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domingo, 3 de abril de 2011

LANCES E RELANCES, 2


    (na foto António Salvado)

O VERO SUBJECTIVO NA PALAVRA IMANENTE DE ANTÓNIO SALVADO

«O cântico floriu na bacidez
de certas urzes mortas.

Fenderam-se percursos e por vezes
pedras moveram o rigor ileso
do seu interior, da sua forma».
(…)

(Os Distantes Acenos)

Um poeta não cabe na terra onde nasceu nem nos locais por onde passa. Todavia, do útero do primeiro chão que ele conhece há um sinal que pode ser entendido como oblação de Prometeu, concedida a quem, roubando o fogo aos deuses, surge no mundo para desvendar os ousados caminhos do espírito. No universo da poesia, recebe ele as coordenadas próprias da alma do locus, para, depois, nesse modo, ligar outras vidas e paisagens: de um paraíso dócil mas estático, ao paraíso em eterno devir na dinâmica descoberta do sempre-existir.

«Move-me a luz que vem daquela flor,
tão exilada luz…
Chega-me esguia a revolver no peito
as mil penumbras
os mil anseios
as mil verdades…»

(Tropos)

Quem, pela primeira vez, lê um poema de António Salvado, recebe a mensagem de alguém que tem algo de singular para dizer ao mundo. A sua palavra pode requerer uma vida inteira, desdobrada em cenas de tonalidades diversas, de dias aparentemente contraditórios (às vezes dilacerantes), enfim, de paradoxos inevitáveis, mas que a vera subjectividade do poeta une sempre, ao jeito de Ariadne de confusos mas seguros caminhos de achar. Nos primeiros versos lidos, ficamos logo na certeza de uma poesia que nunca se anula, que nunca se repete, e que, sejam como forem os dias do poeta, nunca se esgotará.

«O que se deve pedir no começo do crepúsculo
é um cântico de luz para a manhã seguinte»
(…)

(A Flor e a Noite)

A poesia de António Salvado é como aquelas árvores antigas que não precisam de estar na praça pública para sabermos que elas existem em determinado local. Os que as não conhecem poderão também ser conduzidos ao sítio onde elas estão. O valor do achado – como em tudo na vida – é directamente proporcional ao acto volitivo de quem delas se abeira, esforço feito da matéria essencial do gesto da busca.

«D. Afonso Henriques
(…)
Seguro em si, nos copos de uma espada,
com ela permitiu o que seria
essa grandeza que nascera em nada
mas que o tudo talhara em haveria.»
(…)

(Jardim do Paço)

Sem ruídos mediáticos, sem as tristes lantejoulas das modas e fora de pueris apadrinhamentos, apenas com o sol da graça e o destino de ter nascido medularmente poeta, sempre foi o desenrolar da obra poética de António Salvado, que começa a vir a lume no ano de 1955 e não mais conhece “períodos de seca ou pousio”, não sendo, por isso, – perdoe-se a expressão – um poeta sazonal. Há nele uma árvore de vida, árvore poética, permanência inalienável na poesia portuguesa.

É claro que a desatenção de muitos leitores contemporâneos se deve a mais que um factor. Alguns desconhecem, outros há que se vão esquecendo, procurando (em nome do progresso acelerado da poesia, como se esta fosse tecnologia!), tantas vezes, onde nada existe para encontrar. Mas o pior de tudo é o que acontece noutro plano, seja por ignorância ou outras razões, já menos aceitáveis que no caso dos leitores. Refiro-me a certas figuras da cultura, investidas de responsabilidades para dar a conhecer a nossa poesia de referência, seja por actos públicos, os mais variados, seja pela organização e divulgação de antologias.

«Despojaram-se os campos:
o granizo mordaz
tudo feriu com sua espada
nua – o sangue aguarda tímido
o recomeço
da sua circulação»

(Ao Fundo da Página)

«A César o que é de César, a Deus o que é de Deus». Não se trata - em nome da legitimidade de qualquer acto poético – de ver ordenar graus qualitativos de poesia, de catalogar pessoas, de arrumar estilos, ou joeirar outros aspectos do fluxo criativo. Impõe-se, isso sim, a observância do que não pode deixar de ser observado. Mas a natureza do homem contemporâneo compraz-se mais na combustão de uma emoção, qualquer que ela seja, à maneira do fumo de qualquer fogo, do que pelo objectivo do prazer da viagem do sentimento, alheia à mecânica dessa combustão. Assim se explica que Goethe tenha dito que se um arco-íris dura mais de quinze minutos, já ninguém olha para ele. Assim se explica que no panorama da literatura portuguesa, com algumas honrosas excepções, se verifiquem estranhas ausências. E o fenómeno é ainda mais preocupante quando assistimos às rápidas e mórbidas mutações que há na lista dos poetas incluídos nos livros escolares, cada vez mais avassaladoras da chamada poesia de circunstância. Não admira, assim, que os nossos jovens, de um modo geral, exibam a cultura que vemos, enquanto uma promissora minoria já rejeita conscientemente muitas omissões.

Não se pense, porém, que a obra de António Salvado seja desconhecida, pois quem logo nos primeiros anos da juventude recebe os melhores encómios de Teixeira de Pascoaes e de João Gaspar Simões, entre outros, de mais “certificados” não necessitaria posteriormente. Porém, o que se passa é da mesma lamentável natureza da que vemos quando, por exemplo, em reportagens televisivas, ouvimos respostas ocas a perguntas sobre quem foi tal rei português, tal cientista, tal filantropo. Cultura desviada do essencial? Apoteose do efémero? Bem sintomático das emolduradas invejas do nosso belo quadro de “brandos costumes” é o facto da maior parte dos prémios e reconhecimentos de António Salvado terem sido atribuídos em países estrangeiros. Como em tantos exemplos, não é fácil um grande poeta ser profeta na sua terra, nem que ela seja um pequeno rectângulo! Camões, já antevendo o enigma, encerra «Os Lusíadas» com a palavra inveja, e parece que nisto não se tem meditado suficientemente.

Fazendo jus ao verso camoneano «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», costumes e hábitos sociais vão-se modificando, e assim tem-se trocado o espírito de tertúlia pelo espírito clubista. Não se confundam. O clima fraterno, de sincero e respeitoso diálogo, de ajuda mútua (onde, tantas vezes, os autores humildemente se corrigiam) tem dado lugar ao atrevido ambiente de vedetismo, cuja figura principal é sempre utilizada por hábeis manobras mediáticas.

«A um Crítico Autor de Versos
Filóxeno de Citera
foi um dia castigado
a mil trabalhos forçados,
porque na sua justeza
se recusara a louvar
os maus versos que fizera
Dionísio de Siracusa, tirano daquela terra.

(Como tal gente perdura
neste mundo em todo o tempo,
embora muito me custe
louvarei teus versos sempre!)»

(A Quinta Raça)

O acto poético de António Salvado dir-se-ia compulsivo, de uma imanência que procura trazer as palavras esquecidas que, só elas, podem criar o verso virgem, enchendo novamente o mundo de inefável força vital, verso limpo de todas as «palavras gastas».

«Mesmo no fundo aterrador do poço,
sem erma claridade
d’uma ligeira luz, acre lugar
que cinja, que lanceie como o fogo,
algo se vê, difuso mas raiado.
(…)

(Os Distantes Acenos)

Na Beira-Baixa – local onde nasceu e vive, depois de várias andanças– está o poeta no ofício da palavra que guarda memórias do tempo passado e vive já as do futuro. Cravado na limitação do chão, ou entre terra e mar, aí tem também a sua propulsão para a certeza de um outro céu que está para além do que vemos de cor azul.

«Desta janela intacta da saudade eu descortino os horizontes
imóveis no seu permanecer de grandezas e despojos vivos.
O azul desdobra-se nessa aurora-madrugada que nunca abandonou
a esperança».
(…)

(Face Atlântica)

Equinócio da Primavera, 2011

Eduardo Aroso

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