A Quinta Amarela
"Uma frondosa magnólia, ao lado de algumas salas de aula, quase se metia pelas janelas dentro. Era uma silenciosa ouvinte das lições de lógica, de filosofia grega, de história das religiões, de psicologia experimental que o hierático Newton de Macedo, ou o erudito Teixeira Rego, ou o eloquente Leonardo Coimbra (três homens mortos na pujança do talento, ao dobrar dos cinquenta) nos ofereciam, alternadamente, a certas horas. Tal era a estranha e tão discutida Quinta Amarela, sossegada moradia suburbana, rodeada de muros e arvoredo, ocupada, até 1910, por uma dúzia de freiras de não sei que Ordem e que uma década depois, mercê de um acto de certa audácia de um político-filósofo, se converteria em provisória sede da tão promissora Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ali se conversava e estudava num ambiente por assim dizer de família, isento de doutorismo. Os professores eram todos novos e improvisados. Alguns, como o pesado e inolvidável autor da Nova Teoria do Sacrifício – autêntico sósia espiritual e somático de Sampaio Bruno –, eram genuinamente autodidactas que o «catalizador» da Faculdade havia ido buscar aos seus obscuros cacifos de trabalho, sem quaisquer respeitos humanos, persuadido como estava, e com profundo acerto, que um bom professor «nem sempre» precisa de passar pelas forcas caudinas da Sala dos Actos Privados ou da Sala dos Capelos.
fotografia colhida em Do Tempo e da Luz
Outros eram humildes professores do liceu de província. Tal era o caso de Hernâni Cidade, então simples professor do ensino secundário em Leiria. Outros ainda – como Damião Peres, Ângelo Ribeiro, Newton de Macedo –, levara-os Leonardo consigo da rumorosa sala dos professores do liceu de Gil Vicente, apesar dos protestos dos guardiões das chaves da Sala dos Doutoramentos e até dos ressentidos assobios de muitos espíritos liberais que barafustavam contra a «falta de concurso» na improvisada escola de Humanidades do Porto. À distância de meio século se vê hoje claramente quem tinha razão. Aqueles que sustentam que o nosso país é tão pobre de ascetas de especialização humanística ou filosófica que dificilmente se pode constituir uma escola superior («uma única», sublinham) de Humanidades e Filosofia, ignoram, ou fingem ignorar, que o exemplo mais interessante, entre nós, de uma experiência de ensino (para não dizer antes: de convívio) especulativo superior, é justamente essa estranha aposta de improvisação docente que Leonardo Coimbra, com singular desassombro, jogou, em 1919, numa fugitiva passagem pelas cadeiras do Governo ao catalisar essa atmosfera de estudo, tão discreta e levitante, no velho e pesado burgo do Porto. Aparentemente, a escola era frustre. A sua própria instalação suburbana, numa moradia de arquitectura simplória, parecia dar-lhe um certo ar de envergonhada. As carteiras eram mesquinhas, as salas exíguas, as cátedras quase ridículas. Por isso nas outras Faculdades se dizia com ar displicente: – «É a Faculdade das Tretas.» «É a capelinha de Leonardo.» Claro está, na discutida Escola, nem tudo era Espírito puro, nem puro amor do saber, nem simpatia sem sombras. Havia também o seu quinhão de boémia e de diabolismo, para não dizer de banalidade e de rudeza; mas, o lado pior nunca serve para definir. Cada coisa (como dizia o velho Estagirita) conhece-se profundamente pela sua «enteléquia» e não pelos seus defeitos. Na «aposta demiúrgica» de que resultou a «primeira» Faculdade de Letras do Porto, o que interessa ter presente é a sua «enteléquia» e não as suas mazelas.
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Na verdade, o que houve de mais relevante naquela estranha experiência do ensino foi o indefinido encanto da pedagogia discreta de certos professores, a par do indefinido prazer de os ouvir na inesquecível atmosfera da boa vizinhança de um maciço de arvoredo habituado ao silêncio e à intimidade.
Se não fora a passagem, de vez em quando, dos carros eléctricos na rua contígua, em regra sossegada, o apito estrídulo, em mi menor, dos comboiozinhos da Póvoa que chegavam ou partiam da Boavista, ali ao pé, teríamos ali vivido verídicas «horas intemporais».
Dir-se-ia que a experiência de Platão (ou a do filósofo do Jardim e da Amizade) se tornara a repetir por virtude de um certo verbo de bom timbre e de uma dada respiração vegetal de sabor mediterrânico.
A grande distância, no tempo e no espaço, das libérrimas escolas gregas, voltava-se a ensinar e a aprender filosofia, livremente, na propícia proximidade de algumas árvores.
A majestosa magnólia, de carnuda folhagem e belas flores brancas de marfim, era a rainha. Ao seu lado havia velhas japoneiras que, pela Páscoa, se cobriam de camélias rubras e brancas; tufos de mirto e loureiro; maciços de alecrim; caneleiras de flores rubicundas e essência adocicada; festões e glicínias; dois ou três velhos castanheiros ao fundo, no extremo da antiga cerca e, pelo meio, conduzindo a diversos recantos, pacatas veredas flanqueadas de buxo que, a cada passo, eram estremunhadas por vivas discussões metafísicas (pois, na juventude, toda a discussão tem sabor metafísico) e, uma vez ou outra, por discretos idílios que, com o tempo, se converteriam em meia dúzia de casamentos felizes e dois ou três dramas camilianos (como foi a morte enigmática e nocturna do mais brilhante aluno do primeiro curso da Faculdade (1) ou a morte wertheriana de outro nosso condiscípulo, em pleno dia e em plena via pública).
Sant’Anna Dionísio
(texto integral de “A Quinta Amarela”, capítulo XXXIX de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 259 e ss.)