». A espinha de Portugal vive fora de Espanha e foi Camões, ditoso poeta, a sua medula ígnea. Devido a ele, Portugal e a sua irmã Galiza vivem hoje também no Brasil, em África, no Oriente. Só os poetas e filósofos podem entre si falar destas coisas porque passa por eles o espírito criador das pátrias, as quais, tal como os indivíduos, têm um papel inalienável a desempenhar no destino do mundo. A obra de Rosalía de Castro pode conversar naturalmente com a de Cervantes ou a de Calderon de la Barca, sem que a Galiza sofra desmandos intoleráveis por parte de Castela. Ou a do catalão Gaudí, ainda que arquitecto, pois toda a arte deseja exprimir espírito. Se, todavia, deixarmos o comando das coisas no mando ou nas mãos do homo oeconomicus, acabamos sempre todos à estalada ou em desconfianças de agiotas. Agora que falei de novo em economia, tenho que voltar ao vocabulário moderno mais rasteiro e, nestas coisas mais pequenas, ainda aqui deixo uns cordelinhos necessários para cada qual puxar o seu títere:

Rosalía de Castro
− Eis alguns atributos com que os iberistas do lado de lá, os de hoje e os de sempre, caracterizam o facto de Portugal existir como país independente, não obstante os nossos nove séculos: chamam-nos «brutal mutilação, anomalia peninsular, mentira e fantasia política, artifício, rebelião». Eu, por mim, continuo a achar que Portugal é um mistério e um milagre porque sei que são as palavras que movem o mundo.
− Os iberistas do lado de lá chamam à actual fase de absorção castelhana, à pretendida União Ibérica de: «projecto excitante, cópula, prazer da fusão, gozo interactivo das misturas, projecto estimulante, abrupta atracção incestuosa» (v. Vicente Verdú, El País, 29-9-06). Titulam a coisa como de La Portuespaña, Espugal o Portupaña, tudo dentro do mau gosto do hibridismo ou na sugestão de las parejas homosexuales registadas nos casórios do lado de lá. Felizmente, sabemos da esterilidade dos animais híbridos, como é o caso das mulas.
− Os iberistas do lado de lá escrevem, por exemplo, como vi escrito num evento cultural para que fui convidado: EXPO’98. Lisboa e a seguir e por baixo, ESPAÑA! Alguém imagina, EXPO’92. Sevilha-PORTUGAL? Impossível! Ou então, propõem a mudança dos letreiros comerciais de português para castelhano como apareceu numa reportagem televisiva mostrando Lisboa (TVE, 24-9-06), em antevisão da hipotética União Ibérica.
− Os iberistas do lado de cá, nas nossas escolas e sob a chancela do nosso Ministério da Educação (Fev. 2007), colocam cartazes enormes e supostamente culturais em que os nossos alunos são seduzidos através de prémios de vulto em concursos sob o seguinte tema: “Pinta a TUA Espanha”, no qual o pronome possessivo surge graficamente destacado para que cada aluno tome como seu o que é desejo deles.
− Os iberistas do lado de cá idolatram a Espanha como um país rico e sem problemas. Coitados que não sabem que a morte também ataca os ricos! Se desvendassem os olhos da sua cegueira encontrariam um nível elevado e constante de desemprego mesmo entre os licenciados (porque será que vêm para cá tantos médicos e enfermeiros?), dariam por uma corrupção nas altas esferas do poder económico, por uma especulação imobiliária que eleva os preços e deixa mais de 30% do parque habitacional por vender. A Espanha é um estado com várias nacionalidades em guerrilha, conflituoso, áspero, com uma informação televisiva estatal por completo enfeudada ao centralismo de Madrid. Há semanas atrás, uma muito minha querida amiga da Galiza que vive em Portugal há sete anos, sujeita que fora à inesperada propaganda de um portuguesinho palerma e pró-iberista no meio de uma demorada fila de repartição pública no Algarve, confiava-me a sua indignação: «Seria o homem tonto que imagina não haver bichas e burocracias em Espanha?». Santa paciência, acrescento eu.
− Como poderiam os iberistas do lado de cá justificar que Portugal se viesse a meter dentro do vespeiro que é a Espanha no seu eterno e insolúvel contencioso nacionalista? A guerra da Jugoslávia ainda traz consigo o seu horror tão recente. Saramago diz que sim ao iberismo, até porque, segundo ele seríamos a maior autonomia espanhola (C. Manhã, 9-11-06). Além do erro há ingenuidade. A Jangada de Pedra afunda-se em atoarda de peso a não ser que Portugal aceite resumir-se, com todo o respeito, a algo similar ao País de Gales, à Córsega, à Bretanha, à Alsácia, à Transilvânia.
− Proponho e para finalizar por aqui, a seguinte perplexidade, aliás bem legítima: se a Espanha é assim um país tão apetecível para lhe pertencermos, porque raio andam há mais de 500 anos, galegos, bascos e catalães a quererem fugir dele?
Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte; 3.ª parte
(continua)


NO CORAÇÃO DA ARTE, 22

Cynthia Guimarães Taveira

Arco-Íris
Pintou um arco-íris e não escorregou por ele. Foi o arco-íris que por ele escorregou. E assim foi com toda a obra. Entraram por ele a dentro as sombras e luzes do amanhã e tornou-se profeta sem que o soubesse ou que alguém soubesse. Entraram por ele ninfas nuas girando na água. Rodopiou com elas e abrasou-se nos seus braços. E veio a cidade inteira, com esquinas de surpresas, labirintos encontrados e rios espreitando ao fundo. Caminhou por ele grave e altiva, encrostando-se nas suas mãos e esvaindo-se em tinta. Estremecia a cada janela que se abriu e espantava-se com as pessoas que por ele passavam. A tela era apenas um espelho do espelho que ele era. E vibrava de luz a cada carícia suave dada pelo pincel.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 3

Carlos Aurélio

2 - E os iberistas de lá? Quem são e ao que vêm? Lá como cá, existe a visão mercenária e mercantilista e aquela outra de poetas e filósofos. Esta última sendo larga não nos convém porque, já o dissemos, é sempre mais continental e não contempla o mar como nós. A primeira precisa de um pouco de caricatura, não o nego, para que melhor se destaquem os traços dos seus propósitos. No teatro do mundo também existe a comédia.
Nesse iberismo castelhano mais raso e boçal, Portugal é uma espécie de ilha para ser governada por Sancho Pança, e isto sem os sábios conselhos de D.Quixote. Fica dentro dos limites de um qualquer alcaide, faz parte da ideia centrípeta de Isabel a Católica e do catolicismo castelhano que lhe fez a vénia. Está incluso na “Castela Una” de Filipe II, do duque de Olivares, de intelectuais ou políticos como Calvo Sotelo, Gil Robles, Salvador Madariaga, gente de direita e também alguma de esquerda até chegar ao Generalíssimo deles, Francisco Franco, cuja tese como cadete na Academia de Toledo se revela na jactância do título escolhido: «Como se ocupa Portugal em 28 dias» – realmente o mês lunar avisa sempre sobre a transitoriedade das ideias degenerativas! Há depois o iberismo que se quer superior que é o de Pelayo, Pidal, Unamuno ou Ortega y Gasset que, supostamente, admite o resto da Península com direito a ser algo centrífuga. A obra de alguns deles como a de Unamuno, até conversa superiormente com a de alguns nossos, como é o caso de Teixeira de Pascoaes. E a isso que tanto tem de catalisador e de admirável nada temos a opor. Todavia, as coisas nem sempre são o que parecem e lembremos tão só, que Ortega y Gasset, o madrileno e ímpar filósofo da geração de 98 e no que foi seguido pelo reitor de Salamanca, Unamuno, escreveu a Espanha Invertebrada, livro no qual as vértebras necessárias, muito naturalmente, só ganham força tomando Castela para espinha das Espanhas. Pudera! Para Portugal, Galiza, País Basco ou Catalunha o afastamento da coluna vertebral exclui-lhes a possibilidade de chegarem a ser sequer um órgão nobre, o coração, o fígado ou os pulmões. Teríamos sorte se nos calhassem umas vísceras da barriga ou um quase anónimo ossinho do tornozelo. Enfim, coisas do teatro anatómico!...

Ortega y Gasset
Não pode existir, por anti-tético, iberismo português! O iberismo conduz necessariamente ao fim da ideia superior de Portugal. Há iberismo castelhano e também não há iberismo espanhol porque, – escutem bem! – a Espanha não existe! Existe Estado espanhol, não existe pátria espanhola. O que há dentro do estado espanhol são várias nações e pátrias como é o caso da Galiza, do País Basco, da Catalunha, de Castela. O Estado articula instituições para que assim se exerça o Direito, a República cuida dos interesses patrimoniais e públicos ainda que também o possa fazer monarquicamente, ou aristocraticamente, a Nação é uma entidade natural que reúne em si todos os que nascem e nasceram dentro e sob a entidade espiritual da mesma língua, a Pátria. Isto ensinou um filósofo português, Orlando Vitorino, desaparecido há pouco do mundo dos vivos e que agora é muito bem capaz de estar conversando no Paraíso com Camões e Cervantes.
Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte

(continua)

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 28

António Carlos Carvalho

Há dias, vendo um documentário do canal História sobre a acção de Aristides de Sousa Mendes durante a Segunda Guerra Mundial, salvando cerca de 30 mil refugiados contra tudo e contra todos, veio-me à memória o momento em que tomei conhecimento da existência desse Homem Justo.
Foi há 30 anos. A RTP passava uma série que causou escândalo e controvérsia: «Holocausto». Houve países que proibiram a transmissão da série. Por cá, a série passou sem sobressaltos mas a mim levantou-me um problema de consciência – era importante recordar o «outro lado» dessa tragédia: recordar aos portugueses que Portugal foi refúgio e porto de abrigo de muitos milhares de refugiados, ou seja, dos que tentavam precisamente escapar ao tal destino dos campos de extermínio. É um episódio que nos honra, e nos justifica enquanto nação, ser espiritual com destino próprio, mas de que pouco se fala (há meia dúzia de livros que referem o assunto, entre os quais os romances «Deus não dorme», de Suzanne Chantal, «Croisade sans croix», de Arthur Koestler, «Uma noite em Lisboa», de Erich Maria Remarque, e, claro, o texto de Saint-Exupéry, «Carta a um refém»).
Falei então com uma senhora, judia austríaca, que se refugiou em Lisboa e aqui ficou até morrer, e com a Comunidade Israelita de Lisboa, em busca de informações, dados, histórias exemplares.
Foi exactamente durante uma conversa na sinagoga que Joshua Ruah, de quem me tornei amigo e admirador, passou ao repórter uma história incrível: a de Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus nesse mês decisivo de Junho de 1940, quando a cidade de Montaigne triplicou o número dos seus habitantes com a multidão de refugiados de várias nacionalidades (além do próprio Governo francês) que ali procuraram abrigo. E de como Sousa Mendes, recusando obedecer às ordens injustas e desumanas de Salazar, acabou por passar dezenas de milhares de vistos aos que demandavam em Portugal o porto de saída para a liberdade. E também o que lhe aconteceu: demitido, expulso da carreira diplomática, perseguido e ostracizado mesmo pelos que se diziam seus amigos, obrigado a desfazer-se dos seus bens para sobreviver, socorrendo-se dos serviços da mesma Cozinha Económica que oferecia refeições aos refugiados. A partida dos filhos para outros países, a solidão desse homem honrado, que viria a morrer no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, no ano de 1954.

Aristides de Sousa Mendes
Fiquei de boca aberta: como era possível que eu não conhecesse essa história incrível? Fiz um suplemento de quatro páginas em «A Capital», tomando «Holocausto» como pretexto para falar dos refugiados, dando então o devido destaque ao caso Sousa Mendes.
Dias depois tive reacções da parte de uma sobrinha do cônsul e também de um habitante de Cabanas de Viriato, terra natal de Sousa Mendes, convidando-me a visitar a terra e ver o estado em que se encontrava a mansão do cônsul, agora abandonada depois de ter sido lar hospitaleiro de muitos refugiados durante a guerra.
Também um antigo director do jornal, o embaixador Mário Neves, me contactou para me passar o dossier da tentativa de reabilitação de Sousa Mendes, cujas peças então publiquei.
O que mais me espantou foi a resistência dos próprios diplomatas à justiça que devia ser prestada a Sousa Mendes – somente em 1988 é que se conseguiu a reabilitação oficial do cônsul que disse não a Salazar. Por mais estranho que pareça, ainda havia diplomatas de carreira que não perdoavam a Sousa Mendes ter desobedecido a ordens superiores, mesmo que fossem injustas. E eu a lembrar-me do que Eichmann dissera no seu julgamento em Jerusalem, que se tinha limitado a obedecer a ordens...
Visitei o palacete da família Sousa Mendes, que chegou a ser pocilga e aviário, vi as ruínas dessa casa outrora nobre e alegre. Voltei lá alguns anos depois para filmar uma série documental e caminhei sobre um soalho pejado de fendas e de cartas assinadas pelo próprio Sousa Mendes.
A ruína continua lá, a desfazer-se, apesar de todos os projectos entretanto anunciados para a sua recuperação.
Em Israel, Aristides de Sousa Mendes é considerado um Justo entre as nações. Em Bordéus e nos Estados Unidos, prestaram-lhe diversas homenagens. Por cá, fizeram dois livros e dois documentários sobre a sua biografia.
Mas se fizerem um inquérito de rua, como as televisões gostam de fazer, tenho a certeza de que muito poucos saberão dizer quem ele foi.
Para mim, o meu Portugal está representado por algumas, poucas, figuras como a de esse português antigo, um homem de princípios, capaz de perder tudo para ficar de bem com a sua consciência.
Uma velha tradição judaica diz que, em cada época, o mundo subsiste porque se apoia em 36 Justos. Aristides de Sousa Mendes foi certamente um deles.
É de homens como ele que agora carecemos. É essa a nossa verdadeira crise.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 2

Carlos Aurélio

[conclusão do 1.º capítulo]
Desde logo foi tão intencional e certeiro D. Afonso Henriques que sempre recusou enviar às Cortes dos vários reinos das Espanhas qualquer dignatário ou mero representante português, nem sequer nelas permitiu o simples hastear do nosso pendão. Ainda que cristã como as outras da Reconquista, a nação foi sempre apontada a uma outra coisa futura, quer chamando-se a si mesma Terra de Santa Maria, quer se abrindo à meditação do Quinto Império. Mas, no final da dinastia Afonsina voltaram em força os do costume: Leonor Teles anda mal com o Andeiro e parte importante do nosso escol bandeia-se com Castela. Os nossos poetas, tanto fazem versos como guerras, e o Mestre de Aviz com Nuno Álvares Pereira, ambos coadjuvados pelas “quadras” populares de Álvaro Pais e de seu enteado João das Regras, escrevem um poema enorme e épico até Aljubarrota. Ainda hoje, o Mosteiro de Alcobaça se aparelha e verseja com as Guerras da Fundação, tal como o Mosteiro da Batalha com as Guerras de Independência, ambos sendo exemplos de pedra viva e virtuosa para a cura de quem se deixou “entuberculisar” pela virose iberista.
Depois de termos voado alto como as águias para vermos num só abraço toda a Terra, o jovem Rei Sebastião deixou-se crivar de setas, tal como o Santo Sebastião atado à coluna – ainda assim uma coluna que liga terra e céu! – e gritou no deserto de Alcácer-Quibir o exemplo do sol atlântico fenecendo, lentamente, no crepúsculo vespertino da nossa Finisterra: «Morrer, mas devagar». Foi então manca e frouxa a “poesia “ de D. António Prior do Crato e, duas máscaras lúgubres do iberismo, – uma de cardeal, o Henrique, outra de rainha, Catarina de Áustria e avó de Sebastião – levaram Portugal de regresso ao grande quintal das traseiras da casa, esquecendo a praia. Afinal, que mais querem os iberistas, se já estivemos 60 anos em dura aplicação experimental das suas teses e tudo deu no que deu? O desfecho culminou com uma criada mais negra que as Áfricas no Palácio dos Almadas ao Rossio a delatar Miguel Vasconcelos, o iberista defenestrado! A História é um teatro cujo texto dramático se escreve depois da representação da peça. Ultrapassada a experiência de Cristóvão de Moura e do conde-duque de Olivares, dois mercenários iberistas, passou Portugal, sempre débil e a coxear, pelo palco do mundo. Depois dos Jerónimos que já profetiza nos claustros o sol fenecendo a ocidente como Sebastião no deserto, desistimos de erguer um quarto mosteiro contemplativo e regenerador como é o de Alcobaça ou o da Batalha, que o de Mafra sendo maior na pedra é menor na alma. Enchemos os bolsos com o ouro do Brasil e tornámo-nos pedintes depois, ora em maus negócios com os ingleses, ora em sujos lençóis com a facção liberal, francesa e napoleónica.

Dom Quixote e Sancho Pança

Veio o século XIX e aí sim o Iberismo até merece que aqui se escreva em letra maior porque, explicavelmente, alguns dos nossos grandes por lá passaram. E tudo na verdade se explica se atendermos a que a doença se entranhara agora na própria monarquia, semente do reino que, entretanto, morria. O vírus havia sido inoculado como vacina contra a fidalguia que, de nobre decaíra em ignóbil, contra o clero muito pouco claro. A Inglaterra roubou-nos um mapa cor-de-rosa e de tão leal aliada enredou-nos, por um Ultimatum, na ilusão de ter como novos amigos os castelhanos, esses velhos inimigos. Temos que admitir como geniais os génios libertados da lamparina do mundo os quais, superiores à melhor ficção, tão genialmente engendram a história dos homens. Mas reparemos nisto que, por ser tão simples, é esquecido: desses alguns dos nossos grandes que passaram pelo iberismo – Latino Coelho, Oliveira Martins, Antero de Quental, Fialho de Almeida, Teófilo Braga, entre outros – nem um só de todos eles por lá permaneceu. O engano é o de sempre: os iberistas de cá não conhecem os iberistas de lá e depois de os conhecerem, recuam, esclarecidos! Alguns ainda foram a convénios ou jantaradas até Badajoz, Salamanca ou Madrid, mas de lá voltaram com o entusiasmo esfriado. É que na Ibéria há uma casa portuguesa com certeza numa falésia frente ao mar, e há também um castelo alcandorado na meseta, muito ao meio, centralista e centrípeto, de ameias guerreiras e olhar de cobiça sobre terras e riquezas. Castela é um castelo com vistas imperiais e o melhor ser que o excedeu foi um cavaleiro de triste figura, fugido ao alcaide. É um grande poeta e chama-se D. Quixote. Castela sempre olhou as Américas como ainda hoje a Espanha mira a Europa. Nunca se esquece que é poderosa nos negócios do mundo e que quer continuar grande como as potências da terra. Pois que seja!
Os nossos iberistas do século XIX fazem-me lembrar o que há meses ouvi na TV (7/11/06-RTP1) a uma senhora, nossa euro-deputada dos finais do século XX, Maria Belo: «Nós éramos os únicos que quando lá chegávamos [Parlamento Europeu] deixávamos de ser portugueses. Passávamos logo a ser europeus. Só que éramos os únicos a fazer isso!» Conclusão: somos naturalmente iberos e europeus antes de tempo, porque anunciamos desde sempre o novo tempo. Nós somos realmente a nação nascida no solstício da noite de S. João, o povo desaparecido no deserto de Alcácer-Quibir e percursor do novo regresso de Cristo, esse sol eterno a morrer devagar no mar oceânico, porque só morrendo pode haver a ressurreição no Quinto Império. Nós somos sempre uma outra coisa e não o sabemos. Não podemos ser iberistas porque já somos, nem europeístas porque há muito que já fomos. Nesta terra do fim seremos o fim, e também o princípio de outra coisa de que não sabemos. Mas, para isso, ainda temos que continuar a ser. «Ser e não ser, eis a resposta», que por Hamlet daremos.
Repito para que a memória faça futuro: nenhum dos nossos grandes que passou pelo iberismo dos séculos XIX e XX por lá parou. Basta que lembremos Teófilo Braga que não deu nessa direcção um único passo político, e isso não obstante ter tido oportunidade decisiva para o fazer ou propor, ele que foi Presidente na novel República de 1910. E grandes também houve que bem souberam lidar com o vírus: Gomes Freire de Andrade, Manuel Fernandes Tomás, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, João de Deus, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro, Agostinho da Silva, José Régio, enfim, neles e em tantos outros há um veio de imperecível portugalidade cujas águas desaguam sempre no Atlântico. E isto não impede que possam esses rios portugueses nascer em algo de grandioso nos cumes superiores da Ibéria, a exemplo do Douro, do Tejo e do Guadiana. Mas todos eles correm para cá, não o esqueçamos!

Antecedentes: 1.ª parte
(continua)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

AFORISMOS, 3

Eduardo Aroso

11 - Não sei se a memória distante é a mais nítida. É, porém, a mais duradoura.
12 - Em Lusofilias, de Paulo Ferreira da Cunha (obra que já tardava), o autor, citando Pedro Moura e Sá, escreve: «... A nossa situação actual no mundo nos permite falar de Europa, porque não contribuímos em nada para a destruir. Por erros tremendos ou em virtude de circunstâncias trágicas, quase todas as nações do nosso continente se viram envolvidas na luta e na destruição. Portugal não tem remorsos perante a Europa, porque nada fez contra ela».
Também o Brasil nunca se incomodou muito com guerras.
13 - A indiferença jamais tocará a costa de qualquer ponto cardeal; nunca apertará a mão ao nosso semelhante, para lavrar futuras rotas do mapa-mundo. A indiferença jamais saberá que a Terra é redonda.
14 - Há fragas no litoral que lembram quilhas de embarcações estáticas. Mas basta que a flor do sonho nasça, no silêncio prenhe de toda a intuição que há na pureza do orvalho nocturno, para haver fome do céu. E nesta ânsia, no que nos cabe de indeterminismo do nosso sagrado instinto civilizacional, a procura é o feixe quântico de todos os rumos do espírito.
15 - Nós pelos outros; nunca nós por apenas nós. Esta é a divisa pela qual poderíamos definir a ideia mais ampla de portugalidade. O que assim não for poderá dar lugar a alguma forma de desintegração, a uma cinzenta formatação de ideias de pseudo internacionalismos, ou até fortalecer alguma subtil forma de absorção pelos nossos vizinhos. Se a verdade a vemos como ilusão, na indecisão entre a face externa e o lado de dentro, poderemos admitir ou não, qualquer dia, um outro 1640. Mas não deverá ser necessário outro Tratado de Tordesilhas, porque, para ir às «Índias do Espírito», parece não haver vizinhos por concorrentes...

ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 1

Carlos Aurélio



[texto originalmente publicado em Março de 2007]
Há na Península Ibérica dois estados independentes – Portugal e Espanha – e cinco nações ou pátrias, conforme suas línguas: Portugal, Galiza, Castela, País Basco e Catalunha. Os iberistas de ambos os lados, Portugal e Espanha, querem que haja um só lado ou um só estado. Os do lado de lá, os de Espanha, chamam naturalmente a parte menor a integrar-se na maior. Os do lado de cá, acham isso óptimo. Eu não acho! Até porque, continuo a ver como é facílimo a um português de Faro entender-se com um português de Melgaço, enquanto vejo como é dificílimo, senão impossível, que um espanhol de Badajoz perceba o que lhe diz um português de Elvas. Não obstante a União Europeia, continuam para bem da Europa, muito claras e nítidas as linhas de fronteira linguística. Haverá, por longos tempos, o lado de cá e o lado de lá.

1 - Para que pudesse ganhar significado o que aqui me traz a escrever, precisaria eu de ser bem lúcido e inteligente, certamente sábio, sedutor talvez. Mas se eu fosse poeta ainda mais decisivo seria. Já perceberão porquê.
Há perto de seis meses o semanário Sol publicou uma sondagem, na qual, mais de um quarto dos portugueses (27,7%) aceitava que Portugal e Espanha fossem um só estado, enquanto 70% negava tal proposta. Passadas duas semanas o jornal espanhol Tiempo repetia os termos da sondagem, agora no lado de lá, na qual uma maioria simples de 45% de espanhóis aceitava a mesma ideia. Esses espanhóis, muito tolerantes e abertos, nada egocêntricos como sempre nos habituaram, propunham ainda e em três imaginativas surpresas que o novo país assim constituído se chamasse Espanha, que a capital fosse Madrid e o regime de governação a monarquia! Só não sabemos se mantinham o garboso Juan Carlos de Bourbon, ex-exilado nos nossos Estoris, ou se optavam pela inovação dinástica dos Silvas, de Cavaco Silva claro está! Falo do nosso Presidente que ainda o é da nossa República, para recordar que este estalar de foguetório em sondagens, foi mundano aperitivo nos jornais aquando da visita de estado que o nosso casal presidencial realizou nessa altura a Madrid. Aliás, ao casal visitante os anfitriões ofereceram em primeira mão a informação da mais recente gravidez de D.ª Letícia. Coisas de famílias íntimas!
Já vê a benevolência do meu leitor que o assunto aqui trazido exige fundura de tacto e inteligência, só assim se superando em altura as conclusões do rescaldo de tão importantes sondagens telefónicas. Importa desde já que antes sondemos verdadeiramente e até à raiz, as razões dos constantes questionamentos à ideia superior da Pátria Portuguesa, coisa que já dura e que nos lembremos... há quase nove séculos, desde S. Mamede em 1128, nas cercanias alvoraçadas do Castelo de Guimarães. Nessa data, alguns nobres e muitos infanções do Minho e da Maia, o jovem Afonso Henriques e não sabemos ao certo qual clero e se, também, a recém nascida Ordem dos Templários sob a indicação de Bernardo, o Santo de Claraval, já aí algo de radicalmente novo e cristão quisera parir uma novel nação debruçada ao Atlântico, contemplando no Finisterra do Ocidente esse poderoso círculo do sol a morrer devagar no mar oceânico. Já então a viúva do Conde Henrique da Borgonha se aliara e se enleara com Fernão Peres de Trava, formando na altura a primeira dupla de iberistas, dupla que agora vem desembocar naqueles que aderem à integração espanhola na sondagem do semanário Sol. Diga-se que esta iluminação moderna dos iluminados de sempre, já aparecera anos atrás (1986) nos mesmos moldes e números (26%) na sofreguidão iberista do Expresso. O vírus é velho e ataca paulatinamente. Tal virose é incurável e regressa sempre como as gripes e, para a debelar com suficiência, precisaria eu da mordaz matreirice portuguesa de Gil Vicente ou do fogo devastador de Camões, da doçura subtil de Frei Agostinho da Cruz ou das metáforas do Padre António Vieira, da lucidez exacta de Fernando Pessoa ou dos relâmpagos em paradoxos de Teixeira de Pascoaes. Precisaria eu de ser poeta, e dos grandes, que titânica é a manha dos contrários à ideia de Portugal independente. É que, vitalmente e pela poesia tem Portugal justificado e pago aos deuses o milagre de existir, verdade nascida do mito superador que, desde Ourique, poetas e povo verteram em sagração canónica. Portugal é um milagre e a directa confirmação garantida pel’Os Lusíadas quando, no regresso da Índia, foi aberto ao Gama e à alma lusa o livre desembarque na Ilha dos Amores! Compreender isto em seu amplo alcance é potência dada àqueles portugueses que saibam dispor o coração ao acordo com a Pátria em sua vivência espiritual. Só por si, o portuguesinho manhoso, o homo oeconomicus em sua rasa visão, nada vê e até vai petrificando como a Medusa, o olhar de quem dele se aproxima. Fujamos pois para sítio tranquilo e continuemos após a refrega de S. Mamede, auspiciosamente deflagrada pelo solstício de S.João. Até o sol parou, “solsticiamente”, para que Portugal nascesse!
(continua)

domingo, 20 de setembro de 2009

NA SEMANA QUE VEM

Iberismo. Intitula-se Entre Cá e Lá e Os Iberistas do Costume o ensaio de Carlos Aurélio que, a partir de amanhã, e durante os próximos dias, aqui iremos publicar. Foi originalmente dado à estampa no Diário do Minho em Março de 2007, e posteriormente recolhido no volume Considerando os Filósofos (Tartaruga, 2008). Encerra uma reflexão sempre oportuna, e muito para além de qualquer conjuntura.

sábado, 19 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 7

XL
Tenhamos o culto cristão da liberdade espiritual e da fraternidade amorosa, isto é, da liberdade anarquista e da fraternidade comunista, para empregarmos a linguagem moderna. E eis o homem, como criador e criatura: criador ou anarquista, tende a alterar o estabelecido; criatura ou comunista, tende a conservá-lo, a permanecer no mesmo estado, a ser uma constante ou repetição de si própria, o que é visível nos minerais. Claro que a imutabilidade é mudança tão morosa, que se nos afigura imperceptível, como os ponteiros de um relógio.
Teixeira de Pascoaes

O CAMINHO DO CAMINHO, 5

Cynthia Guimarães Taveira


Entre véus
Ainda caminhando, ou deslizando, ou voando, não sabemos, neste caminho do caminho, aconteceu um dia o nascimento de um novo sol. Habituara-se à claridade amena que sempre se fazia sentir, mesmo quando no grande caminho, o outro, reinava a mais escura das noites, ou a mais feroz das tempestades. Mais que um despertar, três vezes nesse dia, havia realizado o nascer do sol dentro de si. O primeiro sol, o mesmo de todos os dias, e igual para todos quando as meias-luas dos olhos se abrem após uma noite de sonho. O segundo despertar, aquele mais iniciático e que consiste em estar com todos os sentidos presentes em consciência (treino exaustivo e moroso, trabalho sobre si de paciência sempre em perigo de viver dormindo). Mas nesse dia, um outro sol tinha nascido, sobrepondo-se a todos os outros. Involuntário, surpreendente, espantoso. O véu que cobria os seres havia sido removido, e não sabendo de onde vinha essa percepção aguda conseguia olhar para os familiares (as primeiras pessoas que vira pela manhã) e saber imediatamente o estado em que encontravam. Não era exactamente uma leitura da essência das suas almas, mas sim, o estado em que se encontravam, como uma paragem no tempo de uma viagem sucessiva de estados de alma. Aflitos, angustiados, em harmonia.

Esse sol, mais de vigia do que de vigília, prolongou-se por algumas horas. Lembrava-se que ao descer a rua que era habitual descer a caminho do trabalho, os homens e mulheres pelos quais passava, eram vistos como de facto se encontravam. O seu verdadeiro estado de alma. Vira tristeza, mas também alegria, preocupações e a pressa como um adjectivo de estado de alma. A variedade era igual à das flores. Estranhamente esses estados de alma podiam ser facilmente adjectivados pois havia sempre uma palavra que se sobrepunha a todas as outras quando os via assim passar, esses fantasmas autênticos.

Nesse dia, o dia do terceiro sol, soube do véu que cobria o mundo e que esse véu era o véu do seu próprio olhar. A miopia não era mais do que uma metáfora de uma outra miopia. As metáforas tinham-se transformado numa Escrita Real, paralela à vida... e seria deveras interessante pensar as doenças como metáforas, como por exemplo o autismo crescente presente nas nossas crianças. Sem chegar a um fundamentalismo tradicionalista, no qual obrigatoriamente uma deficiência do corpo corresponde a uma deficiência da alma, mas observando as falhas dos corpos que se pensam feitos à imagem e semelhança de Deus, como se de uma linguagem nova se tratasse. As falhas, nessa Escrita Real, podiam ser aprendizagens a caminho de uma obra perfeita, e quando impossíveis de corrigir no corpo, por incapacidade medicinal, possíveis de corrigir na alma, por capacidade do espírito.

Mas esta parcela estreita do caminho mais tímido do mundo havia suscitado outras reflexões e estas, surpreendentemente, tinham a ver com o sonho. O que esconde e o que revela. Anos sonhando e anos aprendendo que os temores e alegrias nocturnas eram construções simbólicas de episódios vividos e que essas construções simbólicas procuravam resolver, com uma outra lógica, aquilo que desperto não havia compreendido. Os sonhos demonstram bem a nossa sede de compreensão. Nos sonhos os amigos apareciam adjectivados num símbolo. Como o fleumático que surge como um macaco falando correctamente o inglês. Outras lógicas e outros véus. Os sonhos pareciam usar véus disfarçados de máscaras para que o símbolo pudesse falar livremente com a sua lógica intrínseca. E ocorreu-lhe que vivia entre véus: o véu do seu olhar para o real, e o véu do sonho que assim, velado, procurava compreender esse mesmo real. Assim era possível sonhar que se estava desperto e desse modo alcançar o despertar, e no real, já longe da almofada, era possível ver o mundo como um sono profundo, podendo, pela graça do espírito, ver um outro real para além da realidade. A vida é estranha e maravilhosa por isso. Quantos sóis estarão ainda para nascer?

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 6

XXXVI
Dói-me sempre esta frase: Deus é o mal e o bem. Mas, se não a admitirmos, incompatibilizamos Deus com a existência, ou o Criador com a Criação. Mas Deus humanizando-se, transitou da acção para a contemplação, ou de poeta para crítico, a fim de corrigir o seu Poema, que tem o mesmo título que a célebre ópera de Haydn. E onde estava o Orango da Selva, tentou colocar o Adão da Bíblia. A conversão do simiesco em adâmico é o esforço constante de Jesus. O símio é o homem natural, Adão é já sobrenatural, o super-homem oposto ao de Nietzsche, ou, melhor, no mesmo plano de Nietzsche espiritualizado ou transcendido.
Teixeira de Pascoaes

DA GUARDA A TIRANA...

Festival. Américo Rodrigues, poeta guardense e autor do blogue Café Mondego, de quem já aqui demos notícia a propósito de uma entrevista a António Telmo ali reproduzida, irá representar Portugal no mais importante festival de poesia da Albânia – o Poeteka –, a convite do Ministério da Cultura deste país. A notícia pode ser lida aqui.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 5

XLII
Deus, criando, é ele; destruindo, é Lúcifer. Lúcifer, eis a razão de Deus. E o nosso corpo não é a razão da nossa alma? O bandido gera o Santo, o profeta da Plebe, esse Isaías, fulmina o padre da Sinagoga, esse Caifaz, e o Filho corrige o Pai. E temos toda a Bíblia, todas as Bíblias, desde a de Nietzsche e Satan à de Moisés e Jeovah. De resto, há uma só Bíblia, com as páginas em conflito, - umas, lampejando o perfil de Cristo, outras, o do Anticristo. E, na página em branco inicial, e a tinta branca, a imagem única de Deus. Não a vemos, mas pressentimo-la, em certos momentos de inspiração, ou de sensibilidade afinada até ouvir o murmúrio da Fonte Original, a sinfonia do nascimento das esferas, tão irmã da música das lágrimas que nos deslizam pelo rosto, como as estrelas pela face da noite. E, em nossos sonhos, branquejam nebulosas, pois em toda a humana criatura, está o Criador, como o Cervantes no Dom Quixote e, no Hamlet, o Shakespeare.
Teixeira de Pascoaes

PENSANDO À BOLINA, 9

Pedro Sinde


A montanha inatingível
Caminhei por vales e montes, mas não cheguei à montanha. Não quiseste que subisse até ti, que olhasse o panorama distante, longe dos homens, que se avista do teu cimo. Não quero saber por que enviaste aquele dilúvio; agradeço-te até por não ter chegado. O que é chegar, afinal, senão a ilusão de julgar que se chegou?, a tristeza de se ter chegado?
O peregrino que chega à sua Jerusalém, chora quando chega, chora porque chega, chora porque quer já partir novamente, chora, enfim, porque no íntimo de si sabe que não chegou, sabe que nunca poderá chegar; e de estação em estação, de Jerusalém em Jerusalém, continuará a caminhar. Ele parece amar o destino para que se encaminha, mas não é assim, ama mais ainda o caminho, porque o destino é o mesmo para tantos outros, mas o caminho é só dele.

Estrela, o manto do céu. Hesed, de Carlos Aurélio: clique na imagem para a aumentar

Tu, montanha alta, serás a minha Ítaca. Serás a mais alta das montanhas, a inatingível. Em cada lugar por onde passe, será sempre o teu cerro que procurarei. Pobres dos que crêem que, por terem subido, chegaram a ti. Não sabem que ninguém pode subir a montanha, que a montanha não se sobe; na ilusão da subida nem reparamos que é ela quem bondosamente desce até nós.

O homem, peregrino, caminhante, aspira a qualquer coisa que nunca chega a encontrar plenamente. O que procura não é deste mundo. Uma ânsia, a que em português se chama saudade, vibra como uma chama no mais íntimo da sua alma; é essa chama o seu guia.
texto originalmente publicado no blogue Maranos

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 4

XXV
Deus existe como Supremo Bem ou Jesus e como o espectro do Mal ou Lúcifer; tão eloquente naquele grito de Paulo: Ai, de mim, que não faço o bem que quero, e faço o mal que não quero!
Mas como Jesus é que Deus nos interessa religiosamente. Como Lúcifer é de um interesse filosófico ou profano: Deus está na Bíblia ou no verbo de Isaías; o Lúcifer está no estilo de Darwin ou na Origem das Espécies.
Adamificar o antropóide, eis toda a actividade Cristã. A sombra de Darwin antecede a de Moisés, não no tempo dos relógios ou aparente, mas conforme o tempo real, em que o passado e o futuro não têm qualquer sentido. É nesse tempo supra-cronológico a sugerir-nos a ideia de eternidade, que vive a mesma alma que nos criou, e é a mãe da nossa alma racional. A primeira é imortal, e, em nosso ser, uma parte integrante do Criador; a segunda é mortal e originada por aquela, e parte integrante da Criatura: uma espécie de síntese electiva dos sentidos, que sabe aproveitar ou subordinar aos seus interesses, muito cientificamente, as forças naturais, na sua mais próxima actividade. Conhecer essa actividade, é tudo para um cientista, não para um sábio, é claro, a ponto dos cientistas pretenderem que a existência está restringida a essa actividade; e, para além dela, nada existe, ou, só existe a fantasia louca dos poetas.
O Cosmos está dentro de um compêndio de Física, como Deus de um tratado de Teologia…
Teixeira de Pascoaes

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 27

António Carlos Carvalho

«A maior parte das pessoas são outras pessoas. Os seus pensamentos são as opiniões de outro; as suas vidas são uma imitação; as suas paixões, uma citação...
Só há uma maneira de alguém realizar a sua própria alma, e é desembaraçar-se da cultura.»
Esta fina observação de Oscar Wilde, feita obviamente a respeito da sociedade do seu tempo (1854 – 1900), choca-nos pela sua actualidade -- por ser ainda mais verdadeira hoje, passado mais de um século sobre o momento em que foram escritas estas palavras.
O requintado irlandês não podia prever que um dia haveria uma verdadeira indústria montada à escala mundial para a transmissão de modelos, em todos os campos da existência humana.
Para ele, nas suas lamentações irónicas, a coisa situava-se entre a Imprensa, o teatro, os salões e os clubes.
Para nós, a coisa é muito mais complicada, e global, porque, além dos jornais e das revistas, atinge a rádio, a televisão, o cinema, a Internet, a publicidade, as artes (agora chamadas plásticas – talvez porque sejam de plástico) e o que ainda vem por aí.
Tudo o que, hoje, muitíssimo mais do que no tempo de Wilde, se chama cultura – e de que ele nos aconselhava a desembaraçarmo-nos rapidamente.
No espelho, ou no ecrã, dessa tal cultura nos miramos, nos contemplamos, e, julgando que nos encontramos e reconhecemos, acabamos simplesmente por imitar os últimos modelos do que significa existir «em massa».

Oscar Wilde
É um fenómeno que começou realmente no século XIX e que se desenvolveu no século XX (graças às técnicas de publicidade e de propaganda, confundindo-se e alimentando-se mutuamente), atingindo hoje o seu máximo graças aos chamados benefícios da globalização.
Agora tudo é espectáculo (foi a grande vitória de Hollywood) e entretenimento. E todos os lugares são também palco e plateia, simultaneamente.
Estamos em exposição permanente, vigiamo-nos mutuamente -- e ai daquele que se desviar dos últimos modelos, do que nos mandam ser (parecer) ou ter ...
Há muitos anos que me espanto com a força do precedente – uma vez aberto, nunca mais se fecha. Assim aconteceu também com o totalitarismo: «inventado» no século XX, supostamente derrotado pela força das armas, continuou a impor-se, sob outras formas mas com os mesmos efeitos, como se vê actualmente à nossa volta.
Sermos nós próprios, «realizarmos a nossa alma», como escrevia Wilde, implica um verdadeiro combate de resistência contra quase tudo o que dizem definir a nossa época.
Precisamos urgentemente de uma filosofia da rebeldia.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 3

XXIV
O dogma inabalável do Cristianismo é o da consubstanciação, a presença real de Cristo na Hóstia, ou a do Santo Espírito na matéria. E a nossa alma não está no alimento do seu corpo?
O espírito é na matéria, sem deixar de ser em si próprio, num outro plano desconhecido ainda, para lá da existência e da vida, sendo ele, como é, incompatível com o existir e o viver.
Quando a nossa inteligência penetrar nesse terceiro plano, alcançaremos a ciência total, perfeita. E no encantamento da Luz Plena, ficaremos para sempre…
Se falo desse terceiro plano, é que o pressinto, mas como um cego de nascença pressente a luz, não por intermédio dos olhos, é claro, mas talvez do tacto, que a luz é um fenómeno de choque. Esse choque nos nervos de um cego, fá-los vibrar do modo mais subtil. E tal vibração se lhe ilumina intimamente até ele imaginar que vê a luz. E é como se visse quase…
E a verdade do baptismo! O ser vivo é de origem aquática. Um beijo de luz na água, e eis a aurora da vida… E a vida é alma, e a alma descende do Espírito que pairou sobre as águas… E é sempre em nós, a sua aparição maléfica e benéfica, ou dois espectros, em perpétua luta, o Negro e o Branco, o Destruidor e o Criador. E assim, o Criador e o Destruidor, ou Deus e Lúcifer, se limitam mutuamente; e nenhum deles atinge o absoluto. Deus é quase omnipotente, omnisciente e omnipresente; numa palavra: Deus é quase Deus. O relativo domina o absoluto, ou a Divindade maléfica e benéfica.
Mas Lúcifer, depois de Jesus, é um Ente à parte, ou distanciado de Deus infindamente. Este distanciamento operou-se no ventre de Maria, da Mater Dolorosa, isto é, da Dor Humana, essa Mulher!
Teixeira de Pascoaes

NO CORAÇÃO DA ARTE, 21

Cynthia Guimarães Taveira




O Preto e Branco
O preto e o branco sossegam o coração pelo excesso. Com o preto e o branco tudo está excessivamente nos seus devidos lugares. Produzem uma espécie de paralisação no espaço. E procuram dizer que é possível o movimento mesmo no estático. O preto e o branco induzem, deste modo, a certeza da vida para além da morte estática, aparente. Por outro lado, o contraste repõe a verdade no caos das cores. O preto e o branco possuem o excesso de zelo das nossas convenções. Desde modo, de uma forma inconsciente, ridiculariza as convenções. Há sentido de humor no preto e branco. Uma gargalhada da própria essência que está sempre para lá de qualquer dualismo. É por causa dessa apreensão que o coração sossega. Mas depressa se cansa do sossego e procura a cor. Há a cor e há o a preto e branco. E há fases na vida de um artista como se este fosse regido pela lua. Uma lua estranhamente a preto e branco.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 2



VIII
Creio em Deus. Mas a minha crença não é absoluta ou anti-cristã; à Torquemada. Deus é uma probabilidade representada por um sim sobre um número de nãos incalculável. Mas o sim brilha inextinguivelmente no meu espírito. E os nãos passam, por ele, como sombras.
IX
A crença absoluta é um produto antipático do nosso orgulho inquisitorial, contrariante o mais possível da humildade cristã. Quem se julga na posse integral de uma certeza filosófica ou religiosa cai no mais trágico ridículo profundamente ibérico, esse ridículo que, em «Dom Quixote», fez chorar o Henri Heine, quando fazia rir o mundo!
XI
A incerteza é dinâmica, e extática a certeza. Esta, é inerte, estéril; aquela, animadora, reveladora, fecunda. Por sua virtude, o sentimento religioso, e, portanto, o Cristianismo está em crescimento aperfeiçoador, desde a raiz dogmática à poética folhagem. O que jaz aprisionado nas trevas subterrâneas, liberta-se irrompendo à luz do sol.
O dogma é uma espécie de poética, ou uma espécie de gaiola interior à ave ou à poesia que nela vive. E a lógica não é interior ao nosso pensamento, como o nosso esqueleto ao nosso corpo? Temos a esfera que pretende limitar o espaço, e a pirâmide que aspira a ultrapassá-lo.
XIV
O crente absoluto que acredita em Deus absolutamente, porque acredita em si absolutamente, pertence à horrenda família dos Torquemadas. Detesto os fanáticos, os intolerantes, os insociáveis, os Pedros ou Penedos, que levam as questões até ao desenlace da facada! Detesto-os, e admiro-os, ao ver como é possível a fossilização em vida de uns miolos! Assim o reino mineral surge no reino espiritual, e o esqueleto num magricela, como eu!
Teixeira de Pascoaes

AFORISMOS, 2

Eduardo Aroso

6 - Não pode nem nunca poderá existir ascensão espiritual sem darmos atenção ao que está junto de nós, indo assim do próximo para o afastado, do concreto para o abstracto. Isto não invalida, a quem disso for capaz, o simultâneo movimento contrário. Todavia, «quem se levanta cedo em busca de sabedoria, encontra-a sentada defronte da sua porta». Na sentença deste mestre anónimo está também o sentido de haver pátrias.
7 - O verdadeiro discurso em Língua Portuguesa é aquele em que a laringe segue o verdadeiro curso…
8 - Desdenhar Portugal como tema de reflexão é a mesma atitude (preconceito) mental de recusa, igual à do estadista que insistia na expressão «a pátria não se discute».
9 - Quem diz filosofia extravagante, diz filosofia extravasante, ou poesia transbordante. Menos ao jeito dos rios que temporariamente se estendem até às margens, e mais ao do poço de Jacob no espaço incalculável das suas águas…
10 - Universo Inteligente – Título de muitas publicações e manifestações científicas. Menos vulgar é conceber um Universo de Amor, onde na mais alta expressão está, naturalmente, a inteligência.
Obrigado, Leonardo Coimbra.

domingo, 13 de setembro de 2009

A MINHA CARTILHA, 1

I
Uma teoria religiosa ou filosófica necessita duma base [que] seja incerta ou oscilante, entre um sim e um não. É nesta oscilação que se firmam as verdades alcançadas pela nossa inteligência. Mas a base oscilante tem de ser de pedra… filosofal: filosofal para os filósofos, e de pedra ou Pedro para os místicos.
Necessito da pedra filosofal, que eu, não sendo filósofo, filosofo; e, não sendo padre, digo missa, no altar-mor da minha freguesia, - vulgo, Ladário.
II
A pedra filosofal é material, ou, antes, a matéria; a pedra apostólica é espiritual, ou, antes, o espírito. O homem é feito das duas pedras, porque existe e vive. A existência está na origem da vida; e a vida está na origem de outro plano não revelado ainda à nossa inteligência, mas entrevisto pela inspiração, por esse olhar misterioso que brilha no mais distante da nossa intimidade.
III
O sentido perfeito do real pertence aos que avistam o ideal. Quem ignora a folha, não conhece a raiz. O ideal é a última expressão da realidade, ou ela a continuar-se, além de si.
IV
A vida sai da existência e regressa a ela, que a existência é natural, e a vida é sobrenatural, uma espécie de efémero milagre. E então a vida consciente é o Milagre dos milagres!
A vida efémera participa da existência eterna, como a Criação do Criador. Logo, no efémero, há o eterno, e no humano transluz o divino, e temos Deus em Jesus Cristo. Um Cristo, que eu não admito senhor, nem na terra nem no céu.
Eu por exemplo, existo desde sempre, e para sempre existirei; mas apenas vivo, desde o dia 2 de Novembro de 1877. A minha eternidade apenas foi interrompida por um lapso de tempo; mas esse lapso de tempo representa o advento da consciência humana, a conversão do Criador em Redentor. Todo o ser humano é uma Bíblia, o Velho, o Novo e o Novíssimo Testamento: o Verbo Encarnado ou a falar.
Teixeira de Pascoaes

sábado, 12 de setembro de 2009

À DESCOBERTA DE PASCOAES

Testamento. Salvamo-nos em esperança ou em lembrança, que a lembrança também incide sobre o futuro na poesia camoniana. E que é a lembrança incidindo sobre o passado e o futuro? É a alma lusíada, a Saudade.
É desta forma que Teixeira de Pascoaes, reafirmando o império da Saudade, encerra as breves laudas de A Minha Cartilha, um livrinho póstumo que termina com a palavra FIM e onde desejou apenas dar, em resumo elucidativo, as suas ideias sentimentais, espalhadas na sua obra poético-prosaica. Concluído em São João de Gatão em 9 de Junho de 1951, mas somente publicado por ocasião do segundo aniversário da morte do poeta, A Minha Cartilha ficou sendo uma sorte de testamento espiritual. Bem mais conciso do que O Homem Universal, o opúsculo partilha com esta obra uma intenção de síntese bastante reveladora: Pascoaes escreveu sempre o mesmo livro, ao modo de tema e variações.
A partir de amanhã, e durante a próxima semana, aqui iremos revisitar A Minha Cartilha em alguns dos seus momentos fundamentais, contribuindo para a (re)descoberta de uma obra saída a lume em exígua tiragem, e que, não tendo nunca sido reeditada, constitui hoje uma preciosidade bibliográfica.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 13

[Álvaro Ribeiro, o entusiasmo e o patriotismo]

“Viver de entusiasmo é ser capaz de relacionar a via religiosa com a vida política, e de considerar sagrado o espírito da legislação. Tal acontece a todos os homens nas horas altas de devoção popular, quando o entusiasmo se explicita em patriotismo. Sacrifício próprio dos homens superiores é dedicar toda a vida à Pátria – acção bem diferente de expor o corpo à morte –, mas, para passar da potência ao acto, tal sacrifício exige atenção ao exemplo admirável, intelecção e imitação!...”
Álvaro Ribeiro
(excerto retirado de A Razão Animada, INCM, 2009)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 20

Cynthia Guimarães Taveira


As Mãos
Naquela loja de material de desenho está um velho pintor. Tem à sua frente, no balcão, um tubo de óleo de azul índigo. É mais do que azul índigo esse azul que está em cima do balcão. É todo o Oriente. São aqueles panos azuis estendidos ao sol sob um vento tranquilo que figuram nas imagens de um livro sobre o Japão. É um azul sintetizado entre o marinho e o turquesa nas sedas das rotas. Pousa as mãos sobre o balcão, liso de madeira, o pintor. As suas mãos são mais longas do que se esperava. Talvez por perseguirem incessantemente as cores da luz. E trazem tinta. Tinta fiel que vem com ele à rua, numa pausa. Ou numa urgência. Traz parte da obra no seu próprio corpo. Com que cores andou a pintar? Lá está: o azul índigo em falta, um rosa pálido, um dourado incandescente que brilha subitamente com um ligeiro movimento da mão. A tinta que o acompanha já é memória seca e lavável. Para quem o observa é o quadro possível: talvez um mar escuro, crepuscular e um pôr-do-sol já posto. No céu, laivos de rosa pálido e um ouro estampado no fim do horizonte como último suspiro do dia. Sim, talvez seja esse o quadro.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 31

O outro Álvaro Ribeiro
Pedro Sinde

Para o Professor Doutor Paulo Borges

Não esperava antecipar um pouco o trabalho que desenvolvo neste momento em torno do tema da operatividade da filosofia portuguesa, mas creio que a circunstância o pede.
É uma opinião comummente difundida entre estudiosos das universidades e também entre pessoas de pensamento maculado ideologicamente a ideia de que Álvaro Ribeiro é “apenas” um patriota. Não contava, porém, encontrar uma opinião parecida com esta, infundada e precipitada, em Paulo Borges, que tem tido uma responsabilidade grande na divulgação do pensamento português.
Aquilo para que gostaria de chamar a atenção aqui é apenas um dos aspectos “esotéricos” de Álvaro Ribeiro, que o coloca muito longe daquele plano medíocre em que Paulo Borges o quer encerrar; a ele e aos alvarinos, como lhes chama, quem quer que eles sejam.

Álvaro Ribeiro
É certo que Álvaro Ribeiro era muito secreto e só a um ou outro dos seus discípulos ou conviventes deixou transparecer o lado operativo da sua filosofia; poucas pessoas praticaram a disciplina do arcano como este filósofo. Mas se é verdade que o seu ensino era no essencial oral, deliberadamente acroamático e muito discreto, isto é, passado só a alguns que passassem vários testes, o primeiro dos quais era o da análise fisiognómica (como tem testemunhado várias vezes em público António Telmo), nada disto serve de desculpa para uma precipitação tal qual se pode ler num comentário da Nova Águia, feito por Paulo Borges. É que mesmo os seus livros, lidos com boa vontade, deixam transparecer a operatividade da sua doutrina; o que o coloca num plano diferente daquele em que o querem tantos encerrar.
Um exemplo disto mesmo, e talvez até o mais nuclear de todos, é a importância atribuída por Álvaro Ribeiro à oração mental. São várias as passagens em que Álvaro Ribeiro chama a atenção para a importância da oração, o que de resto é duma enorme coerência com a sua mensagem.
O exemplo mais flagrante disso é talvez aquele que se encontra numa carta publicada nos Teoremas de Filosofia pelo seu director Joaquim Domingues (Teoremas de Filosofia, 9, 2004):
“Habituei-me a relacionar o pensamento com a oração. Creio que o pensamento, se actua pela palavra escrita e proferida, mais bem se derrama pela oração mental. […] O meu teologismo exige-me concentração a que me habituei já nas horas em que vou de casa para o trabalho, e em que venho do trabalho para casa. Ser-me-á lícito exprimir em livro as verdades religiosas? Não deverei continuar com a prudência, que parece secura e rigidez, em que tenho escrito até agora?” (p. 37, os itálicos são meus)
Como se vê, Álvaro Ribeiro destaca nitidamente dois aspectos da sua intervenção: uma exterior, pública, em que mostra apenas o que quer mostrar e outra toda interior em que praticava a oração mental com concentração, de tal modo que isso constituía já um exigente hábito praticado peripateticamente nas viagens entre a sua casa e o seu trabalho.
Mas não precisávamos, sequer, que uma carta privada se tornasse pública, bastaria lermos os seus livros com aquele olhar livre de preconceitos. Um exemplo pode ser este que se segue, tirado d’A Arte de Filosofar, p. 233:
“O pensador que praticar as virtudes teologais, vivendo sempre em oração, dará no seu ambiente social a prova mais eloquente da existência de Deus.”
A hermenêutica desta citação pode levar o seu leitor a lugares antes insuspeitados, se estabelecermos a relação entre a prática das virtudes teologais como uma manifestação ou uma expressão, quer dizer, uma consequência de se viver sempre em oração; sempre. Esta última expressão poder-nos-ia levar a suspeitar, pelo menos, que se trata de algo como a oração jaculatória, dhikr, mantra ou o que quer que se lhe chame. Mas este ensino não se destinava a todos, apenas aos que tinham ouvidos; em todo o caso, se tivermos olhos para ler, poderemos deixar de cometer a injustiça banal de continuar a encerrar Álvaro Ribeiro no corpete de um formalismo meramente exterior. O seu patriotismo é só isto: temos de partir apenas de um porto, que é aquele no qual estamos necessariamente. Ser português não vem condicionar o homem, como se tivéssemos que nos libertar disso para ser “livres”. Ser português é a forma geral do barco da nossa alma e temos de a conhecer para saber se podemos navegar à bolina ou se o mastro quebra com ventos contrários. Conhecendo a forma que somos, podemos iniciar a viagem para o Absoluto; se nos ignorarmos, estamos apenas a fingir que navegamos. Somos humanos, não somos anjos; nascemos numa terra que tem certas qualidades; somos filhos destes pais e não daqueles; temos um determinado traço de carácter e não outro. Quem se der ao trabalho de ler o capítulo “Autognose” d’A Razão Animada, logo verá que Álvaro Ribeiro coloca aí apenas o início. De resto, se Álvaro Ribeiro fosse espanhol e não português, teria sido patriota por Espanha, por saber que o nosso mundo é heterogéneo.
Portugal, para Álvaro Ribeiro é esse cais de embarque a que não podemos fugir, porque é o nosso; não podemos fugir, nem fingir que estamos já para lá das condições qualitativas, heterogéneas, em que vivemos. Pelo contrário, Álvaro Ribeiro sempre insistiu que temos de partir delas, aperfeiçoá-las pela prática da oração incessante e da virtude. Por esta razão, se não podemos negar a terra onde nascemos, também não podemos ficar presos a ela. Não é à toa que Álvaro Ribeiro dá como ponto essencial do universo o movimento; como o universo, também as almas se devem mover em movimento perpétuo.
Um ponto final muito importante, para a compreensão do seu pensamento, é que Álvaro Ribeiro sabe que este mundo é para se levar a sério; quer dizer, se é certo que há qualquer coisa de onírico no meio de tudo isto, as almas, no entanto, são reais (!) e a sua obra, como a de Agostinho da Silva, de resto, é toda a pensar que o que se faz aqui é consequente; não estamos cá apenas para nos libertarmos, mas para criarmos, para sermos dignos da teofania simultaneamente maravilhosa e terrível que nos envolve e penetra. Não podemos fingir que somos orientais se, na verdade, formos ocidentais.
Há outro Álvaro Ribeiro para lá deste que nos aparece à superfície.
Quem melhor compreendeu o ponto da montanha em que se situa Álvaro Ribeiro foi António Telmo nestas palavras de 1989 (!):
“Prudentemente começa a Universidade a ensinar José Marinho e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno e Antero de Quental. Só Álvaro Ribeiro não é mencionado, a não ser para pôr sobre os seus livros o sacer esto [pelo qual se repelia um indivíduo de uma comunidade] dos mistérios romanos.” (Filosofia e Kabbalah, p. 99)