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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 76



Morreu um artista
Cynthia Guimarães Taveira

Morreu um artista chamado Figueiredo Sobral e, por momentos, os pássaros calaram-se ao vê-lo passar em direcção a um céu mais alto.
Lembro-me do nosso primeiro encontro. Menina e moça, aí com uns catorze anos, estava sozinha em casa. Tocaram à porta e espreitei pelo óculo da porta. Um senhor de barbas do outro lado. Chamo-me Figueiredo Sobral e procuro a senhora sua mãe. Deixei-o entrar. Sentou-se na sala e começámos a conversar. Parecia que nos conhecíamos desde sempre e falámos de arte, de pintura, de desenho. Mostrei-lhe os meus desenhos e as lágrimas começaram a rolar pela cara do velho mestre. Ele chorava com o belo, exactamente como, meses mais tarde, me aconteceria ao ver uma exposição dele onde meninas-anjos fundidas em metais tornados etéreos pairavam na galeria.
A minha mãe entrou em casa e o mistério estava desvendado, conhecera uma tia minha por quem tinha tido um fraquinho ainda novo e procurava-a pesquisando os nomes que com ela estavam relacionados, foi assim que fora ter a minha casa. Descobri-o sem sair do lugar, como disse Agostinho da Silva dos africanos que, afinal nos descobriram a nós sem navegar. Não me livrei do raspanete da mãe: “Então eu não te disse para não deixares entrar ninguém em casa a não ser o Paul Newman ou o Robert Redford?”. Para quê, perguntava-me eu mais tarde, se aqueles dois eram estrelas distantes, filmados em películas longínquas americanas, enquanto que o perfeito desconhecido que entrara lá em casa era um Mestre?
O Mestre que sem palavras ia ensinando, e falava nessa não voz do equilíbrio, da beleza, da essência da arte que só fazia sentido quando era uma mistura diluída entre o trabalho e a extrema sensibilidade. Sim, um Mestre à moda antiga, absolutamente honesto, transparente na sua relação com as formas e com as cores. As nossas almas coincidiam quando dizia ser um “surrealista barroco”, como se essa fosse a única saída do surrealismo que todos aprisionou em Salvador Dali. Escapar pelas voltas, pelas curvas, sair do sonho, e ainda nele tocar a terra. Um Mestre raro nos nossos dias, humilde e estranhando cada vez mais a loucura progressiva do planeta. Na obra de Figueiredo Sobral tudo retorna ao essencial. Não são necessários formatos gigantes para impressionar. Às vezes basta um quadro pequenino mas com uma intensidade que dura por vidas… Não são necessários novos materiais, panelas, lixo, tachos, corpos humanos, sangue, animais mortos, para se ser genuíno. Basta um pastel seco, um pau de giz, um lápis e eis a dança a começar no papel… não é necessário o marchand, o marketing, basta saber ver e ser absolutamente honesto nessa leitura que se tem da visão… não é necessário ter de sofrer uma iniciação teórica à arte contemporânea, altamente perniciosa ao gosto, para se gostar simplesmente do que se vê, sem discursos caros, elaborados, e filosofias de trazer por casa que justificam uma arte que se diz arte mas que é inqualificável. Não é necessária uma galeria com cocktails e investimentos, bastava a minha sala para que o entendimento genuíno acontecesse. Nesse momento a minha sala era um templo.
O Mestre ensinou a simplicidade, a humildade, a honestidade, a sensibilidade (matérias-primas da arte). A quem se sente artista, que comece agora pelo lápis e desenhe. Que se esqueçam as filosofias e que se revele a verdade do traço. Para que o lixo tenha fim e a palavra do Mestre não tenha sido em vão.
Obrigada, Figueiredo Sobral.

5 comentários:

  1. Olá

    Adorei esta homenagem ao mestre! Não o conheci, nem conheço a sua obra mas depois do que li, não me restam dúvidas que o seu trabalho foi/é como à sua imagem admirável.

    "O Mestre ensinou a simplicidade, a humildade, a honestidade, a sensibilidade"

    Veio-me à imagem o pintor Luís Alberto meu mestre...

    José M. Silva

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  2. Este país devia ser rebaptizado. Proponho o nome de Lagutrop. Lagutrop é Portugal ao contrário. Lagutrop é tudo aquilo que não queremos no país que aprendemos a admirar e a amar. Em Lagutrop ou são indiferentes para os seus melhores ou, se se tornam incómodos, perseguem-nos. Em Lagutrop importa não destoar da média, ser analfabeto se possível, que logo o estado arranjará forma de nos dar um diploma do 12º ano. Em Lagutrop convém não ter um curso superior e saber o que se faz ou o estado arranjará forma de inundar o mercado com tantos licenciados que retirará, aos verdadeiros, qualquer hipótese de darem fruto. Em Lagutrop, é melhor não ter talento pois não existe punição contra a inveja.

    Agradeço o teu texto, Cynthia.

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  3. Se não estou em erro, algures em Lisboa, há anos, vi o rosto deste homem-artista. Não falei com ele, não conheço nenhuma obra sua, mas impressionou-me o seu olhar de bondade. Agora reconheci-o pela foto.

    Eduardo Aroso

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  4. Era um homem especial, passando quase despercebido a não ser talvez, como bem reparou, pelo olhar. Aprende-se um mundo diferente com as suas obras, tão longe deste ruído de hoje. Ver para crer num universo tão próximo e tão longínquo.


    Cynthia

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