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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

TEXTOS COMENTADOS, 1

por Cynthia Guimarães Taveira





“(…) Ora só pode entender-se que uma sociedade é verdadeiramente livre ou em potência de liberdade quando os cidadãos atingirem um grau mínimo de autonomia individual, isto é, quando souberem conjugar o seu emprenho pessoal nos interesses superiores da polis com a capacidade de optarem por si próprios, compreendendo a todo o momento o que de fundamental está em jogo e estando aptos a resistir à pressão intelectual que sobres eles é exercida pelo poder ou pelos poderes, através das mil formas de sedução, de propaganda, de manipulação e de «formação», que visam usá-los, por vezes mais do que servi-los.
A liberdade de pensamento é pois a primeira das liberdades e precede-as. Mas a liberdade de pensamento não é um dado natural, é uma difícil conquista, é, digamos, uma iniciação, que parte da descoberta da nossa própria subjectividade e que se desenvolve, escreve Álvaro Ribeiro noutro livro, no trânsito do intelecto passivo para o intelecto activo ou da menoridade intelectual para a maioridade mental. A liberdade do pensamento implica uma iniciação, uma descoberta e também um movimento ineterrupto e de algum modo ascético para o saber.”
António Quadros*

*António Quadros, Memórias das Origens - Saudades do Futuro, Publicações Europa-América, 1992, pág. 302



Iniciação

Sempre que olho para a cerimónia do chá, levando muito tempo, a minha cabeça ocidental questiona-se: mas porque será necessário tanto tempo para beber um chá? Depois lembro-me que aquilo é um ritual. No entanto, ainda acho estranho, porque um ritual são símbolos em movimento e não compreendo os símbolos que para ali estão. Visto de fora, aquilo tem tudo um ar demasiado espartilhado. Elas e eles usam vestimentas, bonitas, mas muito incómodas, com voltas e voltas de tecidos. Os gestos são contidos e precisos e tudo aquilo é em seguida transferido para uma mentalidade em que os sentimentos também não podem ser demonstrados, raramente se vê uma japonesa rir às gargalhadas ou a olhar olhos nos olhos alguém. Por aqui, ando mal habituada à minha liberdade. Por um lado, a maior parte das vezes não sei muito bem o que fazer com a minha liberdade. Parece que, no fundo, vivo numa imensidade de possibilidades que, à custa da quantidade e pouca diversidade interna, acabam por se transformar num enorme deserto. As vias são tantas, até mesmo as religiosas, que se acaba um pouco perdido, como o Gansolino do Tio Patinhas, debaixo da árvore à espera que o fruto caia sem fazer algum gesto. Por outro, um dos maiores prazeres que me podem dar, a mim e a muitas mulheres, estou certa, é poder ter um daqueles dias em que podemos ir onde nos apetece e acabamos à beira mar, semi-nuas, descalças, olhando o mar com os cabelos ao vento e respirando esta abençoada liberdade ilustrada pela linha do horizonte mesmo no limite do mar. Quando me acontece estar assim, perto do mar, penso que nada disso tem preço, e, francamente, não me interessam os rituais, os espartilhos sociais, as contenções. O corpo é leve, os gestos amplos como um bailado de Maurice Béjart. Ninguém é livre, mas pode sentir-se a liberdade no corpo e o pensamento a voar nos confins do universo. Se houve conquista nesta civilização, foi esta sensação de liberdade que a mulher pode gozar quando, até há bem pouco tempo, para a Igreja Católica Apostólica Romana, ela nem alma tinha, e quando, em muitos lugares, ainda hoje, a mulher é ainda considerada um “bem”, como se de gado se tratasse. Antes da máxima “o grau civilizacional mede-se pela forma como os animais são tratados”, vem a máxima: “o grau civilizacional mede-se pela forma como as mulheres são tratadas, e, mais do que isso, pela forma de como elas se tratam a si próprias ou se deixam tratar, e quais os valores que transmitem às gerações futuras”.
Não sendo então fundamentalista de rituais, de regras sociais, de ordem em demasia, de um tradicionalismo de Guénon que me soa sempre perfeito no papel (mas que em termos de sentimentos e de felicidade me soa a pouco -- por muito que se neguem os sentimentos, apelidando-os de sentimentalismo, o ser humano é, em grande parte emocional), parece-me que hoje em dia vivo na total desordem. Olho para o meu país e só vejo confusão. Antigamente, a ameaça vinha de fora com lanças, arcos e flechas, cavalos negros ameaçadores, saques, ataques, pilhagens, fogos postos nas aldeias. Devia ser difícil viver assim, nunca sabendo se no dia a seguir uma súbita invasão paralisaria o ritmo cíclico das pessoas. Hoje, dizem que a crise vem lá de fora e que por aqui se espraia como uma onde que bate violentamente contra as rochas. No entanto, por muito que a crise venha de fora, olho para o meu país (francamente às vezes não me apetece pensar no mundo inteiro por ser de mais) e vejo gente adormecida, confusa, estupidificada pelos ecrãs de televisão, com falta de iniciativa, falta de graça, isolando-se numa tristeza que parece ser um poço sem fim. Mais do que adormecida em termos iniciáticos, efectivamente com sono. Bocejando nos transportes públicos, dormitando nos bancos de jardim, abstraindo-se nas reuniões com o olhar pousado num ponto invisível qualquer. Gente sobretudo cansada, poluída com gases e fumos e alimentos adubados e medicamentos em excesso, e cancros festivos aparecendo de surpresa nos mais inocentes, nos que mais fazem falta. Um povo de coxos e marrecos, mal podendo andar e com o peso do mundo às costas, mas sem a força de S. Cristóvão para atravessar as águas.
Dou por mim com saudades dos anos 80 e 90, ouço músicas dessa altura e, numa nostalgia que me chateia, sou transportada para outro sítio, vejo filmes históricos e sinto-me bem na Idade Média, no tempo dos gregos, dos piratas, em Versalhes junto ao rei sol. A minha mãe, que é a pessoa que conheço com mais prazer em viver, disse-me que gosta de ter a idade que tem porque ao menos assim lhe foi dado viver outros tempos, outras gerações, mais leves, mais despreocupadas, menos pesadas e, sobretudo mais apaixonadas. Andamos todos à beira do abismo e já não sabemos viver. Não sabemos tirar o prazer que vive dentro da vida. Enrodilhámo-nos em créditos e leis e daqui não sabemos sair, numa tristeza que se cola a tudo, às roupas, às expressões, aos gestos, aos pensamentos, às gentes que parecem as hordas de fantasmas seguindo em filas grossas numa visão de Pascoaes.
Não sendo fundamentalista, como dizia, a confusão e o cansaço reinam e os céus parecem estar tão longe.
Em primeiro lugar, perdeu-se o sentido da iniciação. Confunde-se religião com iniciação, quando a primeira não pode viver sem a segunda e a segunda pode viver sem a primeira. E o que é a iniciação? É algo que vai sendo, é um caminhar, uma abertura que se vai fazendo ao espírito que vem de uma outra dimensão (mesmo que esteja dentro de nós, pois nós também temos uma outra dimensão). É o saber aceitar o Totalmente Outro de que nos fala Rudolf Otto no seu livro sobre o sagrado. Daí o valor das histórias. Sempre que conto histórias aos mais pequeninos, os seus olhos atentos e vivos espelham a própria história e vejo-os nitidamente entrar numa outra dimensão, num outro espaço, num outro tempo. As histórias são uma espécie de treino para o Totalmente Outro. Só saindo de nós nos encontramos. Parece uma verdade de La Palice mas, infelizmente tem de ser relembrada. Substituiu-se a seriedade da vida por um parque inconsequente de diversões. E em vez de iniciação temos uma confusão religiosa que nunca mais acaba. Pertencer a uma religião é quase como pertencer a um clube. E o meu é melhor que o teu! Quando, bem vistas as coisas, somos seres únicos, individualizados desde o berço e só através de um caminho que, na sua essência, é único, buscando o indizível e o invisível, nos podemos alterar, melhorar, sublimar. Quando o colectivo serve apenas para camuflar o individuo, escondendo-o debaixo das suas saias, algo vai mal ou vai acabar muito mal.
Perdemos também o sentido do símbolo. O primeiro grande símbolo é a própria natureza, que tomamos como coisa nossa, quando não fomos nós que a criámos. É de outrem, sim, é do além. A seguir às histórias tradicionais (que estão cheias de símbolos e se movem num enredo tendente ao cruzamento de universos e dimensões), há que nos concentrarmos nos símbolos e, por eles, atravessando-os, perceber que estão para além de nós e que, ao captá-los encontramos do outro lado o totalmente outro, exactamente aquilo que nos transcende. Amar os símbolos é amar a Deus, ou o céu, ou os deuses, ou o GADU. E digo amar porque, pelo amor, já dizia o Camões, conheceremos.
Percebendo tudo isto, percebe-se definitivamente a virtude do segredo e do mistério. A vida não é mais vista como uma sucessão cíclica das estações, monocórdica, ou como uma sucessão de eventos numa linha monótona, mas é vista como uma verdadeira aventura. Há segredos por revelar, há mistérios para conhecer. E há valores mais altos do que os do euro ou o da prestação da casa. Afinal a vida continua a ser um mistério e pode haver alegria genuína nos segredos desvelados. Só que tudo isto pressupõe transmissão e, aí, entra a Tradição. A Tradição não é mais do que a transmissão de sabedoria. E a sabedoria não é um concurso de televisão com nomes de reis baralhados no tempo para compor em linha recta nem é esta ciência obtusa que nos circunda isolando átomos, analisando em pipetas sangues de vitimas, focalizando a sua atenção no cérebro, procurando a zona dele onde se situa o amor, o ódio, nem tão pouco dados culturais, normas sociais entendidas como absolutas e absolutistas incapazes de qualquer mutação, levando, naturalmente à estagnação, exactamente o contrário do percurso da natureza… A sabedoria é total, é intuir as relações entre todas as coisas, é estar por dentro delas, é saber das ondas acontecendo quando a pedra cai no charco. É encarrilar no caminho, saber ler os sinais e estar com um pé cá e outro no além, onde tudo se passa de outra forma, é estar entre o céu e a terra. Não se pode procurar a sabedoria sem se estar desperto, e ninguém inicia um caminho a dormir em pé -- talvez os sonâmbulos, mas magoam-se, chocam contra as coisas e não percebem nada do que se passa nem o que estão a fazer, tal e qual como as pessoas comuns que dormitam, exaustas, prontas a morrer sem darem pela diferença.
Do que este país necessita é de iniciação. Qualquer regime político necessita de iniciação e, provavelmente, a democracia, é aquele que mais necessita dela e esta só é possível, nos dias que correm, com a tal arqueologia espiritual de que nos fala Dalila Pereira da Costa. O estudo da nossa história (cujos arquétipos são verdadeiramente iniciáticos), dos nossos poetas, das nossas centelhas luminosas ocorrendo em determinados pontos do nosso percurso, é já o encontro com elementos tradicionais, ou seja, pequenas transmissões de sabedoria pelos exemplos que dão, pela verdade que encobrem. Se há falta de sábios, temos os nossos antepassados ainda capazes de residirem na memória. Com o despertar para a iniciação, ou seja, para os mistérios, nossos e do universo, nossos e do Totalmente Outro, o resto vem por acréscimo. Coisas como a alegria, o ser-se genuíno, o ser-se amigo e solidário. Coisas como o amor, que afinal, como dizia a minha avó, faz girar o mundo.

1 comentário:

  1. É no doloroso e maravilhoso problema da liberdade que encontramos a compreensão (possível) de Deus, entendimento que é muito mais real em nós pela Sua Imanência do que pela Transcendência, o mesmo é dizer que a Criação mostra o seu pleno sentido na liberdade que também só se concebe na mais alta expressão do amor.
    No mundo ocidental existe uma complexidade que o Oriente não possui. Repare-se neste facto importantíssimo: nessa complexidade está toda a possibilidade. Mas é preciso ter presente a aparência e mesmo o erro dos actuais conceitos de oriental e ocidental, muito difundidos nos livros que proliferam nos mercados e mesmo em outros mais antigos. Muito do que hoje se chama hoje oriente é o passado do actual ocidente (vejamos o primeiro poema de Mensagem «Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado») e aquilo que resta do passado está a ocidentalizar-se freneticamente, por isso mal, pois não passou correcta e lentamente pelo processo do tempo. Os resultados disto só o futuro, não muito distante já, tornará claros. Guénon cavou muito fundo mas não viu certas flores, mesmo a seu lado, tão bonitas à superfície. Não viu o Amor. E por isso, apesar de muito ter escrito sobre a tradição cristã, não viu o essencial. Bem melhor viram o problema Rudolf Steiner ou Max Heindel, para falar apenas em dois exemplos, e dentro de um contexto esotérico mais amplo.

    Interessante esta acção de comentar textos, e este, de António Quadros, vem muito a propósito.

    Eduardo Aroso


    Eduardo Aroso

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