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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 29

Alegria
Pedro Martins

A belíssima e tremenda evocação da Segunda Guerra Mundial que o António Carlos Carvalho aqui nos deixou ontem, no dia em que se cumpriram sete décadas sobre o começo do morticínio, trouxe-me à lembrança a comemoração de uma outra efeméride, que, fez agora um lustro, me foi dado viver de perto. Também ela se reporta ao terrível conflito bélico, mas a sua significação é bem luminosa.
Calhou estar em Paris em 25 de Agosto de 2004, data em que a cidade celebrou o sexagésimo aniversário da sua libertação, alcançada ao cabo de uma batalha de alguns dias que pôs termo a quatro anos de dominação nazi. Pude, assim, presenciar uma das cerimónias públicas com que os parisienses assinalaram o feito. Ao meu redor, senti gente comovida e um certo fervor patriótico, que me pareceu indissociável do sentimento republicano da nação.
Foi isto ao fim da manhã. Sob um céu plúmbeo, as imediações da câmara municipal do 14.º bairro estavam pejadas de gente. Quando a chuva começou a cair, ninguém arredou pé. Na altura, não averiguei o motivo da escolha do lugar; hoje, alvitro uma razão que, além de plausível, me parece evidente: foi por aquele arrondissement (a que pertence a zona de Montparnasse) que o General Leclerc, herói da libertação de Paris, penetrou na cidade em 1944, ao comando da 2.ª Divisão blindada. Entrou pela Porta de Orléans e, atravessando Alesia, percorreu a avenida a que, depois, o seu nome viria a ser dado.
Nessa tarde, como continuasse a chover, decidi visitar o Louvre. Erro crasso: em tais circunstâncias, não havia turista que ali se não tivesse ido acolher. A Grande Galeria transbordava. A atmosfera tornara-se irrespirável.
Foi então que, de uma das janelas que dão para o Sena, deparei com um desfile motorizado, a cujos preparativos assistira de manhã, junto à mairie, e com o qual se pretendia reconstituir o acontecimento evocado nesse dia. Trajados a rigor, os seus figurantes usavam os adereços convenientes e conduziam viaturas de época.
A distracção operada pelo fait-divers precipitou-me para a saída do colosso saturado. Ainda vi uma parte do cortejo. Fiquei com a impressão de que aquela gente queria sobretudo divertir-se. Seria isso uma indignidade? Decerto que não. De modo nenhum. (Quantos se não divertiram quando o pesadelo da guerra acabou?) Como não podia deixar de ser, o tom das comemorações parisienses era bastante festivo. Para uma das próximas noites, anunciava-se até um grandioso baile popular no Jardim do Luxemburgo…
E, no entanto, algo de indefinido (entre o pífio e o frívolo) me desagradara profundamente naquela reconstituição... Organizara-a Jérôme Savary, uma celebridade do meio artístico francês. Vi-o na manhã de 25, durante a cerimónia realizada no 14ème, onde pontificara. A sua figura imponente, uma voz insinuante, certa suficiência de modos – tudo o destacava sobre o palanque. Naturalmente. Artista laureado e agraciado, actor e encenador de teatro e de ópera, com amplos créditos firmados na opereta e na comédia, nado em Buenos Aires e neto de um norte-americano que chegou a governar Nova Iorque, Savary será talvez o que se pode chamar um animal de palco e um cidadão do mundo. A mim pareceu-me esquivo.
Dois anos depois, regressei a Paris e, no cais de uma estação do metropolitano, encarei com um cartaz que anunciava a representação de A Viúva Alegre, opereta de Franz Léhar, um compositor austríaco de ascendência húngara, que viveu entre 1870 e 1948. A direcção era de Jérôme Savary, que já na década de oitenta havia levado a obra à cena…
A partitura de Léhar tornou-se particularmente famosa por se tratar da opereta favorita de… Adolfo Hitler. O último dos sinfonistas, Dmitry Shostakovich, parodia-lhe um dos trechos mais conhecidos no primeiro andamento da sua Sétima. Compreende-se o porquê: a obra-prima orquestral do russo, cognominada Leninegrado, foi escrita nesta cidade em 1941, durante o cerco alemão, e surgiu como um hino de resistência e de triunfo sobre os invasores teutónicos. (Alguns estudiosos crêem que a brutalidade do regime de Estaline é igualmente visada na peça.)
Por não ser apreciador do género, nunca ouvi a opereta de Léhar. Ainda assim, terei de a reputar extraordinária, se olhar às afinidades que ela tem permitido revelar. Talvez por ter sido escrita em boa hora: a sua estreia foi em Viena, corria o ano de 1905. Nas décadas seguintes, tudo mudaria. Melhor do que ninguém, as viúvas saberiam dizê-lo. Sem alegria.

1 comentário:

  1. Como tudo é relativo, meu caro Pedro!
    Há minutos, na banalidade urbana do "Pão de Açúcar" das Amoreiras, mais precisamente junto ao talho,tive o privilégio de estar a um metro de Tony Carreira, discreto, escondido sob um boné de pala e atrás de amplos óculos escuros.
    É outro tempo, outros heróis, Ronaldos deste país moderno, cheio de atitude e de empreendedorismo...

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