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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O CAMINHO DO CAMINHO, 19

Esquemas


Cynthia Guimarães Taveira

Já vi escrito (e dito) por um nome conceituado do nosso esoterismo que o misticismo é fonte de engano, não por estas palavras mas sim com um ligeiro desprezo no tom (um desprezo quase inaudível, só possível de nos apercebermos dele em máxima atenção) como se o caminho alquímico fosse o mais seguro (o que não é verdade porque nesse caminho o perigo aumenta exponencialmente). Ora convém lembrar os três caminhos apontados pela lucidez de Fernando Pessoa: o caminho poético, místico e alquímico. Cada um deles se dirige ao mesmo (no caso da alquimia não podemos ser suficientemente ingénuos e pensar que os alquimistas apenas procuram o elixir da longa vida de maneira a arrastarem a sua existência por este planeta por mais anos, o que procuram é o corpo de glória, um corpo transcendente, tal qual o corpo de Cristo após a transfiguração e isto implica, naturalmente, transcendência). Procuram os três caminhos, portanto, a transcendência e, cada um deles, sem excepções, possui os seus perigos. Cada um deles, acrescentaria, nas suas voltas e reviravoltas toca os outros, exactamente como aquilo que se passa com a arte. A pintura está carregada de musicalidade e de palavras, a literatura carregada de imagens e de musicalidade e a música carregada está de palavras e imagens. As artes contém-se umas às outras assim como os caminhos não são exclusivos mas sim inclusivos. O problema é a grande tentação de esquematizar as coisas pelo contágio, é certo, de uma mentalidade simplória cientifica no sentido actual do termo, disfarçada de um pragmatismo teórico. Duvidemos sempre dos “esquemas”, duvidemos sempre de uma literatura esotérica que se apresenta acompanhada com um desenho esquemático, organizado, geométrico, aprisionando na forma a substancia. A geometria, na sua essência, não aprisiona a substancia, nasce da substancia, o que é diferente. É apenas uma parte de um todo, não é o todo. Existe sempre a tentação de a ver como síntese, esquecendo que o mundo das formas de Platão não era apenas geométrico. A luz não é geométrica e, porém ilumina tudo, assim como o rio bravo não deixa de correr. As formas sucederem-se, a substância vai sendo. Daí a tradução errada da bíblia que diz, nas palavras de Deus: “Eu sou o que Sou”, quando a a verdadeira tradução é: “Eu serei o que Serei”. Do presente para o futuro vai uma grande distancia tal como do pragmatismo teórico à realidade existe uma diferença qualitativa. Esquecer a poesia, em qualquer caminho, é esquecer essa diferença fundamental.

2 comentários:

  1. Subscrevo o seu artigo, diria quase linha a linha. Apenas, na parte final, quando se refere ao sentido de « “Eu sou o que Sou”, quando a verdadeira tradução é: “Eu serei o que Serei”», tenho para mim uma visão diferente – que agora não vem ao caso – pois a noção de presente e futuro pode ser vista de vários modos, não podendo, como é óbvio, fugir-se à realidade física no que toca a essas dimensões temporais.
    A dado passo, diz a Cynthia «Procuram os três caminhos, portanto, a transcendência e, cada um deles, sem excepções, possui os seus perigos». Esta afirmação contém uma grande verdade. Não há caminho que não tenha o seu perigo; não há luz que não atrai a respectiva sombra. Sempre pensei que aquilo que Pessoa estaria (também) a colocar é o problema do EQUILÍBRIO. Embora cada caminho tenha uma natureza básica diferente (podemos aqui falar em raios vibratórios distintos), e todos eles conduzam ao mesmo e Mor Ideal – desde que quem caminha o faça sempre com a melhor intenção e empenho - , é certo que, por exemplo, o místico pode sofrer enganos se não usar minimamente alguma razão ou o que quer que seja disso, e vice-versa. A Cynthia diz, e bem, em analogia, que «As artes contém-se umas às outras assim como os caminhos não são exclusivos mas sim inclusivos».
    Daí que, por exemplo, os rosacruzes simbolizem a via por uma lâmpada (conhecimento, razão) e por um coração flamejante (fé, devoção). Por isso ( como quem caminha melhor com os dois pés), a facilidade do místico deve buscar o seu outro lado da natureza humana contida na razão, e vice-versa.

    Eduardo Aroso

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  2. Obrigada, Eduardo, pelas suas palavras. Quando digo que essas palavras da Biblía estão mal traduzidas refiro-me mesmo ao hebraico. "Eu serei o que Serei" não exclui o presente, o que muda é a perspectiva do Deus em nós. Mais uma vez, nos remetemos para a nossa imperfeição e para a possibilidade de redenção.
    Quanto ao equilíbrio, temos o caso flagrante de Dalila P. da Costa. Na sua obra riquíssima, frequentemente, aponta para essa necessidade de equilibrío entre o encanto místico e o encanto racional.
    Quanto aos caminhos que se alinham, faço a pergunta para alguns seguidores da personagem: existiria um Louis Claude de Saint-Martin sem um Jacob Böhme (profundamente místico)?
    Quanto aos rosa-cruzes, para não haver confusões, gostaria de lhe dizer que não pertenço a nenhuma sociedade secreta, embora possa, interiormente, partilhar os mesmos símbolos. Como Fernando Pessoa disse: "os símbolos possuem vida", nós é que temos de encontrar a sua vida contida neles. Os poetas às vezes fazem isso muito melhor do que aqueles que estão dentros das ordens discretas, secretas e por aí fora. Pertenço apenas a uma Associação normalíssima cujo valor máximo é dado ao "Espírito Santo" e às suas relações com a portugalidade. Nada a que poetas e filósofos não tenham dado valor ao longo da História de Portugal.

    Cumprimentos e agradecimentos da
    Cynthia

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