(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sábado, 27 de fevereiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 53



Ver o alto céu
Eduardo Aroso

Pudesse eu ir ao coração do nosso Povo,
Fundo sentir do tempo a latejar,
Encontraria tudo muito estranho e novo
Um corpo já sem o sangue a circular!

Pudesse eu ir à memória da nossa gente
A essa floresta de sonhos povoada,
Agora só encontraria concretamente
Um barco sem rumo, sob um céu de nada.

Quisesse eu ver a luz mais alta e ideal,
Estrela nossa indicando o rumo certo,
Só veria cimento tanto no céu de Portugal
Que não esconde quem pode ver o Encoberto…

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

NO PRÓXIMO DOMINGO, EM MONTEMOR

Simpósio. Exactamente um ano depois de ter começado, o ciclo de simpósios sobre os 12 Teoremas do 57 - Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa chega ao seu termo depois de amanhã, pelas 15:00, com a realização do quarto e último dos encontros definidos, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-O-Novo, que tem apoiado esta iniciativa dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Desta vez, os apresentadores e os teoremas serão os seguintes:
Roque Braz de Oliveira e a Propriedade
Carlos Aurélio e o Indivíduo
Pedro Sinde e a Liberdade

Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos um teorema.

Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 6


Herta*
Há pessoas que nasceram com o dom de imaginar e quase até diria com o dever de imaginar: porque, em virtude de qualquer disposição superior que nos escapa, a vida lhes transcorre tão fixamente no mesmo lugar e tão vazia de acontecimentos que na realidade a única possível existência para eles é a do sonho. Quanto a mim, se dispuseram os fados de outro modo: acho que por excesso de vida exterior, o imaginar me ocorre tão delgado que apenas consigo narrar o que vi, ouvi e senti; e à primeira situação difícil que se me depara na vida, tenho logo de recorrer ao conselho dos meus amigos para que me desenvencilhem da situação; a menos que a própria vida se não encarregue de o fazer, coisa que tem sucedido, mas quase sempre com um desembaraço meio brutal que, para dizer a verdade, me não agrada nada.
De vez em quando penso nisto, ou, como diz gente da minha terra, «magino» disto; porque, pelo que se refere a pensar, abstracta e discursivamente, não vai por aí o meu gosto. De qualquer modo, sucede que hoje pensei nisto, entre as muitas coisas que tenho pensado neste quarto de hospital; e sobretudo durante a noite: noites irreais, pesadas de todo o sofrimento e, no fundo, de toda a resignação que vem dessas enfermarias e desses quartos; donde a onde, o relógio, donde a onde o passo do vigia, e a luz mortiça, e a gente lembrando-se dos bons dias de saúde que se julgavam eternos.
Agostinho da Silva
* excerto retirado de Herta / Teresinha / Joan, publicado em 1959

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

TEOREMAS DO «57»: A LIBERDADE


TESE O homem nasce livre, mas está a ferros.
Corolário:
Eleições, partidos, parlamentarismo.

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ANTÍTESE O homem é livre, mas pensa-se e quer-se a ferros.
Corolário:
Política única, nomeação directa, governo indiscutível.

____________

SÍNTESE O homem é livre, pensa-se livre e vive livre.
Corolário:
Conselho supremo da liberdade individual, que homologa todas as leis e instituições.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 5


Teresinha*
Peguei numa pedrinha e fui-a passando devagar pelo chão, até que, quase sem pensar, lhe perguntei:

- Teresinha, a menina nunca se lembrou de que eu me quisesse casar consigo?
Mas, claro, fitando sempre a água. Não a vi nem estremecer. Voltou a cabeça para o meu lado e respondeu:
- Nunca me lembrei, não, senhor.
- E a menina se casava comigo?
- Eu casava, sim, senhor. Mas só se fosse para toda a vida.
- E se não fosse para toda a vida?
- Se não fosse para toda a vida não casava.
- Porquê, Teresinha?
- Porque não valia a pena o senhor ficar com essa lástima por minha causa.
- E como é que a gente conhece que é por toda a vida, Teresinha?
Então a menina costureira de camisas me respondeu, arrancando do chão um pezinho de musgo:
- Eu acho que se fosse por toda a vida o senhor não me perguntava isso.
E eu, senhor formado, me calei e jogando a pedrinha no rio fiz que sua imagem se perdesse num nevoeiro de água.
Agostinho da Silva
* excerto retirado de Herta / Teresinha / Joan, publicado em 1959

TEOREMAS DO «57»: O INDIVÍDUO


TESE O indivíduo é uma realidade natural; só a pessoa tem representação social e espiritual.
Corolário:
Primado do bem comum sobre a liberdade, o pensamento e a justiça.

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ANTÍTESE A colectividade tem um primado que anula a distinção indivíduo-pessoa.
Corolário:
Primado absoluto da economia.

____________

SÍNTESE O indivíduo é a realidade substancial dos direitos inalienáveis; a pessoa e a colectividade são derivadas expressões jurídicas dos direitos alienáveis.
Corolário:
Legislação contra a pena de morte e a pena de prisão, e a favor do direito de todo o indivíduo à propriedade e ao tempo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

AFORISMOS, 21

Eduardo Aroso

93 – «O universal é o local sem paredes» - Miguel Torga. A afirmação do poeta devia ser encarada com entusiasmo pelo pensamento português. Na verdade ontológica portuguesa que encerra, levanta, hoje, uma essencial e aguda questão: a de saber se é possível haver realização (expansão) do local num mundo que tende para o igualitarismo. A afirmação do poeta (trans) montano, ao mesmo tempo que deve ser bandeira de portugalidade, constitui também urgente sinal de aviso para a desatenção nas auto-estradas do nosso pensar e viver.
94 – Viriato - Viril – Viseu: três palavras cujo som parece ser ditado pela mesma alma. Granito – Grave – Gravar: uma inscrição natural na (da) paisagem. Roca – Rota – Rosa: um leme visível, partindo de um cabo, torna-se oculto no caminho do céu. E, já sem palavras, lemos: Portugal, conhece-te a ti mesmo!
95 – Se nos debruçarmos sobre o curto mas precioso texto de Almada Negreiros, por demais conhecido, em que se pede a uma criança para desenhar uma flor, dando-lhe papel e lápis, e quando depois de ela rabiscar leve e carregando o traço, de cima para baixo e de baixo para cima, por fim a vai mostrar às pessoas que não a acham nada parecida com uma flor, também a leitura da História de Portugal, no seu todo e de alguns episódios em particular, deixa baralhados muitos os que a pretendem interpretar sob o ponto de vista reinante, embora forjado numa república de alunos formados em Auguste Comte e depois em António Sérgio, e que ficaram incomodados com Camões, só porque no liceu os obrigaram a dividir as orações de certas passagens de Os Lusíadas!

TEOREMAS DO «57»: A PROPRIEDADE

TESE A propriedade é a posse: quanto maior é a concessão, mais acentuado e justo é o direito de propriedade.
Corolário:
Predomínio social da plutocracia e sofismação do direito de propriedade em direito de posse.

____________

ANTÍTESE A propriedade é o roubo, fonte de todas as injustiças e desigualdades sociais.
Corolário:
Não há direito de propriedade.

____________

SÍNTESE A propriedade é o direito da liberdade individual; só isso justifica o direito de propriedade, que é diferente do direito de posse.
Corolário:
Defesa do direito de propriedade e rigorosa distinção do direito de posse; só há propriedade do que é inalienável; só há posse do que é alienável.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

NO PRÓXIMO DOMINGO, EM MONTEMOR-O-NOVO: ÚLTIMOS TEOREMAS DO «57»

Simpósio. Exactamente um ano depois de ter começado, o ciclo de simpósios sobre os 12 Teoremas do 57 - Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa chega ao seu termo no próximo domingo, dia 28, pelas 15:00, com a realização do quarto e último dos encontros definidos, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-O-Novo, que tem apoiado esta iniciativa dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Desta vez, os apresentadores e os teoremas serão os seguintes:
Roque Braz de Oliveira e a Propriedade
Carlos Aurélio e o Indivíduo
Pedro Sinde e a Liberdade

Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos um teorema.
Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.
Durante a próxima semana, aqueles três teoremas vão ser aqui publicados.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 4


Reflexão à margem da Literatura Portuguesa*
Tomando como um todo a cultura peninsular, talvez nela não encontremos, não digo uma característica, mas pelo menos um movimento ou um problema mais constante do que o de querer determinar se na realidade a Espanha, aqui no sentido de toda a Península, se deve dedicar, por ter atingido a Plenitude do que é melhor para o mundo, se deve dedicar à tarefa de hispanizar o dito mundo; ou se, modestamente reflectindo no que lhe falta e considerando desejável o que não tem, se deve, pelo contrário, matricular numa espécie de escola de universalismo, como moço de aldeia que afronta pela primeira vez, porque ele ou a família o acharam desejável, ou simplesmente o Estado o tornou obrigatório, a cultura elaborada nas cidades e por elas imposta. Hispanizar o mundo, ou às vezes, apenas a Europa, por quanto se sabe que através dela, na sua época áurea de expansão, o universo se teria hispanizado, eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha, eis outro dos termos do dilema.
Acontece, porém, que não só, e em primeiro lugar, a atitude inteligente e largamente humana não é a de aceitar dilemas, mas ou a de mostrar que são falsos ou a de se encarreirar a terceiras soluções de que o lógico se não lembrou, a não ser que lhe não fosse conveniente pô-las; como também, e em segundo lugar, conviria saber de que modo a Espanha já é suficientemente hispânica. Isto é: se na realidade, antes de procurarmos resolver o tal problema em face da Europa, não teremos de resolver o problema em face de nós próprios. Porquanto pode perfeitamente suceder que, em virtude de várias circunstâncias históricas, e poderemos pôr assim a questão, para não termos de entrar na discussão sempre enfadonha e dificilmente terminável de quem teve ou não teve a culpa, pode ser que, em virtude de das tais circunstâncias históricas, a nossa Península nunca tivesse podido desenvolver-se plenamente, e todo o resto venha daí.
Por um e outro motivo, pois, deixaremos de lado o tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e gente do anti-Novo Método, Feijóo e gente do anti-Teatro, e, mais modernamente, Gasset e Unamuno ou metade do dito Unamuno à outra metade de Unamuno. Nitidamente nos recusamos à batalha. O que não quer dizer que se não tenha uma ideia muito clara do que vale a Europa em face da Hispânia. Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo estejam para lá dos Pirenéus; não creio que aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosamente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o Sul da Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa da gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que isso, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio utilitário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira, levou às últimas consequências.
Agostinho da Silva
* excerto retirado do livro homónimo, publicado em 1957

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 52

Algumas palavras devidas
a'O Canto dos Seres de Pedro Sinde
Eduardo Aroso


Meu caro Pedro Sinde,
Uma elevada mística da qual, à primeira vista, poderíamos pensar que floresceu com Frei Agostinho da Cruz, para depois logo abrandar, surge-nos, na primeira década do século XXI, em Pedro Sinde numa mística pensante ou num peculiar pensamento de religiosidade interrogativa, sem que se apague aquele que coloca a questão. Eis o que me parece haver na obra O Canto dos Seres. O seu livro, mais do que fazer jus, superiormente, à sentença de André Malraux «O século XXI será religioso ou não será», retoma um dos mais fecundos veios da nossa tradição que é, diríamos, o das núpcias da sensibilidade poética e dos ditames singulares da razão. Os seus textos, mormente os que constituem a primeira parte da obra, são necessariamente diferentes - no plasmar do vocabulário e na forma expositiva das ideias – do que sentiu e escreveu o poeta da serra da Arrábida. Agora temos Pedro Sinde que das fragas e torgas do Marão começa por alquimizar o mineral numa essência que é essência de todos os lugares altos de Portugal ou terra de lux, para nos deixar, como criaturas, nesse ponto em que estamos a meio caminho entre a terra e o céu, assim a alma queira. No seu livro anterior vimos que só é possível saber que há Terra Lúcida se o espírito se revestir também da mesma lucidez de consciência que sabe que a Natureza é viva não à maneira da vitalidade dos biólogos materialistas, mas verdadeiramente fazendo parte do corpo de Deus manifestado. Por isso, quando o meu amigo se refere, por exemplo, ao voo dos pássaros, ao som do vento e aos tons inefáveis do sol pela tarde, ou toca com a sua atenção no que escapa aos desatentos do quotidiano e da vida em geral, sabemos que organiza o seu sentir de tal modo que nada é visto mecanicamente na Natureza e no Homem. É como se não fosse o pensador a ter a iniciativa de tomar racionalmente a Natureza, mas, isso sim, só depois do consentimento desta, a sentir e meditar sobre ela.
O Canto dos Seres não é uma prosa poética, por profunda que seja, nem um livro em que os teoremas se servem de ilustrações poéticas, teoremas que podem ser provados por quem esteja disposto a responder ao convite do autor. Constitui, isso sim, um pensamento que parte do sentir a Natureza como ente e dentro da qual o pensamento deve fluir, porque dela necessita, como um barco à vela, da água e do vento para se mover.
Se, por hipótese, o título “Manual de Observação da Natureza” não fosse tão prosaico – o que rebaixaria desde logo a apetência pela obra – ele bem poderia ser dado ao seu livro, recomendado a todos os famintos de memórias e vozes perdidas. Não ao modo dos biólogos materialistas, coleccionadores de seivas e células, mas na expectante atitude de espanto que nos provoca o gigantismo espiritual da Natura, em simbiose de sabedoria, encanto e vida, vida inseparável, dir-se-ia. O Canto dos Seres é, em plano mais alto, um não muito extenso mas essencial Tratado, bem urgente, diga-se, que guia seguramente qualquer um que, no íntimo sentido, queira aproximar-se da Mãe-Terra. É sabido que muita gente espavorida procura o campo para estar com o lado de fora da Natureza, no risco de lhe acontecer o mesmo que àqueles que tem de viver maritalmente com outra pessoa, sem gostar dela, ou porque não a compreendem, ou por outras razões.
Ajuíza-se bem o modo como o Pedro vive e expressa a Natureza de dentro, quando lemos o que escreve já no final da obra, em jeito de epílogo «Cada ser canta, encanta-se e encanta. Há um canto que é o seu modo de aparecer no mundo, de se mostrar. O canto não está só na voz; é um canto a forma da pedra no seu aparecer, a cor da flor humilde que os nossos pés inadvertidamente pisam, o amanhecer glorioso, a fonte, o olhar meigo do cão, o olhar contemplativo do gato, o lavrador a recolher a casa depois da jornada, o filósofo de olhar intenso enquanto pensa o mistério da vida». Referindo-se ao ruído, mais à frente, escreve «O canto, face ao ruído, será já o canto do cisne? Ou será o ruído esse canto do cisne de uma civilização a dar o último estertor, a última convulsão? É que a cidade passará, mas o canto do universo não; a cidade é ruído do homem, o universo é canto do silêncio de Deus».
É sabido que o corpo nos incomoda, por isso o questionamos, quando abusamos dele. O Homem começa a ter má consciência de si pelas longas agressões à Natureza, e por isso põe a ênfase na ecologia. Mas tal como o antigo hábito de pagar a bula não apagava nem apaga nenhum pecado que se faça, a não ser pela reparação por outros modos, também meter-se na floresta, podendo trazer melhor oxigénio aos pulmões, não garante a respiração da alma.
Sim, a cidade passará – pelo menos como é hoje desenhada e organizada – mas o timbre sonoro das ondas na nossa costa atlântica, a imponente sentinela da serra Marão, ou a figura tutelar desse chacra português que é a Serra de Estrela, ou o «rumor dos pinhais que, como um trigo/ De Império, ondulam sem se poder ver», esses e outros cantos existirão ainda quando um dia já ninguém se lembrar que a Natureza ou Corpo de Deus Imanente foi tratado, durante muito tempo, como uma estatística. O seu livro ficará para os vindouros, seja em papel, seja on line, ou seja na mais estranha forma de arquivo, na certeza de que ele nos leva à Natureza por dentro. Por mim, li-o e reli-o e conservo-o no meu interior, dum modo que não se rasgará, em ficheiro que não se apague.
Meu caro Pedro Sinde, peço que aceite estas palavras ao sabor da Natureza em mim, cujo canto, neste momento, só poderá ser entendido no elementar ritmo em que são escritas. Palavras que desde há muito lhe eram devidas e que só agora se desprenderam em simples contraponto às suas completas melodias que harmonizam os textos de O Canto dos Seres.
Coimbra, 29 de Janeiro de 2010
Eduardo Aroso

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 3



Em louvor do contrário*
Todo o ambiente é favorável ao forte; de um modo ou de outro ele o ajuda a cumprir a missão que se impôs e a conseguir ir porventura mais além das barreiras marcadas. A derrota deve mais atribuir-se à invalidez do impulso interior do que aos obstáculos que lhe ponham diante, mais à alma incapaz de se bater com vigor e tenazmente do que às resistências, às invejas e às dificuldades que o mundo possa levantar perante Hércules que luta.

O mal que se vê é aguilhão para o bem que se deseja; e quanto mais duro, quanto mais agressivo, se bate em peito de aço, tanto mais valioso auxiliar num caminho de progresso; o querer se apura, a visão do futuro nos surge mais intensa a cada golpe novo; o contentamento e a mansa quietude são estufa para homens; por aí se habituam a ser escravos de outros homens, ou da cega natureza; e eu quero a terra povoada de rijos corações que seguem os calmos pensamentos e a mais nada se curvam.

Mais custa quebrar rocha do que escavar a terra; mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou. A grandeza da obra é quase sempre devida à dificuldade que se encontra nos meios a empregar, à indiferença que cerra os ouvidos do povo, e aos mil braços que logo se levantam para deter o arquitecto. Se cai sem batalha, pobre dele, podemos lamentá-lo; não o chamara o Senhor para as grandes empresas; mas se pelo menos a voz se lhe erguer clara, firme, heróica no meio do turbilhão, não foram inúteis as dores e os esforços; algum dia um novo mundo se erguerá das brumas e o terá como profeta.

Quem ia perturbar ficará perturbado, quem ia a matar ficará morto. Não é com os mesquinhos artifícios, nem com o desprezo, nem com a mentira, nem pelo cansaço, nem pela opressão, nem pela miséria que se vencem os que pensaram um futuro e, amorosamente, com cuidados de artista, continuamente, com firmeza de atleta, o vão erguendo pedra a pedra. É necessário que se resista enquanto houver um fôlego de vida, mas que essa resistência seja sobretudo o contacto com a realidade da força criadora; é esta que afinal tudo leva de vencida e reduz oposições a pó inútil e ligeiro.

Agostinho da Silva
*excerto retirado de Considerações, editado pelo autor em Famalicão, em 1944

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

AFORISMOS, 20

Eduardo Aroso

90 – No número 1 das Edições Serra d’Ossa, intitulado «O Canto dos Seres», de Pedro Sinde, lemos que «Os seus planos [do autor] para o futuro são: aprender a viver ao Deus dará, sabendo que muitas vezes Deus dá tirando». Quando pela primeira vez li este escrito, desfez-se-me um certo nevoeiro e pude entender que também Deus dará – na Hora – a Portugal o que, muitas vezes, lhe tem tirado, ou, quem sabe, guardado. Por isso, muito melhor do que ser governado pelos que se deveriam dar (sacrificar) pela sua pátria, e não o fazem, bom seria na verdade que Portugal ficasse ao Deus dará!
91 – Se quiséssemos, geometricamente, traduzir o sentido de Portugal, diríamos que é uma diagonal; uma divinal diagonal, acrescente-se. Na realidade do mundo físico, no qual vivemos, a pura vertical poder-nos-ia afastar das legítimas responsabilidades para com os nossos semelhantes num misticismo ilusório; no exclusivo da horizontal seria fácil ir resvalando para uma antropologia que facilmente seria uma espécie de “zoologia superior”. Portanto, a primeira daria a incompleta experiência religiosa sem sair do lugar (como se alguém pudesse viver sempre em casa) e a segunda apenas um vaguear sem rumo, guiando-se por estacas no caminho e não pelas estrelas do céu. A diagonal engloba os dois movimentos, sendo ela um terceiro. Ora, toda a vida história de Portugal, pelas razões que sabemos, é uma divina diagonal que une a experiência pelo mundo de pioneirismo científico e civilizacional da Idade Moderna, com um modo peculiar de ecumenismo religioso. Na esfera da filosofia, o pantiteísmo de Cunha Seixas constitui, nesta imagem, uma das mais interessantes diagonais do nosso pensar. [na imagem: Cunha Seixas]
92 – Ao voo aquilino e solar da mais alta e sublime palavra poética, tocada pela brisa atlântica, corresponde uma cripto gnose histórica, qual guardião do umbral, protegendo a entrada para o segredo da existência Portugal, a que ilusoriamente se tem dado um sentido vazio à primeira palavra da expressão «Ouro dos Templários».

domingo, 14 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 2



Amor do povo*
Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha.
Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve.
Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que percebessem nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivados dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem.
Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível, da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.

Agostinho da Silva
* excerto retirado de Considerações, editado pelo autor em Famalicão, em 1944

sábado, 13 de fevereiro de 2010

AGOSTINHO, 104 ANOS DEPOIS, 1


Doutrina Cristã*
1. Existe um Deus que é o conjunto de tudo quanto apercebemos no Universo. Tudo o que existe contém Deus, Deus contém tudo o que existe. Pode-se, sem blasfémia, considerar o aspecto imanente ou o aspecto transcendente de Deus; pode-se, sem blasfémia, falar não de Deus mas apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel. A doutrina de Deus, tal como a pôs Cristo, permite considerar todas as religiões como boas embora em graus diferentes, todos os homens como religiosos. Não poderá, portanto, fazer-se em nome de Deus qualquer perseguição: todo o homem é livre para examinar e escolher; a maior ou menor capacidade de exame e o resultado da escolha serão, em qualquer caso, a expressão do que ele é e do máximo a que pode chegar segundo as suas capacidades.

2. A visão mais alta que podemos ter de Deus, nós que somos apenas uma parte do Universo, é uma visão de Inteligência e de Amor; os pecados fundamentais que o homem poderá cometer são as limitações da Inteligência ou do Amor: toda a doutrina estreita, sem tolerância e sem compreensão da variedade do mundo, toda a ignorância voluntária, todo o impedimento posto ao progresso intelectual da humanidade, toda a violência, todo o ódio, limitam o nosso espírito e o dos outros, impedem que sintamos a grandeza, a universalidade de Deus.

3. Deus não exige de nós nenhum culto; prestamos a nossa homenagem a Deus, entramos em contacto pleno com o Universo, quando desenvolvemos a nossa Inteligência e o nosso Amor: um laboratório, uma biblioteca são templos de Deus; uma escola é um templo de Deus; uma oficina é um templo de Deus; um homem é um templo de Deus, e o mais belo de todos. Todos podemos ser sacerdotes, porque todos temos capacidades de Inteligência e de Amor; e praticamos o mais elevado dos cultos a Deus quando propagamos a cultura, o que significa o derrubamento de todas as barreiras que se opõem ao Espírito. Estão ainda longe de Deus, de uma visão ampla de Deus, os que fazem consistir o seu culto em palavras e ritos; mas dos que subirem mais alto não pode haver outra atitude senão a de os ajudar a transpor o longo caminho que ainda têm diante. Ninguém reprovará o seu irmão por ele ser o que é; mas com paciência e persistência, com inteligência e com amor, procurará levá-lo ao nível mais alto.

4. Para que possa compreender Deus, para que possa, melhorando-se, melhorar também os outros, o homem precisa de ser livre; as liberdades essenciais são três: liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade económica. Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado. Pela liberdade de organização social, o homem intervém no arranjo da sua vida em sociedade, administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos à medida que a sua cultura se for alargando; para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; é como que o aluno de uma escola de humanidade: tem de se educar para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis. Pela liberdade económica, o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e de mais amplo; nenhum homem deve ser explorado por outro homem; ninguém deve, pela posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, pôr em perigo a sua liberdade de Espírito ou a liberdade de Espírito dos outros. No Reino Divino, na organização humana mais perfeita, não haverá nenhuma restrição de cultura, nenhuma coacção de governo, nenhuma propriedade. A tudo isto se poderá chegar gradualmente e pelo esforço fraterno de todos.

Agostinho da Silva

*Lisboa, 1941, edição do autor

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

TEOREMAS DO «57»: ÚLTIMO SIMPÓSIO EM MONTEMOR-O-NOVO A 28 DE FEVEREIRO

57. Exactamente um ano depois de ter começado, o ciclo de simpósios sobre os 12 Teoremas do 57 - Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa vai chegar ao seu termo, no próximo dia 28 de Fevereiro, domingo, pelas 15:00, com a realização do quarto e último dos encontros definidos, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-O-Novo, que tem apoiado esta iniciativa dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Desta vez, os apresentadores e os teoremas serão os seguintes:


Roque Braz de Oliveira e a Propriedade
Carlos Aurélio e o Indivíduo
Pedro Sinde e a Liberdade

Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos um teorema.
Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.
A anteceder a realização do simpósio, os teoremas respectivos serão aqui publicados.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

TEÓFILO O JOVEM, 3*

Rodrigo Sobral Cunha


A inspiração da Poesia do Direito de Teófilo Braga vem da descoberta de que “o direito romano na sua primeira idade foi um poema sério”, conforme as palavras de Giambattista Vico. [13] No dramático mundo jurídico ostentou-se criador em extremo o génio romano na poesia lógica da justiça, representando a acção da vida civil em actus legitimi, que a poética dos jurisconsultos, heróis das fórmulas conhecedores da poesia da jurisprudência, encenava no fórum, dispondo as personagens em actos, com a litigância em debate, lances, peripécias e catástrofe, a executar com escrúpulo religioso (si virgula cadit, caussa cadit). Na Idade Média a poesia do direito teve uma renovação no seu ricorsi e a igreja, como observa Teófilo, veio mesmo a dar ao direito uma nova poesia: “Cada acto da vida do homem revestiu-o de uma bênção, de um hino. Desde as belas fórmulas do baptismo, do casamento, até ao repouso da sepultura, é tudo a poesia do sentimento puro. A poesia do Direito na Idade Média realça pela união do símbolo religioso com o símbolo jurídico” [14].
Segundo Teófilo Braga, a inteligência da idade divina é toda intuitiva e criadora na forma do sentimento; o símbolo é aí a expressão mórfica das faculdades poéticas e imaginativas e o lirismo a primeira linguagem mítica, ou muda, precedendo as linguagens fónicas. [15]
Recordando o filósofo partenopeu da Ciência Nova, coube aos egípcios, conforme o relato de Heródoto, a repartição das idades em divina, heróica e humana, equivalentes às famílias celestes, terrestres e humanas chinesas e aos tempos obscuros, fabulosos e históricos romanos, recordados por Marco Terêncio Varrão nas Antiquitates rerum humanarum et divinarum, a que aliás recorreria Santo Agostinho na Cidade de Deus. “Cada povo”, escreve assim Teófilo, tem a sua idade divina, período de formação; uma idade heróica, período de aspiração, e uma idade humana, dramática, real.” [16] Para o filósofo açoriano, “A Idade Média é o período mais interessante da história da humanidade, porque aí observamos a génese misteriosa da civilização moderna” [17]. “A cavalaria era a religião da honra; o amor místico, a exaltação do platonismo, animam o paladim” e a fraternidade heróica é o primeiro passo para os amores das aventuras cavalheirescas, conforme observa. [18] Discorrendo acerca dos ciclos cavalheirescos n’A Ondina do Lago, constata Teófilo que se “os sentimentos cavalheirescos do amor, do valor e da honra […] formam o período heróico entre todos os povos; o desenvolvimento do Verna ou o Companheiro, é que determina o que há de natural nestes sentimentos, a tal ponto, que o Verna convertido na burguesia do terceiro estado marca o limite da cavalaria na Europa” [19]. À “energia de um período heróico” [20], sucede “a humanização do direito pelos Verna, os companheiros do herói, que lhe vão comentando os feitos, cuja personificação é o mito esópico, e o tipo do Bobo na Idade Média. O bom senso vulgar e ordinário apresenta-se franco, desarma a susceptibilidade do herói pelo riso. O génio cómico fez prevalecer o terceiro estado; o cavaleiro da Mancha fica ofuscado, vencido na sua impetuosidade pelo bom humor de Sancho, que lhe fala uma linguagem comum, de todos, usual, prática, vernácula”. [21] Amor, honra e riso parecem ser assim os três distintivos que percorrem as três idades. Característico desta última, de acordo com Teófilo, é apresentar-se “razoável, analítica, objectiva, prática, vulgar”.
O pensador insular resume do seguinte modo, aliás notável, a tensão antitética das diferentes mentalidades: “O símbolo é a criação da idade divina; a dessimbolização é a força da idade lógica ou humana.” [22]
Eis em alguns passos como à intuição intelectual de Teófilo Braga se ofereceu a imaginação da origem do símbolo nessa perpétua juventude do mundo:
“Qual foi o primeiro símbolo da vida? Devia ser por certo um móbil da actividade humana, que lhe lembrasse a sua origem divina, que lhe despertasse o desejo de elevar-se de novo à altura de onde desceu.”
“O símbolo que representa o primeiro móbil da humanidade no seu desenvolvimento é a Árvore, a árvore da ciência […]”. [23]
“A Idade Média continuou a legenda maravilhosa; o tronco da árvore é empregado na construção do Templo, e é dele que se fez a cruz de Cristo […]”.
“A árvore produz também o símbolo do triunfo e da glória, é o ramo de louro.”
“Virgílio tinha sonhado na árvore também um ramo oculto, ramus aureus, que se não colhia com violência, que se desprendia por si, que dava entrada no mundo das sombras. Este pensamento do que sentiu o ideal messiânico harmoniza-se com a renovação do símbolo da árvore na Cruz.” [24]
A bela biografia do ramo teofilina mostra como, na sucessão das idades, extraído da árvore da vida, o ramo será a vara de Moisés, tal como vara do lictor, ceptro da realeza e também do juiz, clava dos semideuses, massa de Hércules, báculo sacerdotal, bastão de bacharel, bordão de peregrino e varinha feérica no medievo; foi o ramo flexível flecha heróica limítrofe, foi lança (ramo despido de folhas) definidora da propriedade (hasta pública) e littuus do áugure etrusco. Com um toque de vara dava o senhor a liberdade ao escravo, no mundo antigo. A mensagem de paz chega por uma pomba num ramo de oliveira. [25]
Em A Ondina do Lago, Teófilo retrata a comunhão das idades divina e heróica no espírito da Idade do Meio:
“No amor místico, tal como se encontra elevado nos delírios de São Francisco de Assis, brilha o mesmo pensamento da cavalaria. É uma cavalaria celeste, em que o solitário trovador da Úmbria canta em efusões líricas a dama dos seus pensamentos a Pobreza. Aos que o achavam apreensivo, calado, como enleado por abstracções íntimas, respondia: “Eu penso em escolher uma dama, a mais nobre e rica, a mais bela do que todas.” E transporta-se logo num rapto veemente de inspiração cantando a dama Pobreza, sua mãe, sua esposa e senhora. Ele mesmo chama aos seus mais zelosos discípulos “os meus Paladinos da Távola Redonda.” S. Boaventura chama-lhe estrénuo cavaleiro de Cristo; as suas peregrinações pelo mundo eram uma nova aventura cavalheiresca guiada pelo amor divino.” [26]
Mas vai sendo tempo de terminar este excurso.
A lenta chegada da Idade dos Homens a Portugal, teve momento definidor de retumbo no Terramoto de 1755 e na acção contígua do Marquês de Pombal, o signatário da substituição na universidade portuguesa do ensino da metafísica aristotélica pelo da economia política. Antonio Genovesi, o genuense e o seu ensino economicista acabara de suceder na Universidade de Nápoles a Giambattista Vico e à doutrinação deste, dirigida à formação da mente heróica. Enquanto a Europa atravessa a série iluminismo, positivismo, socialismo, sem a salvaguarda de um liberalismo mais ou menos romântico, consuma-se o ciclo hominal economicista nas sociedades que o plutocrata governa sem rei nem lei, na ignorância da hora.
A ocasião é pois propícia para falar de juventude, como neste colóquio, no centenário da República Portuguesa, sob a égide de um Portugal Renascente.
E por isso, terminemos por ora com esta interrogação de Teófilo o Jovem:
“Como se manifestou porém a poesia, primeiro elemento de toda a linguagem?
As legendas divinizam esse sonho da grande noite dos tempos; os deuses refugiados na terra ensinam o segredo da harmonia, é Apolo que traduz as leis na magia da cítara.”
“O lirismo da idade divina teve uma expressão recôndita, interior, intransitiva, porque era universal, como a tem o olhar de esperança e de saudade, como tem a cor expressão da luz, como tem a luz expressão do infinito.” [27]

Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte
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* Comunicação apresentada pelo autor ao Colóquio "Entre Guerra Junqueiro e Teófilo Braga", em 30 de Janeiro de 2010, na Biblioteca Municpal de Sesimbra, no âmbito do ciclo Portugal Renascente.
[13] Ibid., p. 119.
[14] Ibid., p. 120-122.
[15] Ibid., p. 37.
[16] Ibid., pp. 40, 60. Em referência à fundação da filosofia a história, Teófilo traduz a seguinte passagem de Vico: “Adoptamos a divisão dos três estados, estabelecida pelos egípcios, a saber: a idade dos deuses, dos heróis, e dos homens, porque nós temos observado entre todas as nações três espécies de naturezas. Estas naturezas produzem três espécies de costumes, donde derivam três espécies de Direito natural das gentes, que produzem três estados civis ou de repúblicas. Para se comunicarem estas três espécies de coisas principais, os homens reunidos em sociedade compuseram três espécies de linguagens, e três espécies de caracteres, depois do que criaram três espécies de jurisprudências, que precisaram para a sanção de três espécies de autoridades e de três espécies de razões ou de direitos, por meio dos quais se formassem três espécies de julgamentos” (Ciência Nova, IV, “Da marcha das nações”, in Traços Geraes de Philosophia Positiva, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1877, pp. 33-34).
[17] Poesia do Direito, intro., p. 30.
[18] Poesia do Direito, pp. 80, 84. Não raro, o herói tem de avançar sobre um dragão que guarda um tesouro (“na Escandinávia cria-se que o ouro crescia juntamente com o dragão que o vigiava”, segundo nota n’A Ondina do Lago, pp. XIV-XV), só depois atingindo as imperituras moradas encantadas.
[19] A Ondina do Lago, Porto, 1866, p. XIII.
[20] Poesia do Direito, p. 53.
[21] Poesia do Direito, p. 80. “Os sentimentos cómicos, despertados quase sempre pela satisfação ou pelo desespero no gracejo ou no sarcasmo e ironias, geram a comédia de uma sociedade nova, da burguesia. O Aparecimento de Aristófanes representa também o último progresso da sociedade ateniense; foi igualmente o cómico que salvou e protegeu a primeira manifestação da liberdade moderna” (A Ondina do Lago, p. XXII).
[22] Poesia do Direito, p. 44.
[23] Ibid., p. 61. “Da árvore da ciência do bem e do mal, vemos como o símbolo compreende a religião e o direito; é daqui que vem a noção de direito que tinham os antigos – a ciência do justo e do injusto.”
[24] Ibid., pp. 60-62. O passo da Eneida (Canto VI, 1), das palavras da Sibila, é assim traduzido por Agostinho da Silva: “Em árvore, em ramos bem difíceis / de serem desviados, há um deles, / de brando caule e de folhagem de ouro / o consagrado à Juno dos Infernos. / Bosque inteiro o defende, sombra oculta / no mais cavado dos escuros vales. / Mas a ninguém é dado aproximar-se / do mistério que é terra por debaixo / antes de ter tirado desse ramo / pequeno enxerto de cabelos de ouro / que decidiu Prosérpina seu fosse, / é presente que tem de lhe ser dado. / Arrancado o raminho, nasce um outro / que é igualmente de ouro e que não deixa / de brotar novamente com folhagem / que é do mesmo metal. Busca-o pois, / trabalhem os teus olhos, quando o vires / com tua mão o colhe, ritual. / Deixará docilmente que assim faças / se os destinos te forem favoráveis” […] (Virgílio, Eneida, VI, 1). Eneias é conduzido até ao Averno por duas pombas, ao precioso ramo: “assim naquele azinho sobre o escuro / aparecia o ramejar dourado, / cujas lâminas finas crepitavam / ao vento leve que passava nelas.”
[25] Poesia do Direito, Cap. VI, pp. 60-67. Pode aqui recordar-se a batuta - herdeira das mais antigas tradições do ramo - com que o maestro rege a orquestra, no lugar do Criador, conduzindo a música cósmica.
[26] A Ondina do Lago, ob. cit., p. XX.
[27] Poesia do Direito, p. 41.

PENSANDO À BOLINA, 27

Pedro Sinde



Portugal: os homens da terra e os homens do mar
Se é verdade que esta pátria em que vivemos devia ser a imagem na terra da pátria celeste, também é verdade que Portugal como o temos hoje é inimigo dos portugueses. Ser-se patriota, hoje, só pode significar verdadeiramente que se ama algo que Portugal foi ou algo que se espera que Portugal será. É possível ainda que ambas se cruzem.
O valor por excelência de uma pátria é ela ser uma expressão peculiar, o mesmo é dizer uma refracção, da luz da Verdade. Isto significa que uma pátria deve estar de tal modo organizada que deve ajudar aqueles que lá vivem a encontrar o caminho para Deus, isto implica necessariamente que a pátria procure, de algum modo, realizar, na medida do possível, o paraíso na terra. Quando uma pátria não só não o cumpre (ou se cumpre) como ainda se torna um obstáculo, então deve-se deixar claro que tipo de patriotismo se defende ou corre-se o risco de se ser mal entendido e de a acção daí resultante poder ser interpretada em sinal contrário ao que devia.
Aquilo que de mais importante perpassa a identidade portuguesa está como que aglutinado em dois núcleos, que correspondem a dois tipos psíquicos: o homem da terra e o homem do mar. Um é o que tem o amor à terra, a fixidez do interior; outro, nítido, é o do amor pelo elemento líquido, movente. Se um ama a raiz, o outro ama o vento; se um quer ficar, o outro quer partir. Ao longo de toda a nossa história sempre houve possibilidade para que estes dois “tipos” de portugueses se realizassem. Podemos encontrar estes dois tipos nas mais diversas actividades e é particularmente interessante encontrá-los na nossa História e na nossa Literatura.
Hoje, os portugueses da viagem, os homens do mar, não sabem o que fazer e entretêm-se em pequenas guerrinhas de invejas e pequenos pecadilhos de pacote; estes são os que, sem saber o que fazer, porque não têm como realizar a sua natureza, mal olham para o vizinho do lado. Os homens da terra, por seu lado, esperavam que os outros lhes trouxessem histórias do longe e da distância, histórias que os fizessem sonhar. Em vez de histórias ouvem o mal dizer. E assim se envenenam reciprocamente as almas prisioneiras de um país medíocre.
Os homens da terra tinham por função perpetuar a tradição; os homens do mar tinham por função renovar a tradição. Era deste equilíbrio que se fazia a vida em Portugal, naquele tempo em que a Pátria era caminho. Hoje, não é caminho, é cerca ou muro.
Pensando na herança dos homens do mar, não podemos deixar de sentir mágoa, porque os melhores deles, os que iam à ventura e não os comerciantes, encontraram múltiplas tradições, viram que havia inúmeras formas de adorar Deus, viram que só havia um Deus; apaixonaram-se por outros povos, pelas mulheres desses povos, pela terra desses povos, pela paisagem e pelo vento desses povos. Estes que por lá andaram raramente voltaram e, por isso, não temos tantos vestígios entre nós como seria de esperar, tendo em conta a nossa História e os séculos de viagens. Mas esta herança, se não está tanto nos vestígios materiais, está, contudo, seguramente na sua (que é também a nossa) alma. Essa herança não é apenas a dos homens do mar, é também a dos homens da terra, porque estes guardaram em si, naquilo que teve de melhor, o convívio entre as três tradições.
Estas duas heranças conjugadas deviam-nos fazer pensar, à luz deste tempo que vivemos, na importância que pode ter este universalismo de atitude. A questão está apenas aqui: quando vão os portugueses deixar a maledicência e a inveja e procurar o que é que em si, no sangue que lhes vem dos antepassados, os fez partir em tempos? Haverá ainda portugueses à altura da herança que levam no sangue da alma?
Poder-se-á dizer que Portugal não é só isto e que muito mal fez no mundo aos povos entre os quais viveu e que muito mal fez aqui dentro às outras tradições, queimando mouriscos e marranos. É verdade, mas se alguém tiver um pai que tem um defeito e uma virtude, e se tiver herdado ambos, não deve procurar livrar-se do primeiro e estimular a segunda? Nem serve estar sempre a repisar o defeito e a apagar a virtude (como fazem certos historiadores canhotos), nem serve camuflar o defeito por baixo da virtude (como faz certo lirismo interpretativo-patriótico). Lembremo-nos que Sampaio Bruno dizia que hoje estamos colher o que semeamos nos Descobrimentos.
O português tem a obrigação de estar à altura do melhor da sua herança; e o melhor é, pelos dois lados (o paternal do mar e o maternal da terra), o amor às tradições diversas. Portugal não é um povo como os outros, por qualquer razão estranha, é um povo em diáspora, mesmo quando não sai. Só isto explica que assim que acabou de conquistar o território e poderia viver nele descansado, imediatamente tivesse partido para as Descobertas, deixando o país em que, finalmente, poderia viver tranquilamente.
Os portugueses, pela sua herança, deviam ter condições para saber como olhar para a diversidade das tradições, hoje forçadas a conviver. Os portugueses deviam saber que só há um Deus, como diz Junqueiro: “No universo inteiro há uma só diocese e uma só catedral com um só bispo – Deus.” Por que persistem os portugueses em negar a nobreza da sua herança e ficam na sua rotininha de umbigo? É um mistério estranho, este o da decadência dos povos. Mas, como dizia Agostinho da Silva, e parafraseando-o: se Portugal não é um povo eleito, pois que faça o favor de se eleger!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

TEÓFILO O JOVEM, 2

Rodrigo Sobral Cunha



Assente, por conseguinte, que houve um Teófilo romântico e um Teófilo positivista e que essa dualidade atravessará a sua obra, na qual se há-de contar decerto a República Portuguesa, importa agora reparar bem que durante uma década permaneceu ele em linha directa da obra de Vico, onde, segundo conta na Autobiografia, “recebeu a primeira iniciação”, precisamente pelo verdadeiro sentido da poesia.
Nessa Autobiografia Mental, com efeito, mostra Teófilo como da convergência do seu “estado de poesia” com o seu mais alto ideário resultou o esforço principal da sua obra:
“Foi na Ciência Nova, de Vico, que tive a primeira revelação poética dos Símbolos com que a Humanidade exprimiu com verdades as suas aspirações; Mitos e Fábulas, Alegorias, Tropos, Imagens, Lendas, Contos, são uma linguagem do sentimento que só o poeta moderno compreende, quando identifica sob a forma de Emoção a Síntese filosófica atingida pela inteligência.”
“Pelo trabalho intenso da Epopeia humana e coordenação simultânea de uma História Universal, apareceu-nos em toda a sua nitidez o pensamento determinativo ou a missão que se encerra em uma História da Nacionalidade Portuguesa. O sentimento nacionalista é servido pelo ideal poético e pela narração histórica. Na marcha da Civilização europeia é imprescindível o conhecimento da acção do Povo português iniciando pelos Descobrimentos marítimos a era da actividade pacífica; como Israel, como a Grécia, como a Holanda, Portugal cumpriu uma missão impulsora inolvidável […]. [9]
“Sob este aspecto, a História de Portugal muitas vezes me parecia como um hino; no estudo da História universal, apareceu-me em toda a luz o pensamento de Schiller, em uma das suas cartas: ‘Um espírito filosófico só pode particularmente interessar-se por uma nação quando ela lhe aparece como condição do progresso da humanidade inteira’.” [10]
Admitindo que a maior parte da obra de Teófilo Braga é consagrada ao desenho da Idade Humana – e há-de se ter reparado como colocou ele Portugal à proa da “era da actividade pacífica” –, a reflexão que aqui expomos sob o título “Teófilo o Jovem” procura clarear no campo do pensamento contemporâneo os resultados quase perdidos da experiência da convivência de Teófilo Braga com o pensamento de Giambattista Vico; particularmente nessa primeira década do percurso intelectual desse jovem das fragas do Atlântico, voltado então, na senda da Scienza Nuova, para as idades dos deuses e as idades dos heróis.
É, pois, sobre a juventude que queremos hoje falar.
Logo na introdução da Poesia do Direito, compreende-se o modo como é posto em jogo o projecto filológico da arqueologia antropológica de Teófilo Braga:
“As primeiras idades da humanidade, períodos de formação e de renovação, em que os grandes factos do espírito recebem forma, ou se transformam, têm o nome de poéticas, para designar a força misteriosa que se evolve em uma génese de vida”. [11]
Teófilo descreve assim a idade primordial, assim como os primeiros passos do vero heroísmo:
“A idade divina é a idade da infância. A alma flutuando entre spiritus e anima parece não haver-se destacado ainda completamente do spiritus. Ela então é criadora como Deus; a sua linguagem era a poesia, um diálogo de amor e júbilo expansivo com toda a natureza. O homem balbucia uma estrofe do canto universal, e cada nota desse concerto misterioso foi uma palavra da linguagem primitiva. É por isso que nas línguas primevas não se encontra o metro artificial, são todas ritmo, todas harmonia. A idade divina, ou da poesia da humanidade, é o período de um génesis estupendo e prodigioso. Cada olhar do homem em volta de si era um fiat, dava vida a tudo, porque a sua alma transbordava com vida.”
“Os primeiros poetas foram os primeiros sacerdotes, os primeiros legisladores. O verbo que exprimia o fas serviu também para exprimir o jus. No alto do Sinai, coroado de nimbos espessos, retalhados pelo coriscar dos raios, Moisés recebe a lei das mãos de Jeová; Orfeu e Anfião, os mais antigos legisladores no mito helénico, fazem compreender a lei pela magia do carmen. As feras perdem a sua braveza, os rios suspendem a torrente caudal para ouvirem atentos a Lira harmoniosa; era a força maravilhosa da associação que começava a fazer-se sentir. A Lira, segundo a prodigiosa indução de Vico, representa ‘a união das cordas ou das forças desses patriarcas, que fizeram cessar o emprego da força ou das violências particulares pela formação da força pública ou do império civil. A Lei foi chamada pelos poetas Lyra regnorum’.”
“Mesmo as ciências de contemplação superior, como a Filosofia, a Matemática, a Astronomia, serviram-se da linguagem cadenciada pelo número. Tales, Pitágoras, Bías de Priene e Empédocles foram também poetas.” [12]

Antecedentes: 1.ª parte
(continua)
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[9] Em 1947, cita Álvaro Ribeiro análoga síntese teofilina inclusa em As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa: “O génio e a missão histórica do povo português revelam-se na deslocação das civilizações do Mediterrâneo para o Atlântico, e pela audaciosa actividade marítima, com que iniciaram a era nova de civilização pacífica e industrial. Todas as investigações do nosso passado histórico devem dirigir-se a este fito: mostrar como logicamente cumprimos esse destino, encetando as grandes navegações, e como se deve perpetuar na marcha da humanidade o lugar de honra que nos compete” (As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, II, p. 345, in Álvaro Ribeiro, Dispersos e Inéditos, I, ob. cit., p. 318).
[10] “Autobiographia Mental de um Pensador Isolado”, in Quarenta annos de Vida Litteraria (1860-1900), Lisboa, Typographia Lusitana – Editora Arthur Brandão, 1902, pp. XV, LI.
[11] Teófilo Braga, Poesia do Direito [1865], in Poesia do Direito, Origens Poéticas do Cristianismo, As Lendas Cristãs, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda (Colecção Pensamento Português), 2000, p. 27.
[12] Poesia do Direito, ob. cit., pp. 40, 44.

AFORISMOS, 19

Eduardo Aroso

87 – António Telmo, na sua obra Gramática Secreta da Língua Portuguesa citando o diálogo de Sócrates e Protarco, em Platão, Filebo, 16b-17b, converge assim para uma melhor compreensão do aspecto da natureza humana que abarca os domínios da fala:
«Protarco – Há no que tu dizes coisas que julgo compreender e outras que permanecem obscuras e necessitam de maior claridade.
Sócrates – A claridade, Protarco, ser-te-á dada pelas letras do alfabeto. Procura-a naquelas que soletraste na infância».
Neste rasgo de sabedoria, o filósofo grego antecipa-se assim, neste particular, à psicologia contemporânea, sobretudo depois de Piaget, que vê na infância uma importância quase decisiva para o percurso do ser humano. Na doença de Alzheimer, a ausência progressiva da perda de memória, num processo regressivo, como que guiando a vida para um desenlace ao encontro das primeiras palavras e memórias longínquas, parece estar de acordo com essa necessidade vital de procurar a claridade do verbo na infância. Não sabemos se ao proferir as últimas palavras «Mais luz», Goethe invocava essa misteriosa claridade dos primeiros anos, estando dada como certa, entre os estudiosos, a afirmação de Parménides «Pouco importa por onde comece, porque terei de aqui voltar».
88 – Já foi dito que Portugal é o país do Ocidente, mas convém salientar que esse ponto cardeal corresponde à 7ª casa do horóscopo, a das relações, regida pelo planeta Vénus, e que também nos remete imediatamente para o significado da Ilha dos Amores, fazendo jus à verdade de que os actos humanos devem ser guiados pelo amor. A 7ª casa inicia o hemiciclo superior do horóscopo que, arquetipicamente, se pode traduzir por eu e os outros em situações de relação diversas e em diferente grau. Segue-lhe, na ordem natural, a 8ª casa, regida por Escorpião (o inferno das transmutações) e a 9ª, de Sagitário, onde reina Júpiter (filosofia superior e relações com o estrangeiro). Ora, havendo o propósito de Portugal Renascente, está bem aberta essa realização, pois o mito da Fénix (8ª casa) indica que é possível Portugal renascer das cinzas (pela morte – real ou iniciática - e ressurgimento) para então entrar num novo ciclo de expansão, também prometido pelo significado da 9ª casa e pelo benéfico Júpiter: ecumenismo, sentido religioso e filosofia superior. Portugal renascido (ou rejuvenescido) é o que também devemos entender por Desejado, como desejada é a saúde quando estamos enfermos.
89 – A um governante só se lhe exige que tenha um – e apenas um - nítido traço de inteligência: o de ter inteligência para dar voz e permitir a acção das inteligências do país que governa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

TEÓFILO O JOVEM, 1

Rodrigo Sobral Cunha

Entre nós os da língua portuguesa, o provérbio Vox populi, vox Dei – que todos os Cristãos do Sacro Império Romano-Germânico conheceram, como aliás os antecessores da Christianitas do Império Romano – mantém de certo modo duas traduções, ou tradições, que enunciam duas leituras consoante queiramos escutá-lo do lado de Deus ou do lado do Povo. Digamos que uma versão do provérbio – Voz do povo, voz de Deus – é teocrática ou teológica, o que equivale a dizer conforme o desígnio do alto: posto que o povo escuta a Deus, escutando o povo escuta-se Deus, que é assim como a voz do povo; ou seja – a voz de Deus soa na voz do Povo. A outra versão do provérbio – A Voz do povo é a voz de Deus – permite já uma interpretação antropológica ou democrática, isto é, segundo o humano desígnio: escutar a voz do povo confunde-se de tal modo com escutar a voz de Deus, pois tanto fala Deus ao povo, como fala o povo a Deus, que se vai a ponto de se escutar Deus no falar do Povo; ou seja – a voz do Povo soa como voz de Deus. Claro que a interpretação maior do sábio provérbio é a que, colocando os dois como em um, não distingue versões, para melhor unir o que Deus e Povo não quiseram separado.
Procuramos assim, entretanto, aproximar-nos em obnubilada homenagem do sentido do nome próprio de Teófilo Braga (1843-1924) – o Amigo de Deus – cujo operoso amor ao Povo Português haveria de erigir pai da Pátria, “um dos últimos pais da Pátria”, segundo Álvaro Ribeiro, que em 1977 o exarava também “o último romântico”; especificando: “na exactidão histórica de quem defendeu o princípio cultural das nacionalidades, inspirado na tradição do medievalismo.” [1]
Segundo a caracterologia do exegeta da filosofia portuguesa, “Teófilo Braga pertenceu muito mais à família espiritual de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett do que à de Antero de Quental, Oliveira Martins e Eça de Queiroz” [2]. Notou, com efeito, Álvaro Ribeiro que “em Portugal foram Teófilo Braga, Sampaio Bruno e Teixeira Rego os escritores que nos ensinaram a extrair da nossa história da literatura uma história de filosofia […]” [3]. Para Álvaro Ribeiro, é Teófilo Braga “o mais poderoso obreiro da literatura portuguesa na segunda metade do século XIX”, cujo pensamento “surge na configuração propícia de um precursor da filosofia portuguesa”, ensaiando a expressão inaugural de “uma visão filosófica da História da Literatura Portuguesa” [4]. Na assunção das raízes populares portuguesas, bem como das ramagens da verdadeira teoria, virá a propósito recordar ainda o comentário de Álvaro Ribeiro – até porque ajuda a elucidar a dualidade característica do pensamento português – de que “Agostinho da Silva concorda com Teófilo Braga em atribuir ao povo uma resistência de ordem maravilhosa e de sinal profético”, posto que “a diferença notável entre os dois historiadores da literatura está em que o doutrinador positivista procurou fundamento na lei dos três estados, formulada por Augusto Comte, enquanto o intérprete franciscanista considera por firmamento o dogma da Santíssima Trindade” [5].
A singularidade romântico-positivista do pensamento de Teófilo condu-lo a assertivas como esta: “No organismo social, a consciência é conhecida pelo nome de Nacionalidade; ela está ligada a impressões profundas, de uma persistência tenacíssima, até ao ponto de já não existir nenhuma forma material de nação, e ainda se conserva esse sentimento, como se vê com o Judeu. As impressões que perpetuam essa consciência nacional são o objecto das tradições, são o proselitismo religioso, são a dedicação altruísta do civismo, por onde se revela a vida histórica de um povo.” [6]
Uma ritmanálise do pensamento de Teófilo Braga mostra-o, porém, inconciliavelmente dividido, como ele mesmo confessa no mês dos seus quarenta e um anos, entre “a serenidade contemplativa da Arte” e “a crítica, a erudição, a ciência, a filosofia”. E se nesse mesmo texto acrescenta: “só muito tarde é que consegui conciliar em mim estas duas tendências do espírito”; na verdade, um passo de linhas aí à frente vai situar-se a si mesmo, com sinceridade maior, “neste dilema dos dois amores, em que ainda se debate o espírito, atraído para a arte e seduzido pela ciência.” [7] Ora, um tal dilema, como é sabido, reflectiu-se muito especialmente nas opções que Teófilo Braga tomou em relação ao pensamento de Giambattista Vico e em relação ao sistema de Auguste Comte. Ninguém ignora qual destes dois modos de compreensão do movimento histórico se tornaria vigente no tempo dos homens e sua mentalidade, até nós.
Escutemos o que em torno disto mesmo pensou Álvaro Ribeiro:
“Lamentamos hoje que Teófilo braga não tivesse permanecido fiel à inspiração de Vico para aplicar ao pensamento do seu tempo e ao estudo das coisas do nosso país. Vico era o representante de uma filosofia peninsular em reacção a uma filosofia continental que, no século XVII com o cartesianismo como no século XVIII com o enciclopedismo, sempre tem pretendido assumir hegemonia na cultura europeia. O anticartesianismo dos povos insulares e peninsulares, orientado segundo o pensamento de Vico, seria a libertação fecunda de um falso e abstracto universalismo.
“Correspondia o pensamento de Vico às tendências próprias do liberalismo romântico, quer pela sua predilecção teológica, quer pelo estudo das tradições, quer pelo sentido da liberdade humana. A obra de Michelet, muito lida pelos escritores portugueses, ainda mantém pura a inspiração do filósofo napolitano. Só mais tarde foi o humanismo de Vico interpretado num sentido pragmatista e ateu, por quem não soube ler o contexto das suas obras admiráveis.”

“A poesia é, para Aristóteles, mais verdadeira do que a história. Mas a filosofia da história, nas grandes linhas traçadas por Vico, é propícia à formação de grandes poemas e à epopeia da humanidade. A Visão dos Tempos, de Teófilo Braga, como audaciosa e original concepção deste tipo, tem o alto mérito de ser uma concepção nova, embora imperfeitamente realizada.” [8]
(continua)

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[1] Álvaro Ribeiro, Dispersos e Inéditos (Organização e apresentação de Joaquim Domingues), III, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 287. São ainda palavras de Álvaro Ribeiro acerca de Teófilo Braga: “Ninguém, como o último romântico, soube interpretar a História do Povo Português nos seus aspectos fonético, prosódico, versicular, ortográfico, literário, político, científico, filosófico e religioso como o Mestre admirado, venerado e respeitado do Curso Superior de Letras” (ibid., pp. 291-292). E na transição para a política, observa Álvaro Ribeiro: “Teófilo Braga viu que o problema social português consistia em doutrinar um amplo escol que estivesse apto a exercer as funções governativas logo que fosse proclamada a República” (ibid., p. 580). Num texto intitulado “Vicissitudes da filosofia portuguesa”, de 1952, Álvaro Ribeiro regista: “Como é sabido, foi Teófilo Braga quem conseguiu transformar a propaganda romântica e messiânica de um regime político melhor, - melhor do que o regime da Carta Constitucional, - na severa doutrinação positivista que conduziu logicamente à proclamação da república” (Álvaro Ribeiro, Dispersos e Inéditos [Organização e apresentação de Joaquim Domingues], I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 472).
[2] Dispersos e Inéditos, III, ob. cit., p. 288.
[3] Álvaro Ribeiro (1957), in Dispersos e Inéditos (Organização e apresentação de Joaquim Domingues), II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 356.
[4] Álvaro Ribeiro, Os Positivistas – Subsídios para a história da filosofia em Portugal, Lisboa, s.e., 1951, pp. 58-59, 64. “Uma teoria das morfologias culturais talvez fosse a mais conveniente para o trabalho que Teófilo Braga se propôs fazer entre nós e que em grande parte realizou. […] Assim deixou-nos Teófilo Braga uma obra que podemos admirar com sinceridade, que podemos utilizar com proveito, mas que serve principalmente de modelo e exemplo para quem quiser reconstituir, à luz da filosofia especulativa, a teoria da cultura portuguesa” (ibid., p. 77).
[5] Ibid. (1958), p. 455.
[6] Teófilo Braga, Traços Gerais de Filosofia Positiva, Lisboa, 1877, p. 8 (citado por Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, ob. cit., p. 72).
[7] Preliminar dos Contos Phantasticos (2ª edição), em Fevereiro de 1894. Nos Contos tradicionais do Povo Português, cita Teófilo, sintomaticamente, o poemeto de Filinto Elísio “Defeitos da Filosofia”: “Que cousa há nas matas espinhosas / Dessa magra e subtil Filosofia / Que emparelhar se atreva c’um bom Conto / De Fadas, c’o condão de uma varinha? […] Oh ricas Fadas, rico encantamento, / Enleio dos sentidos agradável, / Com que saudade crua, e com que pena / Vos choro, de entre nós afugentadas / Por esses maus Filósofos esquivos / De todo o bom saber […]!”
[8] Álvaro Ribeiro, Os Positivistas – Subsídios para a história da filosofia em Portugal, ob. cit., pp. 59, 60, 163. Dedicámos há mais de uma década um estudo ao pensamento de Giambattista Vico e à sua recepção na Europa e em Portugal, sob o título “Giambattista Vico e Europa: Ciência da Lira e das Nações”, publicado em Gepolis - Revista de Filosofia e Cidadania, nº 6, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 1999 (pp. 50-61).

domingo, 7 de fevereiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 51


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Poema do fundo

Eduardo Aroso

Um pé já fora da corda,
Na república em crise
Há o outro em deslize.
Ninguém bate com a cabeça
Para ver se de vez acorda,
Levantando os portugueses,
Erguendo-os um a um.
Só as finanças batem no fundo
Não encontrando fundo nenhum…

5-2-2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 50

A Felicidade*
(Conto Árabe)
M. Bento de Sousa

O sultão acha-se à morte;
Com seu mal ninguém atina;
E é entregue à sua sorte
Pela grande medicina.
Naquelas horas supremas,
Em conselho os seus vizires
Mandam chamar os ulemas,
Os dervixes e os faquires.
Com rezas e benzeduras
Entra a moura multidão
E nas últimas tremuras
Deixa o pobre do sultão.
Há orações na mesquita,
No Alcácer e na cidadela,
E mais o sultão se agita,
Sempre a esticar a canela.
Chega um velho ao pé da cama,
De esfarrapado albornoz,
Papuzes cheios de lama
E bordão cheio de nós,
Santo e sábio marabu,
De muita voga entre os crentes
Que o sultão manda pôr nu
E lhe diz por entre os dentes:
– “De homem que tenha ventura
Veste a camisa inda quente,
Que te dou por certa a cura
E não mais serás doente!”
Correm pachás, beis, Cádis
E em cada tribo e aduar
Pedem um homem feliz,
Sem nunca o poder achar.
Até que num burgo vil,
Lá muito fora de mão,
Canta ao som dum anafil
Um corcunda folgazão:
– “O rico teme a pobreza;
O grande teme a desgraça;
O belo chora a beleza,
Ao ver que pronto ela passa.
Eu vivo na patuscada;
Mais feliz não posso ser:
Tenho tudo sem ter nada
E sem risco de o perder!” –
O homem feliz! Ei-lo enfim!
E, preso em seguro escolta,
É amarrado ao selim
E levado à rédea solta.
E, despido ante o sultão,
Que frio de pedra agoniza,
Vê-se que o tal felizão…
Nunca tivera camisa!...

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* NOTA DO EDITOR: este poema, de um autor do século XIX, foi-nos enviado por Rita Pinto, e integra o Livro de Leitura - Parte II, organizado por José Pereira Tavares, para o Ensino Liceal da Língua Portuguesa, e publicado em Lisboa em 1951.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

CARTAS DO EDITOR, 3

Os Cadernos de Filosofia Extravagante completam hoje o seu primeiro ano de vida. Com efeito, foi em 4 de Fevereiro de 2009 que se iniciou a publicação desta página, dando-se então a conhecer o respectivo projecto num texto de Apresentação da lavra do seu mentor: António Telmo. O surgimento do blogue precedeu e preparou, com um mês e meio de antecedência, a saída do primeiro número dos Cadernos em papel, Universalidades, que foi lançado em Sesimbra a 21 de Março e teve ainda sessões de apresentação em Lisboa (Galeria Matos Ferreira e Auditório da Feira do Livro), Setúbal (Casa Bocage e Prima Folia), Porto (Clube Literário) e Montemor-o-Novo (Livraria Fonte de Letras). Paralelamente, houve o ensejo de organizar, em colaboração com esta casa livreira transtagana, um ciclo de simpósios dedicado aos 12 teoremas do jornal 57, que irá terminar no final do mês em curso. Entretanto, como é sabido, um novo ciclo, desta feita em Sesimbra, e promovido em parceria com a edilidade local e a revista Nova Águia, teve há poucos dias o seu início, com uma sessão dedicada a Junqueiro e Teófilo, magnificamente tratados por Pedro Sinde e Rodrigo Sobral Cunha respectivamente (a comunicação deste último será aqui publicada na próxima semana, e sairá depois a lume no sexto número da Nova Águia), a que se seguiu o lançamento do novo livro de Carlos Aurélio: Cartas de Noé para Nayma. A este propósito, não pode o editor deixar de dirigir uma palavra de amizade e reconhecimento a Renato Epifânio, que é um dos directores daquela revista e será um dos colaboradores do segundo número dos Cadernos, a sair em Junho, e que, desde a primeira hora, tem apoiado por diversas formas o projecto extravagante. Uma outra palavra calorosa é devida aos leitores (pouco faltou para se atingir as 20.000 visitas neste primeiro ano) e aos colaboradores, mais ou menos habituais, deste blogue, que é um espaço de liberdade, palavra por vezes incompreendida. Escrevendo isto, ocorrem então ao editor dois ensinamentos magistrais. Um, de Teixeira de Pascoaes, lembra-nos que corrigir, em vez de destruir, é um sábio preceito económico; e o outro, de Álvaro Ribeiro, recorda que quem diz o mal se torna a pouco e pouco incapaz de ouvir o bem. Eis o que se não deve perder de vista.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 30

DESPONDENCY

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!

Antero de Quental

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

AFORISMOS, 18

Eduardo Aroso


84 – A actual Assembleia da República, mesmo nos momentos mais solenes, constitui paródia grosseira do rigor, equilíbrio e sentido hierático existentes nessa tão enigmática como nobre Assembleia de Seres que são as figuras serenas dos Painéis de Nuno Gonçalves, e que deveria ser modelo, salvo a natureza, em grau, nas diferentes funções da vida da nação. Enquanto que a assembleia representada pelo pintor quinhentista é um arquétipo de plena e insubstituível participação de cada um dos presentes, dir-se-ia de singulares em comunhão ou diversidade convergente, o actual hemiciclo parlamentar é um amontoado de pessoas que mexem em ideias sem ideais, desordenamento de fragmentos, que poderiam pertencer a qualquer país, mudando-lhe apenas o nome das localidades e instituições.
85 – Tem havido entre nós figuras que voaram aos cumes, Ícaros vencedores uns e outros menos sustentados, que andaram pela Taprobana das alturas, ousados seres, ainda que divididos em si. Antero foi um deles. Entre a metafísica e doutrinas sociais, temos essa alma sensível e visionária que viu falhar o 31 de Janeiro, desconhecendo-se se ao seu problema de existencialismo ou ao malogro da revolta se ficou a dever o infeliz desenlace no dia 11 de Setembro do mesmo ano. E nunca se sabe se, a acontecer mais tarde, o poeta não morreria de desgosto em 5 de Outubro de 1910 e nos dias que se lhe seguiram!
86 – No seu ofício de sapateiro - ou de alguém que cuida do que suporta todo o peso do corpo ou de uma pátria – Bandarra utilizava a tripeça, ou, simbolicamente, peça tripartida. 3 sonhos vertidos em trovas, ou 3 Idades da humanidade em visão de Joaquim de Fiore, enfim, 3 notas de um acorde pluri-civilizacional. Uma estrutura tripartida (a divina tríade), como havia sido a Divina Comédia de Dante e, mais tarde, a Mensagem de Pessoa. Agora que se cumprem 100 anos abarcando 3 repúblicas, podemos pensar no anti-profetismo de qualquer uma delas. Nas tripeças, como em tudo, existem as verdadeiras e as falsas; ao que parece, actualmente, continua a ser preferível a tripeça ao banco!... Há ainda a esperança de que Portugal se continue a apoiar (refundar) na vera tripeça do visionário de Trancoso, como nos apoiamos linguisticamente nas seguintes 3 palavras cada uma com 3 sílabas: Bandarratripeçasapato.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

PARA LER: RENATO EPIFÂNIO

República. Ainda os ecos do 31 de Janeiro: na Nova Águia, Renato Epifânio oferece-nos oportuna reflexão sobre a res publica. E também uma breve reportagem sobre a sessão de sábado passado, em Sesimbra, que assinalou o começo do ciclo Portugal Renascente, uma organização conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante, da Nova Águia e da edilidade sesimbrense.

JOSÉ MARINHO, IPSIS VERBIS

(no 106.º aniversário do nascimento do filósofo)



“Ser cidadão do mundo, essa confiante aspiração dos estóicos, está a caminho de ser uma terrível banalidade.”

“para realizar o universal concreto e real surgiram as pátrias”

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 7

“Sábado, 1 de Fevereiro de 1908: – morte, a tiro de carabina, no Terreiro do Paço, em seu regresso de Vila Viçosa, após a assinatura do decreto ditatorial de 31 de Janeiro, do rei Carlos I de Portugal. Foi igualmente morto seu filho herdeiro da coroa, o príncipe Luís Filipe.
Com o título de «Crime e Castigo», a 6, comemorando, por este teor escrevi:
«Assim na existência individual como na vida histórica das nações, a realidade apresenta subitaneamente quadros duma solenidade profunda tais que nem ao de longe, nos seus raptos mais audaciosos, logra aproximar-se-lhe o génio humano em suas mais trágicas e terríveis concepções. A imaginativa mais intensa é incapaz de fantasiar os tremendos exemplos que bruscamente irrompem da espontaneidade dos factos e o nosso pensamento estremece de pasmo perante a evidente flagrância do mistério imanente. Ao mesmo tempo que a nossa filosofia se confirma, o nosso coração é abalado e o sucesso espantoso assoberba-nos e esmaga-nos. Tal o formidando caso de Lisboa.
É certo que a nossa razão nos adverte de que esse tremendo castigo é o corolário lógico do abominável crime consubstanciado na expressão sintética de a ditadura, a qual, principiando por atentar contra todos os direitos políticos, terminou, com o execrando e inverosímil decreto de Vila Viçosa, por erguer a mão infame contra o mesmo direito comum. É certo. Mas nem assim serenamos, antes por isso mesmo a nossa alma se perturba, se inquieta, como que desvaira, sentindo-se de chofre em imediato contacto com o segredo último da consciência moral, na presença e de face com a apavorante justiça que reside na trama das coisas e constitui, por assim dizer, a dialéctica dos acontecimentos da história.
Se isto, que é terrível, é grande, outro e oposto aspecto, igualmente terrível, é ínfimo e abjecto: – a insensibilidade moral e a incompreensão mental dos criminosos. Esse lúgubre personagem denominado João Franco e os seus abomináveis colaboradores nãos e distinguem só por uma perversidade insolente inacreditável mas assinalam-se ainda por uma estupidez prodigiosa, que deriva da mais impudente ignorância, aliada a um cinismo orgulhoso e insensato.
Eles atingiram o extremo da soberbia ímpia, perpretando o verdadeiro sacrilégio de afrontar nas suas campas honradas os mesmos mortos, escolhendo propositalmente a data do 31 de Janeiro para a assinatura e referenda do decreto hediondo de Vila Viçosa. Por tal decreto esse pigmeu desprezível chamado João Franco erguia-se à mais alta culminância do poder que jamais privado afortunado alcançara das boas graças de seu amo e senhor; e paralelamente Portugal descia à mais rasteira das situações jurídicas até onde nunca se rojara, ainda nas mais lutuosas horas do despotismo tradicional. Esse decreto concedia poderes a João Franco como nunca os tivera, no detestável absolutismo de D. Miguel, o truculento conde de Basto e as «justiças» franquistas ficavam habilitadas para exercer as vinganças pessoais e políticas como não chegaram a estar as mesmas «justiças» miguelistas da Alçada que veio ao Porto enforcar liberais nos patíbulos da Praça Nova.”

Sampaio Bruno, in A Dictadura, Lello & Irmão, 1909