(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 6 de abril de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 130


As pessoas-ilha

Cynthia Guimarães Taveira

Com as televisões, os aviões, a informática, todo o mundo ficou mais pequeno e concentrado numa espécie de “única notícia”. Essa “única notícia” é uma espécie de comprimido que se toma todos os dias quando se ouvem ou lêem notícias. De alguma maneira, todos, no mundo ocidental, partilhamos a mesma informação diariamente. De alguma maneira todos temos o olhar e o coração moldados por essa pílula manipulada nos laboratórios do poder.

Nos tempos feudais as famílias procuravam apenas o difícil sustento. O senhor ficava no castelo guardado por exércitos. O poder existia mas era apenas um poder material. O poder mental era mais ou menos controlado pela Igreja, que persuadia os fiéis pelo medo do Inferno que ficava situado algures, para além da morte. Entre o poder material do senhor e o poder mental da Igreja, sobrava ainda espaço para o individuo. O povo não sabia ler nem escrever, não tinha acesso aos livros, não tinha de lidar com o excesso de informação, mas tinha as suas histórias, as suas raízes, os seus momentos vagos em que exercia a sua liberdade interior sentado à noite, em volta do fogo, depois de um dia de lavoura difícil.

Hoje, já não há assim tantas lavouras tão fisicamente difíceis. A maior parte de nós tem direitos, está enquadrado no código do trabalho, a maior parte de nós somos escravos decentes, higiénicos, alfabetizados. Digo escravos porque partilho da opinião de Agostinho da Silva: o trabalho é sempre uma escravidão. Apenas a criação liberta.

Por outro lado, o individuo e a sua liberdade são apenas uma luz cada vez mais ténue. Essa pílula tomada todos os dias há-de desculpar-nos na hora da morte porque com ela somos mais do que nós e a nossa circunstância. Somos nós e todas as circunstâncias, as nossas e as de todo o mundo, mesmo aquelas que estão para além do nosso raio de acção. Somos todos, na sociedade ocidental, a figura de S. Cristóvão, que não entendia porque é que a criança nos seus ombros pesava tanto. Todos nós carregamos o mundo às costas, logo pela manhã quando ouvimos os noticiários.

Há quem defenda teorias meio orientalistas (digo meio orientalistas porque o que nos chega das filosofias orientais é sempre parcial, é sempre um reflexo de um reflexo, é a ideia sem o contexto cultural e educacional) de expansões interiores de consciência, de forma (e não por forma!) a termos uma consciência global de toda a humanidade e assim, com essa consciência, promovermos o bem comum. Dizem essas teorias que há uma expansão da consciência até ao limite do “todo” que é afinal “nada” para depois ser “todo-nada” ou “nada-todo” num sublime paradoxo zen.

Massas e massas hoje (nunca na história conhecida houve tantos habitantes no planeta), carregam o peso do mundo às costas e as suas circunstâncias são quase infinitas, carregam um “todo” às costas, dando-lhes a sensação de “nada”. Paradoxalmente, e numa consequência quase zen, o raio da acção das pessoas é cada vez mais reduzido, podendo ser deduzida uma lei desta constatação: quanto mais informação, menos acção e menos responsabilidade há na acção, daí o facto de que, no dia da nossa morte, quando nos erguermos perante o juiz, não ser possível um julgamento normal: o peso entre o coração e as acções. As acções estão absolutamente diminuídas face à quantidade de circunstâncias que, de alguma forma, pesaram em vida no individuo.

Lendo experiências pós-morte constatei um facto curioso:
No ocidente, aqueles que morreram por momentos num bloco operatório ou num acidente, encontram-se perante a sua consciência. São eles próprios que se auto-julgam.

No oriente, nas mesmas circunstâncias, são outros, figuras que aparecem para julgar a consciência do morto.

O que se dá é uma inversão do que aparece em vida: no oriente o individuo era (agora já não é tanto) educado de forma a ter uma forte consciência de si, das suas acções, da sua responsabilidade. Há um sentimento forte do individuo enquanto pilar da comunidade. O individuo julga-se a si mesmo sem intermediários. Na hora da sua morte, passa-se o contrário: são os “outros que o vão julgar”.

No ocidente, o “outro” é o grande pilar do julgamento em vida. A comunidade é o grande pilar do individuo. O ocidente está assente no julgamento fora de si: a família, os vizinhos, os tribunais, a religião adoptada conduzem o individuo a uma sensação constante de julgamento das suas acções: o individuo não se julga, é julgado, daí muitas depressões por falta da chamada auto-estima. Na hora da morte, há uma espécie de compensação e, finalmente o individuo está só perante a sua consciência, revendo os seus dias desde o momento do seu nascimento.

Tudo isto é muito movediço, sobretudo hoje, porque o oriente está cada vez mais ocidentalizado e alguns ocidentais tendem a ir buscar a “salvação” ou “iluminação” ao antigo oriente.

Mas estas experiências pós-morte dão que pensar: que tipo de julgamento terá a nossa consciência perante o “abafar” em vida de tantas circunstâncias, a maior parte delas transcendendo tanto o individuo como o próprio “transcendente” religioso? Onde haverá a verdadeira justiça?

Diz a nossa tradição que o céu é dos tolos e das crianças e talvez esteja aí a resposta: perante a diminuição do campo de acção do individuo devido à sobrecarga informativa, seremos afinal julgados como crianças ou como tolos. A iniciação tornou-se interdita na nossa civilização. Bem pior do que a contra-iniciação, de que nos fala René Guénon, é a ausência sequer da noção de iniciação. Sem ela seremos todos crianças e tolos voando num céu sem limites. Mas, e o céu, será o mesmo? Apenas há algumas pessoas-ilha no oceano das massas que poderão, talvez, saber a diferença entre um tolo e um sábio. Nós não sabemos.

Sem comentários:

Enviar um comentário