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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 27

António Carlos Carvalho

«A maior parte das pessoas são outras pessoas. Os seus pensamentos são as opiniões de outro; as suas vidas são uma imitação; as suas paixões, uma citação...
Só há uma maneira de alguém realizar a sua própria alma, e é desembaraçar-se da cultura.»
Esta fina observação de Oscar Wilde, feita obviamente a respeito da sociedade do seu tempo (1854 – 1900), choca-nos pela sua actualidade -- por ser ainda mais verdadeira hoje, passado mais de um século sobre o momento em que foram escritas estas palavras.
O requintado irlandês não podia prever que um dia haveria uma verdadeira indústria montada à escala mundial para a transmissão de modelos, em todos os campos da existência humana.
Para ele, nas suas lamentações irónicas, a coisa situava-se entre a Imprensa, o teatro, os salões e os clubes.
Para nós, a coisa é muito mais complicada, e global, porque, além dos jornais e das revistas, atinge a rádio, a televisão, o cinema, a Internet, a publicidade, as artes (agora chamadas plásticas – talvez porque sejam de plástico) e o que ainda vem por aí.
Tudo o que, hoje, muitíssimo mais do que no tempo de Wilde, se chama cultura – e de que ele nos aconselhava a desembaraçarmo-nos rapidamente.
No espelho, ou no ecrã, dessa tal cultura nos miramos, nos contemplamos, e, julgando que nos encontramos e reconhecemos, acabamos simplesmente por imitar os últimos modelos do que significa existir «em massa».

Oscar Wilde
É um fenómeno que começou realmente no século XIX e que se desenvolveu no século XX (graças às técnicas de publicidade e de propaganda, confundindo-se e alimentando-se mutuamente), atingindo hoje o seu máximo graças aos chamados benefícios da globalização.
Agora tudo é espectáculo (foi a grande vitória de Hollywood) e entretenimento. E todos os lugares são também palco e plateia, simultaneamente.
Estamos em exposição permanente, vigiamo-nos mutuamente -- e ai daquele que se desviar dos últimos modelos, do que nos mandam ser (parecer) ou ter ...
Há muitos anos que me espanto com a força do precedente – uma vez aberto, nunca mais se fecha. Assim aconteceu também com o totalitarismo: «inventado» no século XX, supostamente derrotado pela força das armas, continuou a impor-se, sob outras formas mas com os mesmos efeitos, como se vê actualmente à nossa volta.
Sermos nós próprios, «realizarmos a nossa alma», como escrevia Wilde, implica um verdadeiro combate de resistência contra quase tudo o que dizem definir a nossa época.
Precisamos urgentemente de uma filosofia da rebeldia.

2 comentários:

  1. No campo económico, que, como sabe, hoje em dia domina todos as outras áreas, há uma resposta interessante a essa filosofia da rebeldia de que fala: o decrescimento
    (De-growth ou décroissance). Esta teoria (criada pelo matemático romeno Nicholas Georgescu-Roegen) contraria toda a lógica moderna que assenta num crescimento,
    defendendo um gradual decrescimento da economia. Ver a propósito o artigo do Le Monde Diplomatique (versão portuguesa): Decrescimento: ideias que ganham força com a recessão» (Éric Dupin).

    Diogo

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  2. CULTURA

    O que é a Cultura? A minha mãe ensinou-me que era uma ervilha de qualidade. O seu problema encontrava-se no esconderijo que é a sua vagem. Primeiro era necessário aprender o que era uma vagem; depois, saber como é que o raio da ervilha aparecia lá dentro. Por último era a forma como se descobria o encantamento ou o desencanto que se detectava na saúde da ervilha. Finalmente, sobrava a qualidade da dita. Depois desta aprendizagem sempre achei que a Cultura era uma complicação, complicada por quem desconhece a metáfora da ervilha. Hoje, quando abro a Cultura, entrincheiro-me na vala comum da ignorância, agarrado ao “Retrato de Dorian Gray” para perceber que o “Citizen Kane” é um combate de ervilhas contra a vagem do impossível. Além disso, para que serve a Cultura, se o gato da minha esquina recita de cor “Os Lusíadas”, enquanto descodifica se deve beber o leite que lhe querem impingir ou se deve proclamar “Só sei que nada sei”, com que um conhecido falso filósofo quis classificar certo tipo de vagens que só produzem ervilhas de má qualidade.
    O que é a Cultura? Cá para mim é uma espinha cravada na garganta do lavrador dos verbos que duvida se os deve conjugar com a liberdade da sua independência ou se deve proteger a sua conjugação com os paraísos da indomável objectiva que promove a produção com a produção da promoção. Tudo se resume à questão de saber se as ervilhas são verdes ou não. Cada um que coma a Cultura à sua maneira. Das minhas ervilhas é que eu não abdico.

    Jorge Brasil Mesquita

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