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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 106




EM DIA DE FINADOS
OU MAIS PERTO DOS HERÓIS

Eduardo Aroso

«A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto»
Fernando Pessoa

O que cheira mal em Portugal não são os mortos, mesmo os que não têm sepultura condigna – pois são sempre flores de esperança de uma vida mais ampla para o espírito e de grata memória para nós – mas certos vivos que operam actos nauseabundos por onde passam. Os «cadáveres adiados que procriam» têm gerado aquilo a que eu já me referi algumas vezes como sendo «esquizofrenia nacional», isto é, classes profissionais contra outras classes, alunos contra professores, doentes contra médicos, vizinhos contra vizinhos, irmãos contra irmãos, filhos contra pais, o que, diga-se de passagem, está bem patente na simbologia da Torre de Babel. E muitas destas caoticidades na legalidade de decretos que, na força de lei, obrigam a uma anti-natureza do intrínseco funcionamento das várias actividades. A depressão nacional alimenta-se à noite do “anti-depressivo”, que, invariavelmente, nos é dado nas televisões, exactamente à hora do jantar. Uma combinação de mentiras e verdades, laboratorialmente preparada. Ao outro dia há mais! E o “produto” dado a horas certas tem uma eficácia maior!

Nestes dias de tão pungentes recordações, estamos mais perto dos nossos heróis, sobretudo quando recordamos seres que semearam o belo, o bom e o verdadeiro. É doloroso dizer herói ou heroísmo, numa época em que o termo não corresponde ao espírito da palavra. Eugénio de Andrade disse que «as palavras estão gastas». Porém, o que parece é que, como causa disso, são as ideologias que se gastaram e definharam. Basta ver que em nenhum lado do mundo hoje em dia se governa por ideologias ou princípios políticos, e muito menos por ética, mas pelo poder diabólico do dinheiro.
Dos heróis gregos, dos cavaleiros da Távola Redonda, passando também pelo que se poderia chamar os heróis da ciência e da arte da Renascença, e ainda os heróis da Natureza da época romântica, chegámos aos heróis das empresas ditas desportivas nos estádios e agora aos novíssimos heróis da televisão e aos muitos das várias modas, havendo a destacar aquela noite em que os portugueses ficam a pé até mais tarde para verem os «heróis de Hollywood».

Mas é neste caldeirão de cinzas sociais – recorde-se a cinza na simbologia do Dia de Finados – que estamos mais perto dos mortos seja qual for o alcance da expressão. Quer no plano familiar e mais íntimo, seja no que diz respeito aos heróis nacionais, que viveram vidas dignas, abnegadas, convictas, ao serviço dos outros, do país, da nação e da pátria. Mas por uma espécie de remorso presente de quem os não têm honrado, como deve, por esta e outras razões é que agora, entre muita gente, se criou o hábito de preencher a data com uma ida até à praia, se o tempo permite, ou com festas designadas ultimamente por eventos. Os políticos marcam sempre encontros importantes para esses dias; há quem se refugie nos piqueniques, para não falar destes assuntos, havendo sempre (Nobre Povo) quem deixe falar a alma; e nesta íntima e devocional atitude de religare talvez vislumbre mais de perto o mistério da vida e da morte, que é apenas um. É bom ter presente o que é dito no ambiente do pensamento português, ou seja, «que a vida não tem contrário». Logo, a morte é a vida, certamente de outro modo.
Nem no Dia de Portugal, a 10 de Junho, nem no Dia de Fiéis Defuntos, se fala dos heróis nacionais. O que diria Carl Jung a tudo isto, ao nosso actual inconsciente colectivo cheio de remorsos; uns porque não sabem dos heróis, outros porque mandaram apagar, nos manuais escolares e programas televisivos, os seus nomes e obras realizadas.
Neste fim-de-semana não leio o jornal, nem vou a eventos. Prefiro o Húmus de Raúl Brandão. Pode ser aqui. «Trago comigo um pó capaz de doirar a própria eternidade. Não sei donde me vem, nem por que nome lhe hei-de chamar. Todas as noites sufoco diante do negrume - ele reanima-me» (...)

Quase Novembro de 2010
Eduardo Aroso

3 comentários:

  1. Eduardo,

    Pensar dá medo a toda a gente; a compreensão de que o pensamento é um infinto-vazio é como a vontade de querer dar um passo em direcção ao Abismo! Por isso o império do não-pensar; por isso a vontade da ficção sobre a realidade, sabendo-a representação - é mais fácil sendo apenas uma unha do Real. Não é novidade.

    Toda a fundação de uma Nação é o povo, que cria rudemente as circunstâncias para o mais sublime pensamento, mas Portugal teve já essa consciência; na caminhada por nós percorrida andámos hirtos como Homens enquanto que tratados como animais.

    Portugal perdeu-se na sua eterna jornada pel'O Herói; no seu eterno e maldito fado de D. Sebastião. Habituou-se a procurar, a olhar à sua volta, cada vez mais por cima do ombro; a cerrar os olhos o mais que pode tentando encontrar aquilo que procura, por cima do ombro. Transformamo-nos então num ser cabisbaixo, sem pescoço, de olhos pequenos, metidos para dentro, enrugados, ombros descaídos...
    Ah, como é feia a vida quem procura eternamente a sua beleza!

    Cabe a Portugal encontrar-se, nele próprio, o Herói malfadado que procura; ter coragem de ser de uma vez por todas aquilo que reclama e aquilo porque chora e a razão da sua ebriedade dos tempos idos e talvez nunca vividos!

    O Povo via-se nele próprio Herói - ao líder cabe-lhe relembrar isso, sendo-o; ao povo cabe escolher o seu líder com essa certeza. Sejamos então, Povo, os Hérois que procuramos! Sejamos como as palavras que ao saírem em vão formulam um pensamento! Sejamos o pensamento que foi formulado pelas nossas palavras idealizadas, que é concretizado enquanto elas se dizem. Basta de procurar, sejamo-lo!

    Se concordarmos, Eduardo, que o patriotismo degenera teremos de concordar que evolui. Se evolui e degenera como qualquer ciclo iniciado, somos obrigados a saber que se extingue? Extingue-se o patriotismo?

    Óh, maldita Hora.


    Até breve,
    Joana Correia

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  2. Estimada Joana,

    «Pensar dá medo a toda a gente» e não só: o não pensar pode ir da preguiça ao socorro e gritar da janela do irracional, com pulmões de não sei quê… Mas, no devir e no ir do ser humano, parece-me inevitável o pensamento. É o pensamento que distingue o Homem de outros seres, mas – repare-se – é por ele também que se encontra o que conhecemos por erro. Não me parece que o pensamento seja, em si, «um infinito-vazio», embora, em certas circunstâncias, ele possa «dar um passo em direcção ao Abismo». Quer um exemplo? Quando o ser pensante utiliza apenas a razão como meio, desconhecendo a sua natureza cordial. Natureza esta potencialmente muito elevada, - podendo raiar já o estado angélico - pois, se assim não fosse, cairia por terra o argumento do sentimento como diferença entre o Homem os restantes animais e mesmo entre as várias classes de homens.
    Sentir intensamente não define cabalmente o melhor do ser humano, pois há os sentimentos torpes e baixos e as nobres, inefáveis e divinas emoções da alma. O problema, sob o meu ponto de vista, coloca-se no equilíbrio do ser, mesmo que, episodicamente, a razão ou o coração comande com alguma preponderância, pois há no interior do ser ALGO (mesmo que seja através do CONFLITO, e isto acontece com frequência nestas situações) que permite intuir que o pensamento que flui numa linha coerente, cujo pensador constrói o seu sistema numa ampla perspectiva antropológica e cosmológica, não pode caminhar para o vazio e livrará o pensador de qualquer medo. Até o verdadeiro amor, como alguém já disse, expulsa qualquer forma de medo.

    É claro que faz parte da vida neste mundo o que a Joana chama «ficção sobre a realidade». Eu não lhe chamaria ficção, prefiro chamar-lhe idealização, porque num sentido filosófico. Mas aqui também há que distinguir a ficção da pura imitação do real, do real sensível e a idealização DAQUILO QUE NÃO EXISTE NO REAL SENSÍVEL. E aqui, como já reparou, pode entrar também algum conceito de utopia. Só o PENSAMENTO, nas suas várias formas, transforma a realidade visível, que é consequência e não causa.


    «Toda a fundação de uma Nação é o povo, que cria rudemente as circunstâncias para o mais sublime pensamento, mas Portugal teve já essa consciência». A questão, a grande questão – que tem atraído tantos espíritos – é saber se Portugal enquanto nação e pátria (seja qual for a dimensão desta última) já cumpriu a sua missão para a qual foi fundado. Sim, falo de uma nação que em toda a sua vida tem resistido a Castela. Porquê? Mesmo já depois da época áurea dos Descobrimentos, das guerras de Sucessão até aos nossos dias, por motivos económicos com Espanha, mas, curiosamente, agora debalde (!) (talvez por enquanto).
    Fernando Pessoa parece que não teve dúvidas e escreveu «Senhor, falta cumprir-se Portugal». Pela minha parte não creio muito, como alguns chegaram a aventar, que esse enigmático cumprimento fosse a descolonização, isto é, Portugal reduzido a si, à sua raiz, desapossado, se quisermos, do mesmo modo que o candidato à iniciação se deve desfazer ou “despir” de muitas coisas. Em abono da verdade, sob certo prisma, podemos ver uma espécie de iniciação de Portugal, pois qualquer iniciação pressupõe, entre outras condições, renúncia, desapego, redução a uma radicalidade essencial, que, de tão radical, pode não se chegar a vislumbrar de início. É possível ver cá de fora, sob o radioso sol, a sementinha que ainda está no seio da terra, embora sabendo nós que será flor, arbusto, ou árvore de grande porte?

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  3. (continuação)

    Não creio que D. Sebastião seja um «maldito fado». É claro que tudo depende da interpretação. Repare que é o mito de Desejado. Ele é o que há-de vir de novo. Veja, por exemplo, no Cristianismo, Cristo há-de voltar. Mas aqui há um pormenor importante. O divino Mestre disse que voltaria. De D. Sebastião não consta que tivesse dito que regressaria. Nós fizemo-lo Desejado na chama chamada Esperança. E desejado porque alguma cosia muita séria correu mal, foi desviada, do mesmo modo que uma pessoa doente tem a saúde por DESEJADA. D. Sebastião é já uma consequência e não uma causa, isto é uma FORÇA mas que se esvai numa conjuntura história. Ele é contemporâneo de Camões que também morre com a pátria, mas deixa o DESEJADO livro «Os Lusíadas». D. Sebastião é mais consequência do que causa. O rei fecha o ciclo (e se fecha também abre, MAS ABRE OCULTAMENTE) em que Portugal, como um todo, depois de ter expulsado os Judeus e de ter requisitado a Inquisição (como agora requisita a entrada do FMI para regular a famigerada economia!) começa a «pensar pequenino», torna-se ser mesquinho, semeia mais invejas do que pinheirais. Portugal, como dizia Agostinho da Silva, não foi feito para fazer mais pneus e parafusos – os outros fazem e já têm mais prática, embora possamos também desempenhar essa tarefa – mas para sonhar alto. E não se pense que se sonhar alto está na vaga utopia. Toda a obra do português tem assento no naturalismo, num pragmatismo de tal modo que nos ficou uma rara habilidade de improvisar e intuir, e nisto não há sentido pejorativo da palavra tem adquirido. Improvisar é criar antes de …, embora sujeito a correcção. Naturalismo e pragmatismo que se reflectem no modo de pegar na “argamassa” das relações humanas de multiculturas e fazer o belo assento do entendimento, da sociabilidade, do convívio intercultural e do cruzamento de sangues, etapa biológica primeira para a verdadeira universalidade. Ser português é de facto ser verdadeiramente universal, porque significa afastar barreiras, não por ter “sangue puro”, mas por já ser uma mescla de árabe (berbere), judeu, cristão, só par citar estas três linhas.

    Vejamos esta sua expressão «…o patriotismo degenera teremos de concordar que evolui. Se evolui e degenera como qualquer ciclo iniciado, somos obrigados a saber que se extingue? Extingue-se o patriotismo?»
    É evidente que o patriotismo pode apagar-se e ou pode exaltar-se, consoante os momentos históricos, e, nalgumas vezes, até sem verdadeira razão, como factos posteriores vêm a comprovar. Mas acontece. Concordo plenamente consigo, se há uma degeneração do patriotismo, ele conhecerá inevitavelmente alguma mudança. Mas mudança quantitativa, sob a forma de uma “onda” logo que a crise passe, ou mudança qualitativa? Aqui poderíamos dizer então que há mutação. Eu entendo que a questão do patriotismo numa abordagem mais próxima – mas não menos verdadeira por isso – se deve centrar nesta ideia: se vivo num país, numa comunidade, tenho por dever natural (e divino) esforçar-me por amar os próximos, contribuir para o melhoramento geral, descobrir e expandir o que de melhor há nessa comunidade, reconhecer os que nos precederam no melhor (honrar os heróis como dizia Pitágoras) e tudo fazer para não sobrecarregar os que virão depois de nós. Nisto tudo com uma atitude de discernir, descobrindo o que temos que outros possam não possuir, e assim contribuir para a DIVERSIDADE DO MUNDO. Há milhares e milhares de plantas, flores, animais. Porque é que o Criador teria feito tanta diversidade? Com os países é a mesma coisa. Eu creio que temos que lutar para que não nos façam todos iguais; os países, as pessoas, os sistemas educativos. Não é pela folha da cerejeira ser diferente da folha do castanheiro que seiva vivificante deixa de passar em ambas.

    Cara amiga, vamos continuando…
    Saudações do
    Eduardo Aroso

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