
A Europa vista pelo sonho de Veneza
Piano pianíssimo deslizava sobre as águas a gôndola dos pensamentos. O rosa acrescentado de azul tinha o encanto da primeira névoa que, quando, depois de mortos, envolve o novo céu. Nessa barca parecida com a da morte, os pensamentos não morriam, antes formavam espirais de memórias e cheiros. Memórias dessa cidade com demasiados momentos perfeitos, demasiados momentos juntos uns aos outros, para que não se re-questionasse tudo outra vez. Não era necessário o sossego místico, o desapego ou entrega, enquanto estava deitado nessa barco. Era apenas necessário semicerrar os olhos, respirar e ser. Por isso essa barca se assemelhava à barca dos mortos. Não que atravessasse um rio para outro mundo. Limitava-se a estar sempre no mesmo mundo. Os palácios eram toda a Europa concentrada, sua história, suas convulsões e êxtases, mas disso tudo restando apenas uma presença tocando o amor pelo oriente. A água não tinha o barulho normal que costuma ter a água que bate contra o barco, depressa ascendia em melodia. Melodia rendilhada e silenciosa, trepando pela gôndola, tocando-lhe os dedos, tocando-lhe as vestes, tocando-lhe a cara, tocando-o todo e elevando-o acima da cidade. Os cheiros da fruta e das flores eram a grande Primavera oferecida ao céu. Das estrelas viam-se rosas e narcisos, gotas de orvalho frescas escorrendo pelas cerejas, e as gôndolas tornavam-se cornucópias abundantes, brotando sem fim toda a frescura suave de um canto afrutado. Veneza havia sido criada pelos sonhos do alerquim. E cada gota, cada lágrima era uma flor a abrir. Europa significa apenas memória. Memória colhida num campo de sangue. Memória em imagens de arte e sentimentos velhos. As pontes eram braços estendidos entre vizinhos odiados e amados. Europa eram muitas janelas, muitos tons, muitas músicas, flautas e pianos, lutos e festas dignas de deuses. Não eram óperas encerradas em teatros. Eram óperas de vida. Cada europeu cantava uma ária no teatro vazio da sua consciência. Europa era a reviravolta da cornucópia no seu limite quando invadia o céu e ensinava os anjos a cantar. Era a austeridade da pedra e o calor da madeira, nessas voltas, tonturas, ameaças, gritos, lágrimas e esgotamentos. A gôndola deslizava nessa cidade fantasma. Era uma memória que brotava e encarnava nas cúpulas várias, ovais, redondas, simples, discretas, abóbodas-ovos de explosão aparente mas com a contenção de quem não chora e não se excede na alegria em frente ao público. Piano, pianíssimo, a Europa passava, pelos canais, pelas sombras, pelos crimes, pelos banquetes, passava como uma rainha, deixando atrás de si a água que reflectia os rostos mascarados, em vénia, delicada, triste e digna, enquanto ela passava.
GONDOLEIRO
ResponderEliminarSou o gondoleiro do universo
Que escança o canal dos amantes.
Em árias de amor vivo submerso
Remando nas águas dos diletantes
Fecundo os canais da Europa senil
Com as cores que a gôndola arpoa.
São viagens que escapam ao ardil
Que o vento do sangue a todos povoa
A gôndola navega sobre as águas
Que são as ostras da exposição
Onde os olhos sem medo das fráguas
Admiram todo o poder da criação
Ouvem este gondoleiro pintar
Os quadros vivos do canto coral
Remando com a voz o doce luar
Que acalma os rios da vida brutal
Gondoleiro que a chuva perfuma
Com o beijo das lágrimas caídas
Que ao remar entre as flores da espuma
Encontra a fonte das sombras perdidas
E a gôndola faz das sombras as frotas
Que afloram os canais com os banquetes
Que celebram a memória das rotas
Onde a Arte era os frutos dos mosquetes
E eu o gondoleiro das cidades
Remava árias que o prazer soltava
Sarando feridas às mocidades
Que o canal do nevoeiro afogava
Eis os remos de um canto afrutado
Furando as mágoas da vénia sagrada
Com a liberdade do orvalho grado
Que rega o remo da ária aflautada
Sou o gondoleiro do teu encanto
Mas não os fantasmas das tuas janelas
Que se abrem à explosão do pranto
Quando a Europa é um canal de celas
Remo entre memórias e cegueiras
Neste canal de amor ao Oriente
Feito de melodias e sem fronteiras
Porque a Primavera é florescente
Sou o gondoleiro do Universo
Remando a gôndola do canal
Cantando em cada ária o verso
Que mistura a terra com o sal.
Jorge Brasil Mesquita