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terça-feira, 8 de setembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 26

António Carlos Carvalho

Domingo em Évora, novamente, desta vez para assinalar os aniversários, no mesmo dia, da Cynthia e do meu filho Diogo. Uma visita, igualmente, de busca de raízes familiares.
Aqui em Évora o meu bisavô paterno viveu os últimos anos e morreu (com apenas 40 anos), na Rua do Espírito Santo; aqui o meu avô paterno viveu a infância e a juventude, costumava ler livros na Biblioteca Pública e em 1909, quando o sismo atingiu também Évora e ele viu as estantes a «avançar» sobre a sua mesa de leitura, saltou pela janela do primeiro andar, caindo sobre um monte de areia das obras em curso...
O meu avô nasceu em Lisboa mas costumava dizer que era de Évora. E a minha tia-avó Ema, condiscípula de Florbela Espanca, viveu igualmente aqui e morreu aqui, ainda muito nova.
Um dos nossos objectivos, nesta visita, era encontrar a tal rua do Espírito Santo, onde o bisavô, um homem do Fundão, veio a morrer em 1903. Busca infrutífera. Nem no turismo local, com a ajuda de livros e de sites da Internet, conseguimos descobrir a tal rua. Deve ter mudado de nome a seguir à implantação da República e hoje ninguém sabe onde ficava exactamente.
Em contrapartida, demos com a antiga Rua da Mesquita, onde, no número 28, viveu Vergílio Ferreira, para mim um dos maiores escritores do nosso século XX (mas que não casou com uma jornalista espanhola bem relacionada), infelizmente hoje esquecido.

Évora: clique na imagem para a ampliar
Aqui, nesses anos de Évora, escreveu «Aparição», romance que me fez descobrir a mim mesmo nos meus 18 anos. Depois, quando o Diogo atingiu a mesma idade, dei-lhe a ler o romance, para que também ele tivesse a sua «Aparição». E repeti a experiência com o filho mais novo, Bernardo.
Agora, neste aniversário, ofereci ao Diogo o quinto tomo de «Espaço do Invisível», em que Vergílio Ferreira incluiu o texto lido na homenagem que a Universidade de Évora lhe prestou em 1994: «Bom-dia, Évora».
«Saúdo a cidade, já decerto eu e ela irreais um para o outro, e é assim problemático que ainda nos reconheçamos. Porque o nosso encontro deu-se há cerca de meio século, convivemos catorze anos e separámo-nos há trinta e cinco. (...) Enfrento-me assim com a rara presença dos que perduram e sobretudo com a magia do que passou. Porque a própria cidade, nas praças e ruas, é outra no que delas permanece. Eram pedras de silêncio, as ruas ermas de que falava Florbela, a lentidão do tempo que as instaurava em eternidade. Era o doce convívio dos amigos, já dispersos ou mortos, no calor bom da província. Eram os horizontes de infinitude das searas ao vento. E a luz, a luz. Como só no campo acontece, nós sentíamos diferenciada a passagem das estações. Mas cada terra em que vivi escolhe-me para a memória uma estação que abre em si a submersa lembrança das outras. Assim Évora se me figura, sempre que me acode à lembrança, na sua voz violenta e nítida de Verão. (...) Mas sobretudo o silêncio, a dormência da cidade no eterno. E como expressão de tudo isso porque tudo isso aí ressoa, a memória dos corais alentejanos que são a música mais bela do meu país. Conheço a reserva, senão mesmo a censura do passadismo ou vencidismo ou desistência, para o prazer da evocação. Mas se o futuro tem a palavra de apelo para a conquista do presente, não há presente nenhum que não tenha a voz do passado para esse futuro existir. Tudo, aliás, passa, excepto o que passou.
«Posto o que, se Évora me é legendária, mesmo na realidade em que posso reconhecê-la, pergunto-me se ela afinal me poderá reconhecer a mim. Porque ela é eterna na sua legenda mas eu envelheci e sem legenda nenhuma. A velhice de um monumento acrescenta-lhe o prestígio nos anos acumulados. Mas a velhice de um homem apenas o diminui na sua degradação. Penso todavia que à memória de outrora nós nos podemos reencontrar e rever na cumplicidade que foi nossa – entre a pessoa que fui e a Évora que me conheceu. »
Vergílio Ferreira escrevia assim, numa língua que hoje raramente se encontra e reconhece. E pensava assim, esse ateu cuja hipótese de fé o seminário apagou, mas que falava constantemente de eternidade e de transcendência, tanto nos romances como nos ensaios que nos deixou, em que a literatura, a arte e a filosofia se cruzam constantemente, numa encruzilhada exaltante. A da exaltação do Homem, apesar de tudo.
Por isso andámos novamente pelas mesmas travessas da Évora antiga que o escritor percorreu e transcreveu para as páginas de «Aparição» e «Estrela Polar».
Imagino como ele se sentiria se tivesse passado agora pela experiência que tivemos quando tentámos visitar a Sé: uma barreira logo à entrada da nave e a obrigatoriedade de pagar bilhete para entrar naquela que é suposto ser a Casa de Deus. Pela minha parte, lamentei não ter um chicote para expulsar estes outros vendilhões do templo (ou será agora museu de uma crença que outrora existiu?)
Mas felizmente a cidade é maior do que isso, mesmo maior do que a triste água estagnada na fonte do Largo da Porta de Moura. E até resiste à passagem dos automóveis que nunca deviam entrar nas muralhas.
Um dia ainda havemos de encontrar o Espírito Santo numa rua, na tal rua.

1 comentário:

  1. A MODA NA ESCRITA

    Quem tem o poder de considerar um escritor, como um grande escritor? Serão os media, os lobbies, as editoras, os leitores, os críticos literários, os argumentos literários e os conteúdos temáticos que entusiasmam e fascinam, consoante a interpretação que se faça de cada um deles? Um escritor impõe-se pelo que escreve ou escreveu ou é-nos imposto por quem não o escreve? Alves Redol e Fernando Namora eram bons ou maus escritores? Será que o neo-realismo só produziu equívocos? Não discuto a qualidade literária de Vergílio Ferreira. Recordar quem se foi não é um erro, mas desconsiderar em nome de, é descriminar literariamente por causas e efeitos secundários. O que aconteceu, muito simplesmente, foi que o escritor não é um escritor da moda. E todos nós sabemos os efeitos que as modas exercem. Uns vivem, outros morrem, literariamente falando.

    Jorge Brasil Mesquita

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