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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 32

António Carlos Carvalho

O objectivo era claro: escrever um livro que suscitasse algo semelhante ao que acontecera em torno de «O Evangelho Segundo Jesus Cristo». Obviamente, já não há nenhum governante diligente para fazer o papel de censor, mas o escritor e a sua agente literária-consorte (que lhe deve ter inspirado novamente o tema) sabiam muito bem que isso iria dar alguma polémica, isto é, chamar a atenção para o livro, factor essencial nas vendas que se desejam. Por outro lado, é sabido que o laureado escritor não aceita que as crenças religiosas sejam mais fortes do que as ideologias, nem que a Bíblia prevaleça sobre «O Capital». Daí esta nova ofensiva, desta vez escolhendo um tema do (mal) chamado Antigo Testamento, o que permite ao velho escriba fazer um ajuste de contas final com o Deus em que diz não acreditar. E agora pode morrer descansado, dizendo ao mundo, como o outro escritor: «Caim sou eu».
Convém aproveitar este lamentável episódio para revermos o que sabemos sobre a figura de Caim, levando desde já em conta diversos factores de ponderação:
-- A «Bíblia» é, na verdade, um conjunto de livros, todos eles diversos mas «falando» uns para os outros, numa linguagem própria, por vezes crua, por vezes simbólica:
-- Não se pode ler como quem lê um romance, sobretudo os romances «leves» («light») que agora estão na moda: trata-se de um texto carregado de múltiplos sentidos, pelo que se recomenda fazer uma leitura meditativa, sempre acompanhada por comentários, os antigos e os modernos, dessa passagem do texto;
-- Uma leitura simplesmente «literal» (ainda por cima de uma tradução, por vezes a tradução de uma tradução) induz em graves equívocos de interpretação, de todos bem conhecidos, infelizmente.
-- Aquele conjunto de livros, aquela biblioteca, a que no Ocidente se convencionou chamar «Bíblia» tem narrativas históricas, certamente, mas constitui essencialmente uma série de histórias exemplares, escritas para nos fazerem reflectir – levando-nos a concluir, por exemplo, que «nós estamos lá», somos (ainda) iguais a muitas dessas figuras, com os seus defeitos e erros, não mudámos nada, a não ser para pior...
Dito isto, vamos então tentar perceber o que significa Caim (e Abel). Socorrendo-nos dos comentários feitos por Raphael Draï, André Neher, Claude Birman, Jean Zaklad, nossos contemporâneos.

Caim assassina Abel, de Albrecht Dürer
Primeira observação: «Caim» não é um nome, é uma designação – cuja raiz, KN, é também a de KIN’Á, ciúme ou inveja, e a de KINIAN, aquisição, apropriação. Eva (Hava), que o designa dessa maneira, indica assim que o «adquiriu» de Deus («Adquiri um homem com Deus»). Eva quer marcar a sua autonomia criativa e só ela, a mãe, o reconhece: «Caim» é monopólio de Eva.
«Caim» designa um tipo humano ou de humanidade. É agricultor, sedentário, vive segundo o tempo. «Abel» (Hevel, vapor, algo sem consistência), o seu irmão gémeo, mas que vem depois, «a mais», como um acrescento, é pastor, nómada, vive de acordo com o espaço. É outro tipo humano ou de humanidade.
«Caim» substitui Adam no cultivo da terra mas ignora que a deve guardar (tal como não sabe que deve ser o guardião do seu irmão), não vê que trabalha a terra do exílio, um solo que está degradado – e talvez por isso «Abel» se torna pastor, para salvar o essencial mantém-se à margem do irmão e do solo. Na verdade, «Caim» e «Abel» ignoram-se mutuamente (uma das obsessões bíblicas é o tema da fraternidade necessária, a ser construída). Não se podem misturar (mais tarde será escrito: «Tu não usarás uma veste de lã e de linho misturados», a lã representa «Abel» e o linho, Caim).
«Caim» efectua um trabalho cíclico, vê o trabalho como um fim em si mesmo, não sabe valorizar o lado espiritual dessa tarefa: devia fazer dessa actividade material uma liturgia. Julga que ser filho de Adam é trabalhar, quando se trata realmente de completar a Criação.
Os dois irmãos fazem oferendas a Deus: «Caim» apresenta uma oferta de produtos da terra, simples, indiscriminados; «Abel» oferece primogénitos, as primícias do seu gado.
Deus recusa a oferta de «Caim» e as faces de Caim caem – para a terra, da qual tem dificuldade em separar-se. Deus interroga-o: porquê essa reacção de irritação e de dor? «Caim» não responde. Deus avisa-o: «Se tu te tornares melhor, poderás voltar a levantar-te; se não, vê que a falta está agachada à tua porta, prestes a saltar, aspira a atingir-te mas tu, sabe dominá-lo».
E então «Caim falou ao seu irmão mas aconteceu» (espaço em branco no texto) «como estavam nos campos, que Caim se lançou sobre Abel, seu irmão, e matou-o».
Se «Caim» falou, não sabemos o que disse, nem qual foi a causa da discórdia – ciúme, aparentemente.
Quando Deus lhe pergunta onde está «Abel», «Caim» responde: «Não sei, acaso sou eu o guardião do meu irmão?» -- «Caim» tenta inverter a situação, tornando Deus responsável do seu acto, o primeiro homicídio. Na verdade, só toma consciência do seu acto depois, não reconhece o homicídio, esconde a vítima, camufla o seu sangue, que grita para os céus.
Condenado à errância sem Oriente, marcado por um sinal (aliás um símbolo, OTH, palavra formada pela primeira e pela última letra do alfabeto hebraico, que indica uma das causas do crime: a carência do simbólico, do domínio da pulsão de predador), «Caim» não assume o OTH, nega-o indo instalar-se num lugar chamado NOD (raiz ND, errância, inversão da raiz DN, de Din, justiça). O signo que marca o seu corpo era destinado a subtraí-lo à violência das represálias: «Se matarem Caim, será vingado sete vezes» (um número ilimitado). Não é um estigma, é um interdito.
«Caim retirou-se de diante de Deus e habitou no país de Nod, a montante do Eden». Entrando em rivalidade com Deus, quer fundar o seu próprio mundo, vai construir uma cidade que terá o mesmo nome do filho, Hanokh (raiz HNKH, que indica inauguração, novo início), como se a cidade fosse também sua filha.
A tradição oral conta que «Caim» foi morto pelo filho, e este, por seu turno, morto igualmente pelo filho. Uma sinistra árvore genealógica, que vai desenvolver técnicas de conquista, matando para alcançar os seus fins.
Só a partilha entre «agricultores» e «pastores», entre «citadinos» e «nómadas», só a noção de que temos de viver juntos, em paz, numa terra que não nos pertence – pertence a Deus, como as nossas vidas --, somente a fraternidade verdadeira impossibilita o fratricídio.
Mas ainda não aprendemos que só pode ser assim.

5 comentários:

  1. Haveria algo mais sobre o mito "gêmeos" na questão oferendas hozontais e verticais?
    Acho que sim...
    Caim seria a oferta da terra... o homem material que assim vê por bem "ser"... e Abel ofertas verticais, elevadas o sábio, o iniciado, mas tudo configurado por pelo esforço próprio na dualidade da alma...
    Uma ideia não mais...
    Mas Saramago nessa história deveria calar a boca, como um menino deve calar-se diante de seu pai, ilustrado...

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  2. «(...) a carência do simbólico, do domínio da pulsão de predador (...)»

    Caro António, há quem diga que o símbolo se degradou em signo, o qual se degradou um mercadoria. É aliás claro, senão para todos nós, que a linguagem simbólica se eclipsou deste nosso mundo árido e, apesar de tudo, desconexo. Isto trouxe consigo, no domínio da arte, um barbarismo subtil cada vez mais intenso e tendente, inclusive, à automutilação do corpo, à contra-natura. Devo a si a referência a Paul Virilio, de quem acabo de ler o capítulo 'Pitiless Art', que resume muito bem no que se veio a definir a arte contemporânea... e pela qual ele afirma que o negacionismo triunfou, sem que ninguém se desse disso.
    No entanto, a questão subsiste: se o simbólico tem a capacidade de dominar a pulsão de predador, ainda estaremos a tempo de o conhecer e de o fazer?
    Cordialmente,
    Pedro

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  3. Muito bom o texto, a mais a falar mas trazendo só para filosofia, ficou muito legal. Parabéns.

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