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quarta-feira, 22 de abril de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 6

António Carlos Carvalho

Vivemos hoje num tempo de confusões verbais – é vulgar lermos e ouvirmos que «a Torre de Belém é um ‘ex-libris’ de Lisboa» (claro que quem diz isso nunca viu um verdadeiro ‘ex-libris’ colado na página de um livro), que este ou aquela é um «ícone» (sem perceber que o verdadeiro ícone é uma imagem religiosa dos cristãos ortodoxos) ou que «a minha ideia vai de encontro à sua» (sem entender que isso significa «chocar» ...). E assim por diante. Às vezes parece que as palavras perderam o sentido que tinham e adquiriram um outro.

Mas há uma confusão de palavras que é muito mais antiga – dura há séculos. É a que diz respeito ao verdadeiro sentido de «profecia» e de «profeta». Confusão que está, aliás, consagrada nos próprios dicionários. Abrimos um deles e lemos:
«Profecia – predição do futuro, oráculo, vaticínio, prognóstico, presságio e conjectura.»
«Profeta – o que prediz o futuro, por inspiração divina; adivinho, vidente; título que os muçulmanos dão a Maomé» (repare-se na omissão: é como se não houvesse profetas na Bíblia, só no Alcorão. Curioso, no mínimo).
Mas quando lemos os textos bíblicos, a Profecia e o Profeta não «encaixam» nessas definições do dicionário:
-- a Profecia só acessoriamente é antecipadora dos acontecimentos;
-- o seu *dizer* não é um *predizer*, é uma categoria da Revelação divina;
-- a Profecia prossegue a espera, o tempo histórico em que o futuro é imprevisível.
O fim da Profecia, em termos bíblicos (nos séculos VI-V antes da era comum, com Hagai, Zacarias e Malaquias), não é o fim da História: a História prossegue, com a passagem do testemunho aos Sábios e, do outro lado do Mediterrâneo, o início da Filosofia (poucas vezes se repara nesta coincidência -- fim da Profecia, início da Filosofia...)
A leitura atenta da Bíblia mostra-nos que a Profecia é, sobretudo, o desvendamento do sentido da História segundo o ponto de vista do Criador; a Profecia anuncia a era messiânica; a Profecia é, primeiro que tudo, uma «informação» sobre a situação do indivíduo e do povo em relação à Aliança com Deus.
Por seu turno, na mesma Bíblia, o Profeta (que o texto hebraico chama Nabi) é aquele que é «chamado», o escolhido por Deus para ser o seu enviado, o seu porta-voz, o portador da Palavra Divina.
O Nabi recebe um apelo (chamamento) de Deus para ser o seu parceiro, para viver uma experiência a dois: o encontro entre o Homem e Deus na Aliança – isto acontece desde Abraham, o primeiro a ser chamado Nabi (Genesis, 20, 7). Abraham é chamado, é enviado, é o confidente de Deus, com quem dialoga e junto de quem intercede (como acontece no episódio de Sodoma). O Nabi é investido pelo Espírito, é escolhido «arbitrariamente», às vezes antes mesmo de nascer, como acontece, por exemplo, com Jeremias. Escolhido para quê? Para avisar, para lembrar as condições da Aliança ao povo de Israel mas também às nações (a Aliança noética ou noaquita, a que foi estabelecida entre Deus e Noé).
Para o Nabi, a Profecia (Nebuá) é um peso, um fardo – sozinho, mas com Deus, o Nabi apela ao arrependimento, ao retorno aos caminhos apontados por Deus. O Nabi surge nos períodos de maior crise, quando o Povo perde a sua natureza (de povo de reis, sacerdotes e profetas), quando o Rei não aplica a justiça, quando o Sacerdote abandona a noção de pureza – então surge o Nabi para restabelecer o diálogo entre o Povo e Deus. Por isso, muitas, vezes, ele é um contra-poder.
O Nabi não se reduz a proferir oráculos ou a predizer futuros falaciosos – não é senhor do tempo, não sabe o que será o futuro, deixa apenas avisos e uma palavra, Laken, «talvez», «todavia», porque sabe que Deus também se arrepende, é justo, e os homens também. O Nabi é um arauto da justiça, é um lutador, um combatente: bate-se pela ética, que tem prioridade sobre a religião, anuncia, denuncia, lembra, exorta, faz actos simbólicos. Ele é um mediador entre o Céu e a Terra. O Nabi é «o intérprete do grande diálogo entre o Divino e o Humano a que chamamos História» (Martin Buber).
Deus diz a Jeremias: «Tu serás como a minha boca» e a boca do profeta é aberta à força (15, 19). O Nabi fala para os homens do seu tempo e o seu «slogan» é «paz». Só fala depois de escutar a Palavra e de obedecer (porque está apto a escutar).
Como dizia Maimónides, a visão profética é uma audição, na Profecia é o ouvido que vê, é a escuta que é o sentido da visão.
Pode-lhe acontecer sonhar, ter um sonho profético ou visionário, mas o sonho é uma 60ª parte da Profecia ou o fruto não amadurecido da Profecia. A visão tem de ser traduzida em palavras, porque só a palavra cria, actua. A palavra do Nabi deixou de ser subjectiva – é comunicação, transmissão de uma mensagem divina; é a resposta a um apelo, não é mais palavra, é vocação. O Nabi assemelha-se a um cativo, não prediz futuros, não faz milagres. Quer provocar uma tomada de consciência (o verdadeiro Profetismo não é catastrofista). O Nabi faz compreender as consequências, falando em nome de Deus – e a palavra de Deus é reversível, não é uma fatalidade. O Nabi diz ao Homem que ele também é um criador. Se o Nabi provoca a crise, se faz terríveis advertências, também constrói e planta, restitui a Aliança e suscita a Esperança, não o desespero.
Toda outra vai ser a posição dos apocalipses e dos autores apocalípticos; neles, o futuro está previsto e é visto como algo que acontece por si mesmo, sem que o Homem o possa impedir. O Apocalipse, que vem através de um canal persa, fala de salvação e descreve uma situação dramática, é uma revelação total e definitiva – surge no contexto do Segundo Templo e do exílio de Israel. O autor apocalíptico não fala, escreve – escreve um futuro pré-determinado, um destino; anuncia que o fim da História está próximo. É um discurso escatológico, um saber sobre o fim; revela o que será esse fim, é uma predição. O Apocalipse sucede à Profecia e substitui a Profecia.
É esse o sentido do texto de Daniel, que será tão citado pelo Padre António Vieira e que ele tanto elogia: Daniel, «um grande profeta», «tem o primeiro lugar entre os verdadeiros profetas, porque é um Profeta dos Reinos e das Monarquias».
Vieira, intérprete do tempo, ao qual chama «o mais certo intérprete das profecias», diz também que o Bandarra é «verdadeiro profeta», «profetizou», e as suas profecias, «já cumpridas», «são mais de cinquenta»; Bandarra foi «alumiado pelo lume sobrenatural, profético.» Mais, o Bandarra é «o profeta para Portugal.»
Vieira vê a profecia, que diz ter-se perpetuado na Igreja, com olhos muito próprios: «Qualquer sujeito, por indigno e indigníssimo que seja, e ainda que careça da própria fé, contanto que seja criatura racional, é capaz do lume da profecia, e de ser verdadeiro e propriamente profeta». Para Vieira, profetizar é anunciar e prever. E os sonhos são profecias, as revelações são feitas em sonhos: «O modo ordinário de Deus revelar as coisas futuras aos profetas ou é por visões ou por sonhos, e de ambos estes modos eram as revelações que Deus fazia ao Bandarra», «intérprete do futuro.»
Por outro lado, Vieira afirma que S. João foi «o último de todos os profetas antigos» e «as profecias do Apocalipse são próprias do tempo que hoje corre.»
É neste contexto ideológico e teológico que António Vieira escreve o que escreveu. Por isso não é de estranhar que, no século XX, Fernando Pessoa, seu discípulo, tivesse lançado o apelo: «Troquemos Fátima por Trancoso.»

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