(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 31 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 4

Carlos Aurélio


(continuação do 3.º capítulo)
Literatura corrente (bem distinta da popular) sempre houve e haverá, sem que a imaginação do escol espiritual se tivesse obrigado a segui-la, tal como hoje assistimos. Hoje não há escol que pense. Até as cabeças que exibem as folhas de loureiro do Nobel literário, já talvez imaginem e escrevam ao estilo TV. Mais que triste é aterrador, deixa-nos pregados à terra, pois que nos afastámos de imaginar pelo espírito dos céus. A TV em massa, mesmo a “boa” é sempre má, já que nos compacta a alma emotiva até ao zero da vertigem imagética. A velocidade de cognição mental é sempre superior à da sensibilidade. Com o ritmo assim dessincronizado é impossível decantar percepções, apurar emoções, sublimar a alma no turbilhão voraz das imagens. Esta árvore só pode dar maus frutos, pois que é de sua natureza que tudo se degluta em cascas secas onde já não haja polpa nem sumo. No Cinema há beleza própria, pois sempre nos coloca fisicamente na sala escura que nos remete para a Caverna Platónica, com a dificuldade evidente de o projeccionista não coincidir com a luz solar dos inteligíveis. Acreditamos todavia que a atmosfera cinematográfica está algo defendida a montante, na criatividade do cineasta, enquanto os dejectos do “You Tube” são mera cloaca que escoam a jusante.

David, de Miguel Ângelo

Se a voracidade imagética actual praticamente sufoca a imaginação criadora dos poetas e, em muito debilita a imaginação animada do que resta dos mestres do romance, alimenta, ao invés, a pulverização em fantasia sensitiva que o consumismo global trouxe. É difícil que venhamos a ter mais ícones nas artes plásticas como o foram os casos últimos de Picasso ou Dali. Guernica, no dealbar da 2ª Guerra Mundial, é hoje uma obra iconográfica impossível no movimento do escol cultural ou intelectual, como antes haviam sido Goya ou Leonardo Da Vinci. Já ninguém é capaz de brigar em Florença pelo David de Miguel Ângelo ou andar à pateada e aos gritos em Veneza por causa das óperas de Verdi. Só nos restam hooligans em hordas que a TV fabrica e vomita, agora que fizemos globalmente do globo terrestre um emblema ao nível do pontapé. A fantasia, que tem tanto de iníquo como pouco de inócuo, nasce do fascínio sensitivo pela “arte” publicitária, pelos painéis a cintilarem néon, pelo comércio de hipermercados que tudo vende, dos legumes aos preservativos, da cultura à religião new age. É por isso que a fantasia vai sendo grátis, enquanto a imaginação mesmo à venda, não há quem a possa comprar. Desde os anos ’50 que assim é quase em exclusivo, mal a América depôs na prateleira da História essa Europa de alguma imaginação animada, a que ainda sobrava da rive gauche parisiense. De lá para cá desde há muito que entrámos, através das séries serigráficas de Andy Warhol, no mundo consumista da repetição artística, mecânica e mental e, pior ainda, na clonagem sentimental maciça. Escasseiam as almas para a obra-prima, rareia a vida como fruição única.

Seria possível e significativo perceber tudo isto bastando recorrer a símbolos publicitários, vê-los como catalisadores quase exclusivos da imaginação ocidental nos últimos sessenta anos, logo após a 2ª Guerra Mundial. “Adeus” artes plásticas, mesmo a arquitectura ou a poesia, por elas nada passou de essencial de molde a insuflar imaginação à escala global, como era antes realizado pela arte religiosa erudita, pela arte popular também. Tudo o que vemos é “arte” via TV, a pop em massa da populaça sem povo, agora com a Internet associada. As próprias expressões artísticas ao vivo estão muitas vezes contaminadas pela forma televisiva e aqui bate o ponto. O real é a realidade da TV. Daria esse estudo um outro texto mais expositivo para cobrir o percurso de iconolatria comercial dos anos ’50, desde o optimismo meloso, encorpado na boa voz de Frank Sinatra, à adolescência mimada e quase fútil de Marilyn Monroe; ou da década de 60, em seu delírio hippie ainda que sério e radical, contudo facilmente deglutido em sua ingenuidade juvenil posta a render no mercado de acções; ou dos anos ’70 de gente jovem, quase trintona, tão amargurada em rispidez musical metalizada, tão fruste em seu anarquismo bombista, tão anestesiada na ressaca revolucionária dos Amigos de Alex. Enfim, poderíamos assinalar emblematicamente para cada uma das três décadas, não uma obra-prima artística relevante, antes qualquer logótipo significativo extraído das parangonas publicitárias.

Por exemplo, nos últimos trinta anos, há mesmo três imagens de marca que são três metáforas estéticas na catalisação imaginária global, cada uma delas mais poderosa que qualquer expressão ou obra artística. Referimo-nos concretamente à Coca-Cola como emblema nevrálgico para os anos ’80, à Benetton para a década de 90 e ao C.S.I. para a actualidade, desde 2000. As três significam em si mesmas, ícones de um determinado estilo de vida, atitudes comportamentais, três indicadores do vazio que enche a humanidade.

(continua)

O CAMINHO DO CAMINHO, 3

Cynthia Guimarães Taveira



A Europa vista pelo sonho de Veneza
Piano pianíssimo deslizava sobre as águas a gôndola dos pensamentos. O rosa acrescentado de azul tinha o encanto da primeira névoa que, quando, depois de mortos, envolve o novo céu. Nessa barca parecida com a da morte, os pensamentos não morriam, antes formavam espirais de memórias e cheiros. Memórias dessa cidade com demasiados momentos perfeitos, demasiados momentos juntos uns aos outros, para que não se re-questionasse tudo outra vez. Não era necessário o sossego místico, o desapego ou entrega, enquanto estava deitado nessa barco. Era apenas necessário semicerrar os olhos, respirar e ser. Por isso essa barca se assemelhava à barca dos mortos. Não que atravessasse um rio para outro mundo. Limitava-se a estar sempre no mesmo mundo. Os palácios eram toda a Europa concentrada, sua história, suas convulsões e êxtases, mas disso tudo restando apenas uma presença tocando o amor pelo oriente. A água não tinha o barulho normal que costuma ter a água que bate contra o barco, depressa ascendia em melodia. Melodia rendilhada e silenciosa, trepando pela gôndola, tocando-lhe os dedos, tocando-lhe as vestes, tocando-lhe a cara, tocando-o todo e elevando-o acima da cidade. Os cheiros da fruta e das flores eram a grande Primavera oferecida ao céu. Das estrelas viam-se rosas e narcisos, gotas de orvalho frescas escorrendo pelas cerejas, e as gôndolas tornavam-se cornucópias abundantes, brotando sem fim toda a frescura suave de um canto afrutado. Veneza havia sido criada pelos sonhos do alerquim. E cada gota, cada lágrima era uma flor a abrir. Europa significa apenas memória. Memória colhida num campo de sangue. Memória em imagens de arte e sentimentos velhos. As pontes eram braços estendidos entre vizinhos odiados e amados. Europa eram muitas janelas, muitos tons, muitas músicas, flautas e pianos, lutos e festas dignas de deuses. Não eram óperas encerradas em teatros. Eram óperas de vida. Cada europeu cantava uma ária no teatro vazio da sua consciência. Europa era a reviravolta da cornucópia no seu limite quando invadia o céu e ensinava os anjos a cantar. Era a austeridade da pedra e o calor da madeira, nessas voltas, tonturas, ameaças, gritos, lágrimas e esgotamentos.
A gôndola deslizava nessa cidade fantasma. Era uma memória que brotava e encarnava nas cúpulas várias, ovais, redondas, simples, discretas, abóbodas-ovos de explosão aparente mas com a contenção de quem não chora e não se excede na alegria em frente ao público. Piano, pianíssimo, a Europa passava, pelos canais, pelas sombras, pelos crimes, pelos banquetes, passava como uma rainha, deixando atrás de si a água que reflectia os rostos mascarados, em vénia, delicada, triste e digna, enquanto ela passava.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 3

Carlos Aurélio


3
A imaginação criadora é propícia a lançar as almas livres na mais bela das orações: a convergência das mónadas ─ unidades únicas, reflexos do todo universal ─ propõe e clama pela fraternidade das criaturas sustentadas no amor, o fogo criador. Orar é convergir para o alto. Oraram os nautas que Camões fez desembarcar na Ilha do Amor enquanto rezava nas estrofes d’Os Lusíadas. Os portugueses foram épicos não por chegarem à canela e à pimenta em Calecut, mas por terem buscado as mónadas pela via do amor. Viu assim António Telmo[1] e por aqui vislumbramos a realidade imaginativa da Senhora da Saudade na obra de Pascoaes, por exemplo, e até aceitamos que Balzac tenha realmente visto Eugénia Grandet em aparição junto à sua escrivaninha, enquanto escrevia o romance que dava vida à personagem. E também que Flaubert tivesse que recorrer a que lhe lavassem o estômago em urgência hospitalar, para lhe expurgarem o mesmo veneno “imaginado” com que matou Madame Bovary. A imaginação cria realidade de alma, sendo a alma muito mais que energia mental, transcendente à psique deitada e exposta no divã psicanalista. A alma não se reduz a um canto da memória, não se confunde com a consciência. Ela tudo anima e envolve. O que de nós vamos conhecendo é tão só, apenas e sempre, uma ténue figura exterior em busca da forma eterna que nos faz existir. Temos forma única e somos mónada.
Dito isto, e isto dificilmente pode caber em desenhos desanimados, importa que nos apercebamos da decadência no romance por via da mera fantasia sensitiva. «Ceci tuera cela» ─ a TV matará o Livro, depois do Livro ter debilitado a Arquitectura.

Manoel de Oliveira
Titubeiam em lucidez os que optam pela quantidade em desfavor da qualidade e assim não reparam que a Banda Desenhada contraria a essência da Iluminura antiga. As imagens que se abrem à luz dos símbolos faíscam na obscuridade dos textos sagrados e, impondo um hieratismo, mantêm o mistério, enquanto a sucessão desenhada condiciona e paralisa a alma que verdadeiramente deseja ser criativa. Basta que nos lembremos das Bíblias em bandas desenhadas para crianças para avaliarmos a desgraça dos estragos. No fundo, continuam as palavras a determinarem a eclosão da liberdade em arte e, possivelmente, as artes plásticas remetem sempre para legendas implícitas. Para subir da percepção pelos sentidos até à emoção pela alma, as palavras serão sempre forças ou virtudes no mundo da relação. Isto é tão evidente quanto poderoso nos filmes de Manoel de Oliveira ou noutros cineastas «simbolistas» como Federico Fellini ou Win Wenders, e muito mais na pintura medieval. Certa vez Manoel de Oliveira, justificando a um jornal porque filmava tantas vezes a «vida dos ricos», aduziu que o fazia em busca da verdade, pois sendo «ricas» as pessoas que melhor conhecia só a verdade lhe interessava. Manoel de Oliveira quis dizer que prefere filmar a alma humana em vez da moda ideológica. Há quem filme a suposta pobreza à superfície para se fazer aos prémios que os ricos e os bem-pensantes gostam de atribuir. Aliás, o amor pelos pobres não suporta o facilitismo sentimental: dar de comer a um pobre em nossa casa terá o seu valor, mas amá-lo impõe sentar-se com ele à sua própria mesa, junto à sua miséria. Em cinema, o absurdo da acção pela acção no plano físico, resulta na mais cabal inacção de alma. O estilo «sexo e porrada» à moda de Hollywood nasce da fantasia sensitiva, a qual, fazendo descer as personagens a bonecos sem alma, abre depois caminho aos desenhos desanimados. O mesmo em literatura.

A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci: clique na imagem para a aumentar

Falando em literatura não resistimos a desmontar a colagem que os escritores de sucesso foram fazendo paulatinamente ao cinema, e até, à televisão. Quando a narrativa literária prescinde dos tropos que lhe são próprios, são as palavras que perdem a braveza pura que as distingue como fonemas em busca da luz. Tomar palavras por convenções ou simples mensagens é matar-lhes a forma pela figura, secar-lhes a alma, desistir da poesia e do símbolo. Muito do que se escreve cai na sedução da montagem cinematográfica, em clara inversão de potências. Sendo legítimas as relações entre as várias expressões artísticas, a essencialidade do Desenho, por exemplo, há-de sempre precisar da linha, a Pintura, da cor. Vem isto a propósito desse best-seller do embuste recente que foi O Código Da Vinci. O autor, Dan Brown, movido pelo facilitismo contemporâneo que faz da Igreja Católica pele de tambor apetecível para todo o zurzir, urdiu um thriller em texto escrito, bem apropriado portanto à sensitividade das multidões, cujas fantasias são moldadas pela televisão. A eficácia saiu garantida, se bem que literariamente não passe de zero absoluto. E, mesmo quanto a eficácia narrativa, há obstáculos óbvios que aqui rememoramos a esmo: o fresco que está em Milão, A Última Ceia de Da Vinci, é dele, de Da Vinci, não foi pintada por Cristo e, seja o que for, é apenas uma interpretação de um artista, não o absoluto da Verdade; e se, nessa pintura é de facto Maria Madalena que está ao lado Jesus, isto congeminado a propósito da sua figura imberbe, então, o que fez o pintor de S. João, o mais jovem dos discípulos? Estando treze à mesa, contando com Madalena, terá portanto faltado um conviva à Última Ceia? Entre os braços de Jesus e de Madalena o escritor americano vê um vazio natural que logo transforma em “V” esotérico, forma e símbolo do Graal e do sexo feminino. Com este critério aplicado a quaisquer duas figuras sentadas a uma mesa, meu Deus!, quantas imagens da arte mundial ocultarão o Graal?! Enfim, cansa expor o óbvio. Aliás, Dan Brown, confessa o seu propósito quando substitui o nome do pintor e de Mona Lisa pela frase anagramática do seu enredo: «O, Draconian devil! Oh, lame saint!». Com o “O”, prévio e invocador, claro!

Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte
(continua)
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[1] ANTÓNIO TELMO, Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Guimarães Editores, 1982.

NO CORAÇÃO DA ARTE, 14

Cynthia Guimarães Taveira




O Encontro
Quando dois pintores se encontram e falam do mesmo universo dá-se momento raro na história da humanidade. Devia mais haver monumentos a esses surpreendentes encontros do que a ditadores de pensamento único. Quando se encontram, encontram as suas obras e estas, de alguma forma, completam mais um pouco do puzzle de uma revelação. Esse instante é fundamental na vida desse dois artistas encontrados pois encontram parte de si próprios. Sofrem uma confirmação, não da sua identidade, pois essa bem no fundo não existe, mas uma confirmação daquilo por que anseiam. Como se duas pinceladas se sublinhassem a si próprias. Há a confirmação de serem apenas instrumentos ao serviço do Belo, da Verdade e da Sabedoria. Tornam-se confrades de um templo único, não de um pensamento único. Tal como os místicos falam a mesma linguagem. Nesse encontro, que pode ser muito breve, há uma projecção imediata no futuro: um dia viverão nesse universo onde, provavelmente, estarão outros que os esperam. Podemos chama-lhe mesmo o paraíso da arte.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 2

Carlos Aurélio


2
«Se a razão é, efectivamente, o que distingue e separa a humanidade da animalidade, a imaginação é o factor divinizante» ─ eis uma frase esquecida de um filósofo português propositadamente esquecido, Álvaro Ribeiro, e que aparece precisamente na abertura do capítulo A Imaginação na sua obra maior, A Razão Animada.[1] Quando nos demitimos de pensar, quando também desistimos de imaginar, ficamos presos nos rudimentos da razão prática que, por utilitária, pouco mais movimenta que o resultado dos sentidos, esquematiza apenas volições numa espécie de desenhos animados entre emissores e receptores. Exercida sem mais, anula o vasto mundo interior da alma, fabrica um mundo onde a fantasmagoria febril impera. Razão prática é já dizer muito, pois há nesta um mínimo pensável, mais vale exprimi-la por fantasia sensitiva, reduzida que fica ao sensível.
No vértice oposto pode a imaginação aceder ao mundo do espírito e aí será criadora, porque fecundada pelo poder verbal. Dizemos verbal aduzindo a Verbo, tomando por ele a porta para a razão teórica ou contemplativa que a liberdade, a intuição e a inteligência bem podem ter a graça de despertar. Toda a sensação pode, se decantada pela atenção inteligente subir a emoção superior, toda a experiência pode ser estética para se transmutar em metafísica, numa escala ou numa escada em degraus de palavras e de silêncios, numa evolução do egocentrismo físico e animal até à fraternidade sublime, lugar de convívio do espírito amoroso entre os seres. Tudo tem alma, até as ideias. Nessa rarefacção de montanha em que o ar é frio e lúcido, longe do sentimentalismo quente e húmido que os pântanos exalam, abrem-se portas à imaginação criadora, factor divinizante que aproxima o homem do Criador. Medianeira entre a fantasia sensitiva dos baixios e a imaginação criadora quase alpina, lampeja aqui e ali a razão estética, capaz de fazer eclodir a imaginação animada, designemo-la assim. A imaginação animada activa-se naquele que inicia o caminho da purga sensorial, enquanto se entrega à sobriedade de meditar as teses superiores que outros já contemplaram. Apontando ao alto treina-se o olhar, apura-se a alma, dá-se pelo poderoso silêncio do Mistério. Esta é a razão porque as religiões ensinam a combater os vícios pelo exercício das virtudes. No fundo, tudo começa nas nossas imagens porque nelas habita a nossa alma, dentro delas vivemos, toda a acção reclama imaginação seja como meta ou como rescaldo e assim se pretende exercitar a imaginação animada. Faz falta imaginar “bem” para se bater à porta do Reino. É aí que são decisivos os símbolos, postos nesse vazio de silêncio aberto pela purga, símbolos dos quais se avistam e ocultam as paisagens de neblina que escudam a santa teoria, lugar do espírito de onde emana a graça das ideias puras.
Nos símbolos se centra a grande luta pelo domínio imaginativo que conduz a humanidade corrente, símbolos que são sementes vivas nas almas humanas. Os símbolos não são desenhos ou esquemas, não são alegorias ou bonecos, ou melhor, passam a sê-los se não tivermos mais nada. A vida simbólica activa-se continuamente com o sangue etéreo da nossa imaginação. «Ceci tuera cela» ─ eis a evidência que Victor Hugo pôs no seu romance, um belo livro impresso que ajudou a acabar com a arquitectura simbólica. Falamos pois dos vastos horizontes da alma, apetece dizer, do domínio do Império do Meio, dando por símbolo a grandeza de territórios orientais onde nasce o sol da subtil deambulação das imagens que nos movem e nas quais nos movemos. Os sonhos, os sonhos enquanto dormimos, são uma das evidências do exercício da imaginação animada e que, aliás, sempre assinalam o real estado anímico que nos move ou tolhe.

Leonardo Coimbra
Cada época é a sua imaginação. A actual era cosmonáutica mostrou-nos a Terra como uma esfera azul a vogar no espaço, na qual um poeta bem poderá ver uma bola de sabão sideral soprada pela imaginação dos deuses; mas é mais provável que o frenesim do futebol faça descer a mesma esfera até aos verdes relvados, o que é mais realista já que tudo sacralizamos no altar desportivo. Se em tradução quase literal por futebol disséssemos o espectáculo do pontapé, logo veríamos onde estacionou a nossa fantasia sensitiva.
Não nos desviemos. Tudo tem alma e tudo pode mudar, se activarmos a percepção do mundo como viva e convergente sociedade de mónadas ao modo do Criacionismo[2] de Leonardo Coimbra: tudo é alma em busca de correspondências, desde os minerais ao mundo vegetal e animal, no humano e no angélico, nos elementos e nos princípios, tudo converge em escala hierárquica até ao Espírito criador. Nada está isolado, tudo vem e vai para o uno, tudo são seres que se não perdem no homogéneo, antes ganham expressão única e multiforme, tudo verte para o Uno. O Universo clama. Nesta ascensão vital, cada percepção física pode ser animada até à experiência estética, domínio da alma de onde se activa e invoca a razão teórica. A intuição virá. A imaginação animada medeia e labora até às emoções depuradas, útero ou antecâmara da imaginação criadora, acaso se dê a hierogamia entre alma e espírito. É deste género de fecundação que emergem as obras maiores de poetas e de criadores, de místicos até, pois todo o místico não pode deixar de ser o poeta abismado no silêncio que o divino lhe impôs.
Mas não nos desviemos. «Ceci tuera cela» ─ a TV matará a Imprensa.

Antecedentes: 1.ª parte

(continua)

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[1] ÁLVARO RIBEIRO, A Razão Animada, reedição da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com posfácio de Joaquim Domingues, Lisboa, 2009, p.187.
[2] LEONARDO COIMBRA, O Criacionismo (Síntese Filosófica), Lello & Irmãos, Vol. I, Porto, 1983.

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 20

António Carlos Carvalho

Quem tiver tempo e paciência, até mesmo gosto, por blogues sobre livros e leituras, já deve ter percebido que anda por aí muito entusiasmo por uns brinquedos electrónicos que supostamente acabarão por substituir os próprios livros tais como os conhecemos e amamos – feitos de papel e tinta.
Quase todos os dias chegam notícias de novidades nesse sector. A última que me chegou deixou-me simultaneamente divertido e perplexo: a Amazon, maior livraria em linha, tinha descarregado «1984» e «O Triunfo dos Porcos» («Animal Farm»), de George Orwell para não sei quantos dos tais aparelhómetros, os Kindle, antes de perceber que afinal não detinha os direitos para tal operação. Vai daí, não esteve com meias medidas: apagou os descarregamentos nos próprios leitores electrónicos de quem os estava a ler. Os textos foram, pura e simplesmente, destruídos à distância ... Incluindo as notas que os infelizes leitores, quando era caso disso, tinham feito à margem dos tais textos.
No seu túmulo, Orwell deve ter dado uma gargalhada bem anarquista.
E os agentes da PIDE, em gozo de merecida reforma, devem-se estar a lamentar de nunca terem tido tal instrumento ao seu alcance, quando caçavam livros proibidos nas livrarias.
Mas do que os blogues de livros não falam – e é bem mais grave e significativo – é o que vai por aí em matéria de falência ou de dificuldades agravadas das próprias editoras, sem as quais, convém lembrar, não há livros nas livrarias.

Ontem mesmo, em conversa com um editor aflito («Eu só queria vender isto ... Nunca tive problemas de tesouraria e agora estou cheio de dívidas aos bancos porque ninguém me paga», desabafava), fiquei a saber que há duas grandes editoras prestes a fechar portas, um grupo de editoras com atraso de três meses nos pagamentos e um grupo de livrarias (dos poucos que restam) a pagar tudo com letras e com grandes atrasos nos pagamentos aos seus funcionários.
Se isto continuar assim por mais um tempo, palpita-me que vamos ver muito encerramento de editoras e de livrarias com nomes sonantes.
Às vezes penso que nos coube em sorte vivermos numa época em que tudo acaba – uma época de fim, de encerramento de um certo mundo: o nosso.
E então, quem sabe, talvez nos dediquemos a escrever, uns para os outros, novas versões de «O Mundo de Ontem», de Stefan Zweig. Que depois copiaremos à mão e distribuiremos entre os amigos.

terça-feira, 28 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 1

Carlos Aurélio


1
Há poucos anos, a máquina reprodutiva da imaginação global pôs em desenhos desanimados Nossa Senhora de Paris, obra romanceada pela qual Victor Hugo fez de uma cidade um cenário subido a protagonista. Dizemos desanimados porque esses desenhos, ainda que espantosamente perfeitos, chegam a desanimar o leitor entusiasta dos livros de Victor Hugo, e também esvaziam a alma a qualquer das personagens vivas com que o romancista soube fecundar a nossa imaginação, seja a de Jean Valjean, que de presidiário chegou a santo, seja a de Gilliatt, esse herói engendrado na espuma vitoriosa da luta entre mares e céus. Ao caso, Quasímodo mereceria melhor sorte que descer a Corcunda de Notre-Dame, pois se no romance a bossa das costas não lhe impede o peito amoroso pela cigana Esmeralda, no próprio título dos desenhos da Disney a catedral parisiense, passando de actriz a atributo, fica tolhida do voo largo que a leve à veneração genuinamente religiosa. Dito em tese de teorema, os desenhos animados pela TV animam muito mal a imaginação e limitam-se a mexer com a fantasia sensitiva, imprimem na alma uma imagem exterior, feita e fabricada, anulando a expressão pessoal que emana do poder da palavra. A actual decadência verbal em todos os graus escolares, do infantil ao universitário, alia a falta de leitura com o excesso de desenhos animados e culmina no recurso exaustivo a onomatopeias, corolário que poupa demonstração.

Victor Hugo
Mal começa o Livro V do romance, Vítor Hugo faz dizer ao lascivo arcediago Cláudio Frollo uma frase enigmática, enquanto este, com a mão direita pega num livro e, com a esquerda, distende gesto largo até à Catedral de Nossa Senhora de Paris: «isto acabará com aquilo», o livro impresso destruirá o edifício, a Imprensa irá acabar com a Arquitectura, tese que o autor demonstrará com fulgor apologético nas páginas seguintes. Lido no original a frase dispara, fulminante: «ceci tuera cela». Como se vê, isto não vemos no filme da Disney, sendo assunto actualíssimo, que é o de se saber como difere a expressão artística para activar ou matar a imaginação humana. Na vida vulgar e corrente não existe em nós o vazio de imagens: onde estão umas não podem estar outras. Em pleno século XIX Victor Hugo profetizou portanto através de uma personagem do século XV, dizendo da decadência da arquitectura que, à época, era pouco mais que revivalista. Claro que no século XXI continua a haver arquitectura, mas é bom que a possamos aquilatar pelo denso simbolismo do Gótico e pelo hieratismo sóbrio que ainda hoje descobrimos na Nossa Senhora de Paris, em Chartres ou em Alcobaça. A arquitectura contemporânea esvaece em meros truques tecnológicos ao jeito de escultura abstracta, ou então, decai ao pretender arranhar-os-céus enquanto afasta o homem do chão e da natureza.
Ao contrário do que nos querem fazer crer, não é a luta de classes marxista ou a economia capitalista que fazem mover o mundo. A humanidade é sempre movida pelas ideias mesmo quando a ideia é não as ter, ou então, por essa outra que quer pôr a luta económica como centro da roda universal. E também é certo que, desde há muito, a Imprensa de que falava Victor Hugo tenha vindo a ser substituída pelo poder da TV. Resultado: na família que desaparece e na vida social que se pulveriza, tudo concorre para a anulação do poder da palavra, para a dementação geral. A Filosofia aceita entreter-se com as migalhas que sobram da Ciência como se as hipóteses e os teoremas das leis naturais não pudessem ser diferentemente pensados. As ideias escasseiam ou morrem na uniformização, a Política subalterniza-se, a tecnologia dita banalidades e, ao homem comum, disputam-lhe os abutres as imagens que às catadupas lhe inoculam. Sendo raríssimos os que pensam, a grande luta no mundo não é pois a da luta de classes, mas a que incide sobre o domínio da imaginação. Esta inclui aquela.
Entre as sensações do corpo e a intangível inteligência pura, entre o mundo sensível e os arquétipos inteligíveis, há uma alma que sofre, a do homem que deambula escravizado, acorrentado no fundo obscuro da Caverna de Platão, preso às imagens sensitivas que, às ocultas, o mundo da relatividade opinativa lhe faz passar atrás das costas. Menorizado nas palavras, amputado no pensamento, algo ou alguém lhe estimula essas imagens pela destreza de prodígios técnicos, através de uma panóplia de fantasias exteriores. A fantasia nasce da mera imaginação sensitiva, é excrescência e resíduo das sensações que, pela alma, não foram depuradas pela atenção, pelo exercício da inteligência não justificaram a razão de o homem ter a cabeça levantada e os olhos capazes de avistarem os céus. O étimo fala por si: fantasia é coisa de fogo-fátuo, elucubrações sobre fantasmas residuais, consequência de quem nunca se aventurou verdadeiramente a imaginar.

(continua)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 25


[da série Nocturnos]

NOITES DE CHUVA

Eu não sei, ó meu bem, cheio de graças!
Se tu amas no Outono – já sem rosas –
A longa e lenta chuva nas vidraças,
E as noites glaciais e pluviosas!…

Nessas noites sem luz, que – visionários –
Temos quimeras místicas, celestes,
E cismamos nos pobres solitários
Que tiritam debaixo dos ciprestes!...

Que evocamos os líricos passados,
As quimeras, e as horas infelizes,
Os velhos casos tristes olvidados,
E os mortos corações sob as raízes!...

Nessas noites, meu bem, em que desfeito
Cai o frio granizo nas estradas,
E tanto apraz, sonhando, sobre o leito,
Ouvir a longa chuva nas calçadas!...

Nessas noites, eléctricas, nervosas,
Todas cheias d’aromas outonais,
Que a tristeza tem formas monstruosas,
Como, num sonho, os pórticos claustrais.

Noites só em que o sábio acha prazeres,
– Tão ignorados dos cruéis profanos! –
E em que as nervosas, místicas mulheres,
Desfalecem, chorando, nos pianos.

Nessas noites, meu bem! é que os poetas
Têm às vezes seus sonhos mais brilhantes,
Folheiam suas obras predilectas…
- E evocam rostos… e visões distantes!

Gomes Leal

sexta-feira, 24 de julho de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 13

Cynthia Guimarães Taveira




O Atelier
Não há ordem nesses pincéis, nesses copos, nesses lápis. Só há lágrimas de tinta espalhadas pelo chão e pelas mesas. O pintor desce às suas sombras e perde os sentidos nas sombras do mundo. São tantas as sombras do mundo. E trémulo eis que as recorta, uma a uma e as transforma em sombreados nascendo a pouco e pouco para a luz. O negro não existe, apenas há um caminho para o sol ou para o fogo de uma vela. O negro é parte do caminho, não é nada em si. Não há metáforas filosóficas com a vida. O percurso da visão é o da clarividência. A revelação precede a interpretação assim como os profetas precedem os filósofos. O atelier desordenado é igual à imperfeita natureza com laivos de perfeição. O atelier não é o lugar do artista. É o artista. Essa paisagem de papéis, tintas, óleos, telas semicerradas na sua finitude inacabada é a sua intimidade desencontrada, nunca totalmente desnuda e revelada. O artista não se procura, não faz parte da sua própria interrogação, encontra-se parcialmente, sem querer, na obra deixada no tempo, embora fora do tempo.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 2

Cynthia Guimarães Taveira



Quando Deus dorme, nós sonhamos
Sonhei com um eclipse. E com uma nuvem. O eclipse, no início, não consegui perceber se era do sol ou da lua. Primeiro, pareceu-me ser da lua. Depois, alguém no sonho me disse que era do sol. E em seguida apercebi-me de que era um eclipse ao contrário. O céu não ficava mais escuro. Ficava cada vez mais luminoso. E uma nuvem solidificava-se, a pouco e pouco, em luz. Uma luz do outro mundo. Não era o eclipse do céu. Era o eclipse deste nosso mundo sombrio. Ah, se fosse possível uma hierofania universal e todos sucumbíssemos ao encanto da luz!
O monoteísmo cristão tendeu a dar a entender às suas ovelhas (não seremos um pouco mais do que ovelhas? Com tantos animais logo seríamos ovelhas, nós que interiorizamos todos os animais e, por isso, podemos imitar qualquer um...) que Deus estava no céu, estático, sentado confortavelmente num trono, sem nervos nem angústias, nem vontade de mudança a não ser para castigar. Abrindo e fechando as suas portas num jogo bi-rítmico, de bem e de mal, sorte ou azar. Numa dança de justiça que nos ultrapassa e nos detém a cada passo moral que possamos ou não dar.
Mas eu vi o céu a mudar de cor. E mudar de estrelas, nos hemisférios, nas estações do ano. E mudar as elipses dos planetas, e mudar as rotas dos asteróides, e mudar as gravidades das massas de terra. O céu só muda. E nós mudamos com ele e com essa nuvem que muda, não de forma, mas de essência luminosa.
São frequentes os sonhos de metamorfose. Os escaravelhos luminosos egípcios aparecem girando o sol, o escaravelho, aquele que se gera a si próprio. Animais nunca antes vistos, uma natureza metamorfoseada. Uma nova natureza feita de outros materiais só possíveis em sonhos. Um corpo leve que flutua e mergulha nas águas como um pássaro. A água que dança no ar. Não se imagina Deus estático e imutável depois de se sonhar assim. Como se toda a vida fosse apenas a possibilidade de metamorfose.
E até que ponto mudamos com Deus? Na outra vida, complementar, sonhada, viajamos com Ele, n’Ele.
O Hinduísmo, que muito aprecio, diz-nos que as imagens são ilusões e que, mesmo em estádios espirituais muito avançados, ainda existem resíduos dessas ilusões. A Libertação é o fim dessas ilusões. Como o mestre que sai para fora desse animal que é o cosmos e os vários cosmos que vivem dentro dele. Mas até essa imagem é um nascimento, uma espécie de parto para fora de qualquer coisa. Mais forte do que a condenação da morte parece a condenação de nascer, porque toda a morte implica um nascimento. E nascer é ser outro, ser sempre diferente. Uma caminhada incansável pela vida, pelos seus meandros. Condenados à luz, enfim. A essa encantadora luz...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 19

António Carlos Carvalho

Em Julho de 1969, vi as imagens difusas da chegada à Lua num televisor do quartel de Tavira. Confesso que não me entusiasmaram nem me tiraram o sono. Eles bem podiam caminhar lá na Lua mas eu sentia-me preso ali, naquele quartel sujo.
Mais tarde percebi que tudo aquilo não passava de uma manobra de diversão para não vermos o que se preparava: a «conquista do espaço» para fins militares (a «Guerra de Estrelas» de Reagan) e de vigilância dos nossos movimentos e comportamentos.
Claro que os cientistas e os entusiastas da ciência ficaram todos muito contentes, ainda o estão e reafirmam que isto é tudo bom para nós, que foi feito (e será) sempre para o nosso bem. Mas entretanto, lá no alto, entre nós e a Lua, colocaram aqueles muitos satélites que, sob o pretexto da melhoria das comunicações entre os seres humanos (cada vez mais solitários), servem objectivamente para vigiar o que dizemos e escrevemos nas nossas mensagens electrónicas.
A mais sinistra ficção científica tornou-se realidade nestes quarenta anos e ameaça transformar-se num pesadelo ainda pior. Enquanto uns seres humanos dementes compram lotes na Lua (com vista para o Mar da Tranquilidade...), há já quem fale da fatalidade de termos de emigrar em massa para outro planeta, visto que este está já condenado... Podemos bem imaginar o que seria esta gente alucinada a colonizar um outro planeta... Curiosamente, Edgar P. Jacobs, o genial criador de banda desenhada, terminou exactamente dessa maneira a sua aventura «O Enigma da Atlântida» -- os Atlantes sobreviventes partem em naves de uma cratera dos Açores para um outro planeta, onde a sua civilização prosseguirá...

Dois homens contemplando a Lua, de Caspar David Friedrich

Quanto a mim, céptico e desconfiado de todos os chamados progressos, prefiro continuar a enternecer-me com uma noite de luar a entrar-me pela sala adentro. Ou com o efeito da Lua nos nascimentos. Ou com aqueles chineses e japoneses de alma antiga que ainda se deslocam aos lagos para ver a Lua cheia espelhada nas águas – ainda está viva a lenda do pintor-poeta que se lançou às águas para colher o reflexo da Lua e assim pereceu, poeticamente.
Lembro que, em japonês, existe uma palavra para cada tipo de Lua (por exemplo, «yunzuki» designa a Lua do início da noite). E na minha colecção de «Haikus» encontro estes:


«Mesmo a Lua
não tem de saber
que brilha»


«No outono da minha vida
a Lua é imaculada
e no entanto»
(Kobayashi Issa)


«Ao luar
deixo a minha barca
para entrar no céu»
(Kôda Rohan)


«Depois de contemplar a Lua
a minha sombra
volta a seguir-me»
(Yamaguchi Sodô)


Finalmente, um ensinamento do Zohar: no mundo futuro, o Sol e a Lua terão a mesma dimensão. Tal como o Homem e a Mulher.

terça-feira, 21 de julho de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 23

Pinharanda Gomes
O testemunho de um (seu) leitor
Pedro Sinde
Pinharanda Gomes é uma alma que não precisou de Universidade porque é universal, não precisou de Faculdade porque já é dotado dela. Num tempo em que a Universidade se opõe à Cultura – segundo a acepção de Álvaro Ribeiro de que só é cultura aquilo que pressupõe um culto – nada haveria a aprender por uma alma que se situa tão longe, tão acima, do que hoje nomeamos de Culture (à francesa ou à americana). Que difícil e heróica batalha a de permanecer, tão discretamente, erguido num meio tão hostil, que não reconhece nada do que no seu território nasce, como uma mãe que rejeitasse o filho à nascença por não o reconhecer como seu!
Sabemos que a batalha só termina quando o inimigo se apodera do estandarte; graças a Deus, o estandarte permanece intacto, pois eles não sabem reconhecê-lo. Por muito que atinjam os porta-estandarte, não sabem reconhecer o estandarte. E, hoje, este está distribuído por homens valorosos que bem o guardam. Seria (?) fácil ceder; ceder um ideal para conquistar um lugar no Ensino, ceder outro para conquistar um lugar na Política, ou outro para conquistar um lugar na Igreja. Difícil é permanecer e dar a sua vida, consciente de uma missão mais elevada do que um mero posto social: a missão hoje faz-se pela omissão.
Há algo que desde sempre me intrigou: o que leva um homem a escrever milhares de páginas? É claro que a mesma pergunta poderia ser feita quando um homem escreve apenas três páginas ou três linhas; mas quando escreve milhares de páginas, tem de haver um motivo muito forte que sustente essa dedicação. Seria interessante descobrir, pela dedicação, a indicação que supra ou subjaz à escrita.
Se, perante a obra de um romancista que escreva muito mas apenas para entreter o leitor – e dizemos entre-ter como quem diz reter –, fizermos essa pergunta, a resposta é fácil de ver, pois pelo fruto se vê a árvore; e o motivo aí jaz ou subjaz de modo mais ou menos obscuro e quase sempre de modo subconsciente ao romancista.
Este não é o caso de alguém que escreva consciente de que se remete a um público escasso, pois não busca notoriedade ou, pelo menos, não a busca primacialmente. O motivo que rege a sua escrita tem, portanto, de ser necessariamente outro. O caso de Pinharanda Gomes parece ser este, pois escreve no seio de uma comunidade, onde impera uma ambiência que não faz ressonância com a ideia que preside aos seus escritos, e onde, para além disso, esta ambiência aparece de modo desarmonioso. É o que se passa num mundo, num país, numa pessoa que, como um rio, corre impetuosamente – e cada vez mais impetuoso é o seu correr – para a tão ansiada foz. O caminho porém, para Pinharanda, não é o da foz mas o da nascente.
Pinharanda é efluente de um ribeiro: e só por um manso ribeiro pode o homem ascender com menos esforço à nascente, à fonte de onde ele brota; se ­dizemos com menos esforço, é porque a ascensão requer sempre esforço, o esforço que se oponha à natural ou artificial queda que, artificial ou naturalmente, vivemos ou nos deixamos viver.
Mantenhamos a pergunta que fizemos acima e procuremos no estilo da sua escrita. Se interrogarmos esse estilo, segundo o preceito alvarino de que a aquisição de estilo próprio demonstra a maturidade, a independência e a liberdade do escritor, se interrogarmos pelo estilo, dizíamos, teremos de reconhecer que ele nos dá a sensação nítida de que se oculta por trás dele um espírito inquieto – ainda em sentido alvarino.
O seu estilo rigoroso, quase ascético, na busca constante do étimo, remetendo a Filosofia à Filologia, oculta, mais do que mostra, a inquietação de quem se esforça por ir à fonte da palavra, do sentido. Não poderíamos, contudo, adjectivar a sua escrita de clara. O esforço pelo rigor e pela sobriedade, que obriga o leitor a seguir gradativa e evolutivamente a sua leitura, com a intenção de desbastar na palavra aqueles apêndices com que a degenerescência da língua a encobre, acaba, todavia, por tantas vezes apor-lhe outros tantos apêndices.
É precisamente este ponto que me intriga e que tantas vezes tem suscitado em mim uma outra questão: o seu estilo, de uma racionalidade ‘excessivamente’ abstracta, funciona como um leito que orienta um rio, um ímpeto místico, que, de outro modo, seguiria desgovernado? Ou, pelo contrário, é uma prisão, uma barragem que se impõe a si mesmo alguém que, assustado, sente o ímpeto desse caudal profundo?
A questão é arrojada, mas honesta, pois a formulo tantas vezes na leitura dos seus livros. Se o que eu interrogo aqui é arrojado, seria, todavia, desonesto responder, ter a pretensão e a rudeza de analisar, retalhando. A questão que levanto refere-se à Vida, à Vida com v maiúsculo, àquele ímpeto que o homem oculta em si, àquele fogo divino cuja percepção, intuição ou visão nos pode lançar no temor e no tremor ou, pelo contrário, impelir a altas e valorosas conquistas. Poucos são aqueles que dele se apercebem e menos ainda aqueles que a ele reagem e respondem com a coragem devida e pedida. Da leitura dos seus livros decorre sempre, para mim, a sensação de que Pinharanda tem essa veia mística. Mas toda a questão estaria em saber, aceitando este pressuposto, se há a assumpção dessa veia, regularizando assim o caudal que, de outro modo, correria, anárquico, quer dizer, sem um norte; ou então se há na sua atitude uma defesa que, assim, não deixasse o caudal correr livremente, com aquela liberdade de que o espírito é dotado, soprando onde quiser. Pinharanda aparece-me, está visto, como o coração de místico cuja cabeça recusa; recusa, tenho a impressão, porque sente a força, o ímpeto, a verdade e a luz com que esse ‘lado’ de si o habita. Estará a minha impressão certa?
Entre a vastíssima obra de Pinharanda Gomes, por entre a sua espantosa erudição, há algo de essencial para lá das questões históricas, linguísticas e filosóficas, e é a esse algo, inapreensível para mim até hoje, que me refiro. Há algo que rege a sua obra de serviço e sacrifício a uma Pátria tão ingrata, nesta fase de obscurantismo, em que os homens, que ainda restam "de pé no meio das ruínas" (segundo a expressão de Julius Evola, retirada, creio, de Ernesto Jünger), vivem isolados aqui e ali em ilhas: a época é de defesa – a cada época a sua estratégia.
Estou convencido de que em algumas páginas intensas, profundas e fecundas como grão de mostarda, esta dúvida teria resposta por parte de Pinharanda. É um pedido que aqui faço publicamente, um pedido de um texto que retivesse nitidamente o núcleo e só o núcleo do seu pensamento; não uma síntese, essa o leitor que a faça, mas aquela essência que as palavras tantas vezes cobrem mais do que descobrem.

Um exemplo
O que viu o seu espírito na teologia da saudade? Que porta se abriria em Portugal por uma Igreja que desse ao povo o que é do povo, como quem dá "a Deus o que é de Deus"? O nosso povo é saudade, e como saudade sente a presença e a simultânea ausência de Deus. Caberia ao clero profundar este tema, dar-lhe vida, enchê-lo de alma. Mas qual clero?
Seria essa a direcção que poderia apontar uma teologia que reconhecesse a Saudade na Trindade, naquela "tripartição em que ela é factor ôntico (inerente a algum ser), factor cósmico (inerente ao ser no mundo enquanto universo) e factor antropológico (inerente ao ser do homem no mundo). Essa tripartição advoga uma comunicação entre as três partes, comunicação que não há necessidade de colocar fora do acto pelo qual melhor entendemos efectuar uniões de substâncias diferentes, a religião" (daquele livro com o modesto título Introdução à Saudade, de Dalila Pereira da Costa e Pinharanda Gomes, Porto, 1976, p. 197). Como não reconhecer aqui uma analogia com as Três Pessoas da Santíssima Trindade?
E como não reconhecer a Parábola do Filho Pródigo na justificação dada por Pinharanda à frase acima citada? "A legitimidade do juízo é inquirível mas verificável: nenhuma individuação se garante sem prévio ou posterior recurso a uma unição; não há singularização sem primado universal. Na singularidade dos singularizados veremos o exercício da liberdade e, na universalidade do universalizador, veremos a ideia da autoridade, ou do que é simplesmente autos, sem necessidade de se buscar a si mesmo e, por conseguinte, de se interrogar em liberdade, uma vez que, no supremo autos, a verídica autoridade se confunde com a verídica liberdade." De facto, na parábola, o pai permanece na sua casa, e é o filho, "singularizado", que parte em busca de si mesmo, exercendo a sua liberdade, ainda não a verídica liberdade (ou talvez já...), a essa reconhece-a ele, paradoxalmente, no regresso a casa disposto a servir o pai como escravo. Esta parábola magnífica, interpretada à portuguesa, vê o impulso da saudade tendente à unição, não só na necessidade que o filho sente de regressar, mas também na necessidade que ele sente de partir, quer dizer, na necessidade de singularização. E Pinharanda dá-nos a confirmação logo de seguida: ''Neste contexto, a suidade é intercessora da singularidade e da universalidade, é o vínculo que torna possível a religação das mesmidades e das alteridades à unidade que as identifica, e onde as singularidades assumem o principal critério de unicidade e de universalidade."
Vemos na saudade essa ânsia escatológica, a chave para a redenção ou reintegração dos seres. E isto é diferente da interpretação teológica alemã, francesa... é a nossa interpretação, a nossa forma de cumprir individualmente o universal.
Pinharanda, que sabe isto muito bem, é um autor no qual é evidente o esforço pela revivificação da Tradição dentro do contexto católico romano, a que muitos portugueses se têm oposto, de resto. Para isso tem recorrido ao estudo aprofundado dos autores portugueses, desde muito antes da fundação da nacionalidade, onde já imperava o "espírito do lugar". Neste esforço não tem descurado o estudo da influência de outras tradições que por cá têm passado (como a judaica e islâmica, embora com juízos problemáticos, por excesso de zelo) e deixou-nos esse trabalho, de uma erudição raras vezes vista, nos volumes da História da Filosofia Portuguesa. Este estudo do passado tem, para mim, interesse pelo que pode apontar de futuro: que indicação nos é dada pelo trilho (ir)regular que temos seguido? a dissolução que vivemos apagará todos os vestígios e pistas deixados nesse trilho para que o novo dia se realize? que direcção seguirá o nosso Portugal?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 24



[da série Nocturnos]

SONETO À LUA

Ó lua, Ó lua! quantas vezes, quantas,
Ungindo os montes d’um clarão bendito,
Vestes de branco as árvores e as plantas,
Tiras o crepe às rochas de granito!

Além, detrás das serras te alevantas,
E, descrevendo a curva do infinito,
Tombas do mar nas águas sacrossantas…
Pálida noiva desse leão maldito!

Banhas de luz, com o teu rosto humano,
Os que passam a noite sobre o Oceano,
Quase perdidos, n’um baixel sem mastros…

E eu que leio no azul, como um Caldeu,
Não compreendo esse alfabeto, – o céu,
Sem ti, letra maiúscula dos astros!

Leça, 1885

António Nobre

domingo, 19 de julho de 2009

RAZÃO POÉTICA, 3

Pinharanda Gomes, o Filósofo Autodidacta*

«Há, para além do natural e do social, do herdado e do partilhado, um jardim secreto onde ninguém entra, a não ser o próprio homem. Mesmo em Igreja, cada homem tem um modo de dialogar com o seu Deus, onde a igreja não entra: o fiel tem a sua vida de comunidade eclesial, onde a igreja entra e ensina; mas há, no íntimo do homem, um local onde só ele e Deus sabem o que importa. É a vida pessoal inalienável. É o miolo do sobrenatural»

PINHARANDA GOMES


O Filósofo Autodidacta do andaluz Abuchafar Abentofail é a história de Hay Benyocdan, o misterioso mestre de Avicena, contada aqui como a de um homem abandonado, após ter nascido, numa ilha deserta de outros homens, cujo espírito atingiu os mais altos conhecimentos especulativos, tendo por primeira e única mestra a gazela que o amamentou. No plano do conhecimento instrumental, o seu itinerário foi em tudo semelhante ao que arqueólogos e historiadores imaginaram para a humanidade: progressiva entrada na civilização por sucessivos aperfeiçoamentos da adaptação ao meio, passando pelas fases que o raciocínio deduz para que a investigação no terreno as confirme. Há só uma diferença: a criança era de ascendência régia, se não divina, inconfundível com o antropóide imaginado pela arqueologia por evolução da matéria.
Teixeira Rego era um autodidacta como autodidacta é Pinharanda Gomes, que o biografou. Causou escândalo nos meios universitários coimbrões ter sido posto por Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a ensinar algumas disciplinas fundamentais. Do ponto de vista universitário, um autodidacta é um analfabeto. Pinharanda Gomes nunca foi chamado a ensinar na Universidade, nem até na Universidade Católica, apesar da sua perfeita ortodoxia e da sua obra monumental. Também é certo que, na Universidade actual, não há nenhum Leonardo Coimbra.
O homem primitivo foi também imaginado por Teixeira Rego como um autodidacta. Aprendeu tudo por si próprio, até o falar, reagindo ao meio e reflectindo. Tivemos que esperar muitos milénios até que viesse a fundar a Universidade e a tornar-se um inimigo dos autodidactas, isto é, de si próprio. Todavia, pelo caminho que assim tomou, parece que se impediu, como veremos, de atingir conhecimentos tão altos como os de Hay Benyocdan.
Não se vê, pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego, se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.
Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.
O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates. Pinharanda Gomes, enquanto expunha a doutrina de Teixeira Rego, deve ter pensado em Teillard de Chardin, pois não reagiu opondo-lhe qualquer objecção:
«O aparecimento da Nova Teoria do Sacrifício provocou surpresa e originais comentários. Basílio Teles, em seu rigorismo ascético, mostrava dificuldade em entender o emaranhado da floresta de enganos em que o amigo se metera. Bruno, afoito mas precavido, numa fase de ascensão para a ideia de Deus em sua transcendente pureza, evitou dar parecer, por andar molestado. Teófilo Braga, em seu positivismo, adianta que Teixeira Rego deveria ter descrito as três fases nutritivas da Religião: o mito do Éden, ou religião ctoniana; o mito da Serpente, ou o rio gelado; e o mito do Fruto Perdido (sic), ou da bebida fermentada. Não tinha que fazer isso, o autor do livro, para quem a Religião só surgiu após o Pecado Original, sendo, por isso, uma das provas da queda. Segundo a lógica, Rego estava mais certo do que Teófilo: só há Religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Só há Renascença por importar nascer de novo.”
Será isso. Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?
Terá reparado Pinharanda Gomes num dos textos de Teixeira Rego que escolheu para figurar no fim do livro, onde ele chama a atenção para “a serpente e esse alimento proibido que foi a causa da civilização e da ciência, esse alimento que foi a origem de todo o mal mas que foi também a origem de todo o bem”? E, se reparou, terá recordado ao mesmo tempo as palavras de Jesus Cristo no Evangelho aos discípulos, “sois Deuses”, que repetem as palavras da serpente no Paraíso?
Não podemos saber se reparou, porque os autodidactas, crescendo e aprendendo sozinhos na sua ilha, têm segredos. É pena, porém, que não tenha explicado melhor o silêncio de Sampaio Bruno sobre o livro do “discípulo amado”. “A ideia de Deus em sua transcendente pureza” era assim tão oposta ao mistério redentor da Encarnação que levasse o filósofo a preferir calar-se, “por andar molestado”, a ter de dizer “não” a uma doutrina que punha no comer carne a origem de todo o mal e de todo o bem?
Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus. (...) ler mais

sábado, 18 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 6

“Da Revolução[1]

Portugal vive entre duas tradições. Reaccionária, uma, revolucionária, outra. É reaccionária a tradição do Sebastianismo. É revolucionária, a tradição dos Descobrimentos. D. Sebastião perspectiva a decadência, o cativeiro e o desterro, não obstante o seu carácter messiânico. Os Descobrimentos perspectivam a ascendência, a liberdade, e a conquista da terra prometida.
A Portugal importa, nesse caso, suplicar pela vinda do novo Infante de Sagres, cuja missão será a de descobrir a Índia ideal. Sebastião simboliza o desejo de domínio, o Infante simboliza o propósito do descobrimento. Aliás, a missionação portuguesa assentava numa missionologia de testemunho. O modelo inspirava-se de S. Francisco: não se trata de ir por esse mundo converter, tornar igual a mim. Trata-se de ir por esse mundo e de viver segundo a vida de Cristo. A seguir, à curiosidade dos povos perante esse modo de vida, responder: “– Vinde e vede.” (Jo, I, 39). Deixando a quem vem, e a quem vê, o direito de escolha, a liberdade de opção. O conversor não é o apóstolo. Ele é tão somente o testemunho do que tem o poder da conversão pela graça. Não nos restam dúvidas, com tudo isso, que a revolucionária missionação portuguesa foi possessa da reaccionária missionologia da Europa central e nórdica, que nos ensinou a vender o Cristianismo como quem vende chapéus. Lugar para a diferença: a missionologia portuguesa define-se como um modo de estar; a missionologia europeia define-se como uma tecnologia de promoção. Quais, nesse caso, as duas pernas do testemunho português ao mundo? Um, a presença, dois, o diálogo. Corolário: a oração pelos simples, a apoteose dos “pobres de Espírito”. Pobres de Espírito são os que amam o Espírito, e só esses estão em condições de santidade.”
~

“Talant de bien faire [2]
Sob os ataques cruzados das instituições e do próprio Estado, que incarna a anti-Pátria, sedento que se acha de sorver os bens do povo, qual quadrilha lançada, pela calada da noite, sobre os bens do povo; sob as traições da hipocrisia instituída em serviço público; à filosofia portuguesa, situada, na condição adversa de Portugal, incumbe uma prática de santificação. Com efeito, em Portugal, a filosofia, além de filosofia, é santa. Porque sofre as condições do ergástulo, porque padece as afrontas do insulto e da ignomínia, porque é um valor marginal.

Na adversidade da situação, a filosofia tem serviços a cumprir e serviços a prestar. Em primeiro lugar, ser filosofia contra tudo e contra todos, mesmo quando os suportantes hajam de pagar impostos pelos quais vivem os inúteis. Em segundo lugar, proceder à rediagnose das linhas de apuramento sapiencial que se constituem como paradigmas do essencial: o messianismo fundamental – seja ele revelado em múltiplas formas: messianismo, atlantismo, sebastianismo, astralédia, Quinto Império; seja ele revelado na forma informal e universal da saudade e da esperança. Em terceiro lugar, renovar com actualidade – força de acto, para aqui, e para agora – as grandes orientações das vias septiviais: saber falar, saber pensar, saber escrever, saber calcular, saber viajar, saber medir e saber harmonizar. Em quarto lugar, oferecer ao mundo do nosso tempo a grande visão da enciclopédia e, por fim, propor uma nova classificação de todas as ciências. Tudo se faz com esperança de fazer. Nada se faz com desesperança. A filosofia portuguesa chama-se Elpídio – homem da esperança. “O Desterrado”, imagem salutífera de Portugal, devida a Soares dos Reis, tem o torso curvado para a terra, a cabeça abatida, mas os olhos reviram-se para o céu das ideias. O carácter elpídico da filosofia há-de santificar o pensamento filosófico no desterro de Portugal.
Para esse pensamento nunca se proporá uma figura abatida e desgraçada, demitida e triste, D. Sebastião. Há-de propor-se uma figura em cujo perfil se tenha configurado a coexistência da filosofia teórica, da filosofia poética e da filosofia prática. Uma figura de ascensão e de expansão, o Infante Dom Henrique. O vindouro “Infante de Sagres” é carisma de criação, de ascensão e de expansão. Ele se propõe, imagem positiva, à ditadura decadentista dos sebastianistas, que nos querem tristes e desarmados, para melhor nos explorarem, em nome de coisas que eles ignoram o que sejam. Com o Infante de Sagres, o Espírito passará.
Deixemos passar o Espírito…”
Pinharanda Gomes

____________

[1] «Portugal, Possível e Impossível», in Entre Filosofia e Teologia, Lisboa, Fundação Lusíada, 1992, p. 199.
[2] «A Filosofia na Terra do Desterro», in Entre Filosofia e Teologia, Lisboa, Fundação Lusíada, 1992, pp. 267-270.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 5

“Anagnose do Mestre
[1]

Anagnose significa revisão, o acto de olhar de perto, em repetitivo exercício. Se há sinónimos, como Aristóteles ensina na gramática elementar, anagnose constitui o puro admirar, que, para os efeitos do magistério, significa trazer, isso que se admira, “na melhor companhia das nossas almas”.
O filósofo distingue-se por quanto amar a verdade, o que supõe a companhia interior do espírito de verdade, a permanente anagnose (vigília e oração) dos caminhos e dos itinerários que a ela conduzem, por forma a evitar a ilusão e, ainda mais, propondo-se um fim – a rectificação da mente segundo o espírito da verdade. Razão animada, o filósofo sucumbe aos desvios da condição humana. Em palavra cifrada: o anjo está sempre contemplante do espírito de verdade, sempre admirante da verdade do espírito. O homem, algumas vezes, sai do caminho para a estrada do desvio, insensato ou inconsciente, quando conjectura que, pelo desvio, evitará a agónica transposição da porta estreita. Esta estreita porta é irreversível em filosofia. Inevitável. (…) A filosofia não é um curso; é uma via mística, uma forma peculiar da via mística. Subir a montanha propõe-se ao filósofo qual a imagem querigmática da sua professio vitae: procurar a estreita vereda que conduz à estreita porta; evitar as estradas do desvio; não retirar os olhos do contemplum para o contemptum. (…) A filosofia decide-se numa vida, é uma “carreira”, (permaneo, ficar até ao fim), e constrói-se como casa viva dentro da própria filosofia. É mansão, casa (permansio, do verbo permaneo). Casa de portagem do conhecer como saber, e do saber como conhecer, palestra da educação permanente. Nunca se chega a ser sábio. (…) Na communio magistral de Álvaro ecoava (ecoa, porque o espírito do pensamento permanece para sempre) a lição leonardina – contribuir, com a modéstia de uma tese, para a arquitectura final de uma obra a realizar pela humanidade é, pelo menos está perto de ser, filosofia. Via sacra, decidida desde o princípio do tempo, que é coincidente com o princípio do pensamento. Prisão e naufrágio, referências dos tópicos situativos da filosofia: (…) Entre a prisão do saber convencional e o naufrágio nas águas do erro, a filosofia exerce uma jurisdição, sem a qual jurisdição, também não é filosofia: a liberdade. Por esta se evade da prisão, por esta se salva do naufrágio. (…)

Álvaro Ribeiro

O que nesta concentrativa anagnose nos aparece hoje (…) é a pessoa do mestre, individuação singular do magistério – o castigo, a disciplina, a correcção, a doutrina, a arte de pesquisar, o método, enfim, o cilício da professio philosophiae. Emendar, tirando do desvio, castigar, corrigindo o erro – o castigo dirige-se ao erro e ao mal, não ao errante, nem ao mal jacente – supõe amor. O primado do amor é indiscutível na posição magistral de Álvaro Ribeiro: o mestre é o amante, o discípulo é o amado. Não obstante, o mestre é também o amado e, o discípulo, o amante. Só que não se amam um ao outro, mas ambos amam um mesmo outro, que não vem a ser nenhum deles. Isto garante ao discípulo a liberdade de ser discípulo, de se separar, que é o verbo inerente a discípulo. E garante de igual modo ao mestre a felicidade de ver o discípulo separar-se dele, como o filho se separa do seu pai. Se não se separasse, não nasceria, não seria filho. O amor magistral exerce-se como amor paternal, o amor discipular exerce-se com amor filial. O coração deste amor recíproco chama-se lealdade. O pai, que é mestre, transmite a disciplina ao filho, que é discípulo. O mestre obriga-se ao bom conselho. Não engana o discípulo, salvo se achar oportuno sujeitá-lo a teste, a tentação, para ver se o discípulo está como espera. Se achar que o discípulo sucumbe à tentação, revelando imaturidade, ingenuidade, ou inocência, e que ainda o não pode largar de sua mão, o mestre permanece. Volta ao princípio. Inicia a isagoge e progride na repetição do caminho. Nunca é tarde para repetir o caminho que leva à porta estreita do espírito de verdade.
O mestre é uma razão para o discípulo. “A razão vai à frente da alma para a iluminar.” A razão é mestre da alma. Em Descartes, a razão é uma balança. Em Álvaro, a razão equivale a uma luz. Metáfora, sem dúvida, mas metáfora de luz, se não for endeusada.”
Pinharanda Gomes

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[1] «Anagnose do Mestre», in Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, Ano I, nº 2, Lisboa, Junho de 1988, pp. 14-15.

NO CORAÇÃO DA ARTE, 12

Cynthia Guimarães Taveira

A Cor
Não há uma cor. A cor não é singular, uma cor é sempre mais outra e outra que se adivinha. Toda a matéria é diversa no seu íntimo assim como essa película fininha de cor que a cobre. A cor é apenas uma veste próxima, ou não, desse real íntimo. O pintor acerta os tons, afina a alma do que pinta com a cor que lhe induz. Isola e agrupa átomos de sentido. Corporiza o perfume dos sentimentos e acentua as cores uma nas outras até ao ponto mais próximo da alma que capta.
Todo o mar tem a sombra do abismo e as asas feitas de espuma do céu. Todo o mar tem uma ideia descendo vertiginosamente desde esse céu até à ponta do pincel. Todo o rigor está em aceitar isso ou não. Todo o saber está em ver isso ou não. Todo o amor está, ou não, em fechar os olhos e ver de novo essa imagem precisa, por dentro, na nossa tela interior. Contemplar é ir para muito além, tão além que o real se desvenda na sua verdadeira alegria: cores sobrepostas, sobre cores sobrepostas, até à última camada de luz, até ao centro do coração.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 4

“Sofrimento e Ascese[1]
A ideia sofre no corpo que é, para ela, a ideologia? O corpo da ideia é a palavra no ciclo da linguagem e, a linguagem, é o conjunto de membros da ideologia. Por isso, a ideia sofre na ideologia, como o espírito sofre no corpo do homem. Encontramo-nos dentro de uma casa que fica desajustada. Há muitas moradas, mas a morada do espírito é quase prisão. (…) A ideia sofre tanto no corpo da ideologia, como o espírito sofre no corpo da criatura. Está nela, em viagem, não em evolução, mas a viagem é infindável. Porque anelamos o instante de plenitude ou de vazio, se não for para darmos a viagem por finda?
O sofrimento é, em princípio, uma desarmonia entre o hábito e o habitante. Habitante é o espírito, hábito é o corpo; habitante é a ideia, hábito é a ideologia. Ao que parece, feitos um para o outro, o corpo surge de baixo, enquanto o espírito surge de onde quer que seja. (…) Sofrimento é desarmonia. A ascese ilumina o sofrimento, qual fogo na escura noite. Está longe de se identificar com o milagre, com a alêteia e com o apocalipse. É, apenas, o convite para lá. (…) O sofrimento surge quando, à brisa que vem das águas, o corpo se move para respirar o pneuma e apreender o espírito, esse que queima. (…) O corpo não pode adormecer, sob pena de, dormindo, deixar que o espírito passe, sem o visitar. O ideal seria lograr, em nós, o encantamento da princesa dormente. Veio o príncipe, beijou-a, e a princesa acordou para todo o sempre. O que da princesa nos diferencia é não sermos pura alma, sempre viva e animada (anima) mas impura razão e, a razão, dorme sobre o irracional. (…)
No trânsito do sofrimento para a ascese, o bordão é filosofia. Filosofia que, radicalmente adversa ao funcionalismo profano da história e do humanismo, nem é ciência, nem religião; nem só teologia, nem só cosmologia, nem só antropologia; nem polimento e encanto da chateza eruditiva. Mas filosofia. Amor da sabedoria, impulso. Filosofia que, nas dificuldades da acção, e nos compromissos que a ideologia lhe exige, se manifesta como Boécio (A Consolação da Filosofia) antevia, ou imaginava: «O que incumbe (à filosofia) é abrir o caminho, para que mova a razão à sua vereda, e se dilate na noite mais sombria.» Ah, sim, que a ascese segundo a razão é autenticamente mística e sem mistura. É uma ascese tão dolorosa quanto é dolorosa a dor situada. Surge como um outro sofrimento, insituado, que parece envolver-nos todos, e magoar, com agudas picadas, cada mícron de todo o corpo. Leva-nos a partir de consagrado momento, a evitar toda a espécie de lugares-comuns; a desprezar todas as sugestões da opinião; a estimar a fecunda ignorância, enquanto se desconfia da mais qualificada erudição. Põe-nos diferentes do outro, por vezes, contra o que habita o outro, ou seja, a ascese pela filosofia significa a possibilidade milagrosa de sofrer pelo espírito. A garantia de autenticidade de ascese pela filosofia há-de verificar-se quando o filósofo for assassinado. Quando a sociedade o convidar a desaparecer, por violência sobre o habitáculo corporal. O que assinala como deve estar o filósofo avisado acerca da ciência humana: a ciência humana rejeita a verdade da filosofia. Se a não rejeitar, talvez importe interrogar se o recto caminho estará a ser seguido. A rejeição assume-se em formas diversas: ódio, perseguição ou indiferença e silêncio. Em ambos os casos, a arma da liquidação da filosofia funciona. Ou por assassinato, ou por emparedamento vivo. Cumpre saber que espécie de tratamento a sociedade usará, para, prevenidos e revigorados pela ascese, melhor se afrontar a inquisição final.
A catarse há-de começar pelo princípio, a saber: filosofia não é coisa para ensinar, é culto a iniciar. Uma liturgia da razão, uma ascese da alma, uma teologia do espírito.
O que se torna significativo. Professores de filosofia admitem que ela se encontra na esfera da impreferência do público, acorrente às ciências humanas. O fenómeno denuncia que, sob a crise da filosofia, é a crise de espírito que se anuncia. Tem agora, o filósofo, a vantagem derradeira, qual seja – amar o amor do saber, sem risco de fazer dele um produto de consumo. Que o filósofo não consuma a filosofia. Que a filosofia consuma o filósofo.”
Pinharanda Gomes
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[1] «Do Unir», in Pensamento e Movimento, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1974, pp. 170-173.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 3

“As Crianças ao Deus dará [1]

Em cada Outubro, milhares de crianças e de jovens são lançados nas escolas, como lenha a forno. O fenómeno é mais do que o efeito de um propósito de os pais de fazerem, de seus filhos, uns homens. O fenómeno resume-se, no acidental, tornado essencial, na preparação para o emprego – no começo da luta pela vida.
São milhares de crianças, efectivamente iguais na juventude e nas necessidades, mas terrivelmente diferentes em tudo o mais. (…)
Todas essas crianças necessitariam, na melhor das vidas, um mestre por cada uma, um pai por cada uma, um educador à medida de cada uma. Esse mestre, esse educador, é o pai, é a mãe, ou deveriam sê-lo; mas o sistema não o permite. (…)
Assim, todas essas crianças, medidas pelo único metro da moderna pedagogia, são lançadas nas escolas como objectos aprendizes. Perdem o nome, passam a ter um número; a família perde peso na sua emotividade, e o contrabalanço é feito por novas amizades, e outros interesses. E o que recebem não é um fluido que lhes encha a alma; é a obrigação de se prepararem para saber fazer. A condição operária antes da condição humana. Salvo o tempo lectivo (…) todo o resto do tempo ficam entregues a si mesmas. (…) E, paradoxalmente, na era das ciências pedagógicas, as crianças não encontram, nas escolas, os necessários pedagogos.
Aliás, reina por aí uma notável confusão (…), já se comete o erro de confundir pedagogia e didáctica e, por consequência, de tudo referir à pedagogia, pondo a didáctica de fora. É preciso rever os conteúdos das palavras.
Na antiga cidade de Atenas, as famílias livres mandavam os seus filhos ao liceu, isto é, à escola, que, em geral, ficava afastada do lar familiar. O liceu tinha um professor, o didacta, ou seja, o que ensinava esta, aquela, ou todas as disciplinas.
As ruas de Atenas não eram, naquele tempo, sossegadas, e as crianças que iam sozinhas de casa para a escola corriam certos perigos, como o de serem atacadas, raptadas, ou induzidas a maus costumes. Para evitar tais causas e os óbvios efeitos, as famílias contratavam os serviços de um escravo de confiança (…) que tomava a seu cargo levar a criança à escola e, depois, de ir buscá-la (…) o pedagogo (…).

Ora, hoje, ouvimos falar em pedagogia a propósito de tudo, e até em pedagogia das ciências, como se as ciências necessitassem de pedagogia.
Do que as crianças necessitam é de didáctica, isto é, de quem as ensine, e não de quem as leve à escola. Mais, a pedagogia e a didáctica não se aplicam às ciências, mas às pessoas, ou seja, pedagogia para as crianças das escolas, ou dos liceus, de, didáctica, para os alunos das escolas, liceus, oficinas e universidades.
Todos os anos, ao mesmo tempo, as autoridades lançam nas escolas centenas de professores. (…) Às escolas chegam os professores humanistas, os que visam fazer de cada criança um funcionário e, alguns, poucos, que olham para dentro das crianças, e nelas projectam a vontade de criar um homem em cada uma (…), e a todos as crianças têm de ouvir e atender (…) [dando] a tolerância, a humildade, a submissão a um corpo de didactas não raro incoerente e contraditório. (…)
Quando as ciências pedagógicas não eram ciências, as funções dos pedagogos eram preenchidas (…) pelos Preceptores e Prefeitos [alguns dos quais confundiram] prefeitura com policiamento. Ora, o Prefeito é um Puericultor, alguém que não deixa as crianças ao «deus-dará», mas as orienta, as assiste, as ensina, as ocupa eficazmente nos tempos livres, e cria grupos de interesses objectivos, e estabelece harmonia e amizade, onde seriam de esperar a desarmonia e inimizade.
Ora, as escolas actuais puseram de parte a função prefeitural [substituída] pelos Contínuos, cuja missão é mais a de defender a escola contra os abusos das crianças, do que de defender as crianças contra os abusos das escolas. (…)
Pretende-se que as crianças cresçam desinibidas, e sem complexos. (…), mas outros complexos e frustrações as intimidam e que decorrem do facto de um crescimento sem apoio, de um amadurecimento sem amor, de uma puberdade sem assistência, de uma iniciação ritual extemporânea, de uma vivência sem Modelo e sem exemplo, logo destinadas a operários ou a técnicos, sem que ninguém se preocupe com os seus seres de homens e de mulheres. (…)”
Pinharanda Gomes

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[1] «Interpelação e Consolação do Triste Reyno da Luzitaina», in Meditações Lusíadas, Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, pp. 181-182;

PARA LER



Ecos. Na Nova Águia, uma brevíssima reflexão de Casimiro Ceivães sobre a Anotação Pessoal de António Carlos Carvalho, hoje aqui publicada.

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 18

António Carlos Carvalho

Pelo aniversário, a Cynthia ofereceu-me o último livro do José Gil. Percebeu que eu me tinha interessado pelo livro, apresentado em conversa com o autor na SIC Notícias, e resolveu fazer-me a surpresa. Nem ela nem eu prevíamos que fosse, afinal, tão pouca coisa.
Apesar do título apelativo, «Em Busca da Identidade – o desnorte», não passa de um livrinho insignificante. Pela dimensão (62 páginas, muitas delas em branco ou quase – mas às vezes uma única página numa certa obra vale 200 numa outra ...) e sobretudo pelas ideias e pela forma.
Não vou fazer aqui uma recensão. O livrinho não merece tanto. O seu autor, doutorado em filosofia pela Universidade de Paris, onde também ensinou antes de vir fazer o mesmo para a Universidade Nova de Lisboa, tem mostrado o seu interesse pelo Portugal de hoje. Esta última obra debruça-se sobre o que considera como «doença da identidade»: «Somos portugueses antes de sermos homens – eis a doença da hiperidentidade que nos corrói.» E depois analisa em traços rápidos o caso clínico português com a ajuda do psicanalista Sandor Ferenczi. Aliás, o texto refere apenas autores estrangeiros (Michel Foucault, Antoni Negri, Gilles Deleuze, Jacques-Alain Miller, Jean-Claude Milner) e nenhum português (Pessoa é referido apenas de passagem).

Lendo estas poucas páginas do que poderia ter sido uma conferência ou um texto para ser lido em colóquio, pensei mais uma vez que não creio ser possível reflectir filosoficamente sobre Portugal sem a ajuda da nossa História (do que ela mostra e do que esconde) e sem uma visão interior desse ser espiritual que é a nação. Uma visão que seja realmente *ver* e não apenas *olhar*.
E é de olhares estrangeirados, forasteiros, como o que este livrinho mostra, que eu estou farto, confesso. Sejam eles de influência francesa ou de imitação americana, esses olhares que nos percorrem anedoticamente, cheios realmente de ideias feitas, nunca entendem (como o poderiam fazer se não falam realmente português?) o que Pessoa nos tentou dizer – gritando ao que restava da nossa alma – há 75 anos: Portugal ocultou-se, é ele o verdadeiro Encoberto. Isto que temos hoje é apenas um simulacro, uma casca, uma máscara (uma «persona») de comédia que já nem graça tem. E o povo que por aqui ainda habita, por não ter podido emigrar, alimenta-se apenas de imagens, de fantasmas animados num ecrã.

terça-feira, 14 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 2

“A Filosofia na Floresta de Enganos[1]

Filosofia portuguesa é uma tradição actual de curiosidade que as imagens leonardinas definem. O que Álvaro Ribeiro, portuense emérito, e figura maior de asceta e de filósofo – ele corporiza a ascese filosófica na sequência de uma linha de vida que decorre de Amorim Viana a Leonardo Coimbra, via Sampaio Bruno – o que, dizíamos, Álvaro Ribeiro propôs não é mais, nem menos, do que esta simples regra: filosofia portuguesa é o acto de filosofar em português, com toda a carga de existenciais que o português transporta para o acto de filosofar. Como a ave, que tem asas, e voa e, não obstante, tem pés, e anda. Dir-se-á que tais predicados inerem a todo o filosofar, seja ele filosofar onde for. Irrecusável a premissa, ela permite uma audição: a universalidade do vinho não obsta ao próprio que é isso, e não aquilo – o vinho do Porto.
A filomatia, actual na periergia do filósofo, transcorre entre vários riscos, quais esses que significamos na imagem “floresta de enganos”. Apetente da verdade, inquirente do que é, e não deixa de ser, porque é, a filosofia aprende à sua custa. Sabe, mais depressa ou mais devagar, que terá de percorrer a floresta de enganos até ao fim, esse momento em que achará a bela adormecida, que despertará no calor do seu beijo. A filosofia beija a sabedoria e a sabedoria desperta. Tal como o criador beijou a matéria-prima e esta despertou nas formas criadas. Em todo o caso, já sabemos, e nem interessa repeti-lo, que é da filosofia o dever de atravessar, sem se enganar, a floresta de enganos. O que interessa sublinhar é outro fenómeno, cifrado este na imediata demissão da filosofia quando, sem querer ter iniciado um percurso, logo se abandona ao que, não sendo necessário engano é, todavia, factor de retardo, dificuldade na prossecução do itinerário da mente para a verdade. A crença, a ideologia, o economismo, podem dificultar o ascenso da filosofia. De um modo geral, a crença fixista, a ideologia militante, e o economismo absorvente, são estruturas de culturas grupais que, dentro deles, não permitem outra liberdade que não seja a da dissolvência na ética grupal. Os partidos políticos portugueses não são correntes de ideias. Na sua face evidenciada são correntes de interesses. Os partidos políticos portugueses, ainda quando substanciados numa delida estrutura ideológica, todos eles existem como vozes de grupos económicos. Consideram a questão de mandar (ter o poder à mão) e o dilema de ter (possuir as coisas). A ideologia e o economismo fecham as portas ao ser pensante, impotenciam a filosofia. A vida filosófica não floresce em tais estufas. A vida filosófica, respira espírito, pneuma, ar puro, o mais puro do vento. A poesia também sofre aí análogos tratos de polé. O economismo e o ideologismo recusam, já a filosofia, já a poesia. Quando seria chegado o tempo do “Supra-Camões” verificou-se um regresso da poesia portuguesa ao estado de impotência, pois desde Fernando Pessoa que a poesia portuguesa não voltou a dispor de análogo momento de aleteia poética. O oculto Camões, tal como o oculto Infante de Sagres, não têm cidadania. Ou talvez se achem em purgatório que é, por agora, e também, o lugar concedido aos heróis, aos homens honrados, e aos santos. As celebrações oficiais de algumas figuras da Pátria tresandam a hipocrisia. Algumas outras servirão para atribuir verbas do orçamento público às clientelas partidárias. O povo cala, mas a filosofia já aprendeu – pelo menos isso aprendeu – que o poder político põe e dispõe. O povo vota, o povo paga, o povo trabalha, o povo geme, o povo sofre, o povo paga de novo, quantas vezes forem precisas! Pagará funções cuja utilidade, ou ignora, ou não sabe justificar. Da sua utilidade económica, ética e social não há, porém, efectiva e convincente notícia. Em Portugal, a filosofia sufoca, tal como o povo. Em Portugal, os que podem sufocam os que sabem! A cracia é carcereiro da arquia. Muitos ambicionam a vida financeira, alguns cobiçam a vida política, raros desejam a vida filosófica. A crueldade do dizer é agora justa: a filosofia não tem lugar na polis.”
Pinharanda Gomes
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[1] «A Filosofia na Terra do Desterro», in Entre Filosofia e Teologia, Lisboa, Fundação Lusíada, 1992, pp. 181-182.