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terça-feira, 5 de abril de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 17

Na fotografia, o Estado

Muito censo, pouco senso

Alexandra Pinto Rebelo

Acho que não passaria pela cabeça de ninguém, no seu perfeito juízo, colocar a hipótese do facto de preencher o questionário dos Censos poder constituir um momento hilariante. Responder a tais perguntas é um momento sério. É um dos raros momentos em que nos sentimos parte de um povo, numa cumplicidade temporal. Estamos aqui e agora, sendo isto ou aquilo, fazendo x ou y.

Aquelas folhas, fazem-me lembrar os antigos momentos solenes que uniam uma determinada comunidade, tal como a missa de Domingo. Eu já não sou desse tempo, da missa de Domingo como união da comunidade (sou do tempo de constituir isso uma opção pessoal quase exótica), mas lembro-me de ir às matinées ao cinema Império, ao fim-de-semana à tarde, com as minhas melhores roupas, pela mão da minha família, numa comunhão semelhante. Era no tempo em que o Império tinha lotação para muitas centenas de pessoas, estando muitas vezes esgotado.

Essa ida ao cinema era, sob muitos aspectos, uma espécie de Censos de bairro. Muitas vezes imaginava-me naquele palco, por entre os cortinados de veludo pesado, a olhar para o lado de cá, o lado onde nós estávamos. Imaginava uma grande fotografia onde estávamos quase todos bem, vestidos com as nossas melhores roupas, penteados à força, sorridentes como só sabíamos ser nessa altura.

Preencher os Censos, para mim, é um chegar-me para lá para caber numa grande fotografia. Uma fotografia onde estamos dez milhões, petrificando este momento que irá acabar por passar.
É pena que a máquina do nosso Estado (seja lá o que isso for) não pense assim.

Preenchia eu aqueles papéis, quando leio a pergunta: “Tem dificuldade em ver mesmo usando óculos ou lentes de contacto?”. Confesso que reli a pergunta. Pensei ter trocado as palavras com outras nesse processo complexo que é a leitura (ou o pensamento, se quisermos ir para Freud). Não havia erro. Era mesmo aquilo. Neste momento solene, o Estado pergunta-me se eu vejo bem. Não consegui evitar uma gargalhada enorme. Depois de ter respondido, que sim, que “via bem, felizmente” (tudo isto só com uma cruz, note-se), caio numa nova pergunta, qualquer coisa como: “E ouvir, ouve, bem?”. Nova gargalhada. Ouço bem, sim. Lembrei-me imediatamente do Dr. Estrela, médico da minha avó há uns trinta anos atrás, resolvendo os seus problemas delicados de saúde com perguntas inocentes. O Estado continuava, naquele disparate de delicadeza médica ultrapassada, para com a minha pessoa: “E sobe bem as escadas?”. Depende do cansaço, Dr. Estado. Mas geralmente, não me custa. “Então e a sua memória? Tem dificuldades em memorizar?”. Depende do seu grau de exigência, Dr. Estado. Tenho uma memória muito boa, mas se me pedir para decorar a Ilíada, como faziam na Antiguidade, confesso que sou capaz de ter alguns problemas sérios. “E consegue tomar banho sem ajuda?”. Esta pergunta constituiu o meu momento de viragem em relação a estes Censos. Deixei de ter bom humor e pensei que as coisas já se estavam a tornar muito sérias. Estamos a falar de quê afinal?!

Como dizia no início, considero os Censos uma coisa séria. São os números que iremos deixar para a história enquanto povo. Todos os historiadores gostariam de deitar a mão a censos de tempos idos. Mas quantos teriam interesse em saber quantos egípcios teriam dificuldade em tomar banho sozinhos (seja lá o que isso for) no ano de 2.540 a.C.? Quantos fariam uma tese, com algum interesse, sobre o número de macedónios com problemas de audição no tempo de Alexandre o Grande? Não seria mais interessante saber quantos portugueses tomam banho com alguma frequência (pelo menos uma vez por semana) com ou sem companhia? Não teria uma maior importância, em termos culturais, saber quantos de nós se sentem deprimidos?

Por mais voltas que dê, não consigo compreender o sentido destas perguntas. Talvez tenham a ver com o estado completamente absurdo a que a nossa Ciência chegou. Ciência pela Ciência, não admitindo, erro crasso, que a ciência só pode ser um produto cultural.

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