Em matéria de livros novos, como em quase tudo o resto neste mundo de hoje, raramente tenho boas notícias. Geralmente é a sensação do «déjà lu», do já lido, do «já li isto em qualquer lado». Ou então contam-me coisas do mundo editoral que me deixariam os cabelos em pé, se ainda os tivesse... Mas às vezes há uma boa surpresa. Como agora aconteceu: Moacyr Scliar ganhou o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro, e pela terceira vez, com o seu novo romance, «Manual da Paixão Solitária» (edição Companhia das Letras), inspirado pelo episódio bíblico das relações entre Judah, seus filhos e Tamar. Ora uma notícia destas deixa-me contente por três boas razões: -- porque Moacyr Scliar é um excelente contador de histórias, coisa que constitui o primeiro requisito da literatura (todos precisamos que nos contem histórias, até mesmo Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias, segundo uma máxima da tradição judaica); -- porque Moacyr Scliar é um velho senhor com 72 anos e 88 livros publicados, e não um daqueles jovens escritores, muito novos e muito frescos, que julgam ter inventado a literatura, mas que o marketing valoriza, ansioso por novidades; -- porque Moacyr Scliar é um homem grande, de estatura e de coração, um dos poucos escritores que entrevistei e que se me revelaram iguais ao que escreviam.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
ANOTAÇÕES PESSOAIS, 29
Em matéria de livros novos, como em quase tudo o resto neste mundo de hoje, raramente tenho boas notícias. Geralmente é a sensação do «déjà lu», do já lido, do «já li isto em qualquer lado». Ou então contam-me coisas do mundo editoral que me deixariam os cabelos em pé, se ainda os tivesse... Mas às vezes há uma boa surpresa. Como agora aconteceu: Moacyr Scliar ganhou o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro, e pela terceira vez, com o seu novo romance, «Manual da Paixão Solitária» (edição Companhia das Letras), inspirado pelo episódio bíblico das relações entre Judah, seus filhos e Tamar. Ora uma notícia destas deixa-me contente por três boas razões: -- porque Moacyr Scliar é um excelente contador de histórias, coisa que constitui o primeiro requisito da literatura (todos precisamos que nos contem histórias, até mesmo Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias, segundo uma máxima da tradição judaica); -- porque Moacyr Scliar é um velho senhor com 72 anos e 88 livros publicados, e não um daqueles jovens escritores, muito novos e muito frescos, que julgam ter inventado a literatura, mas que o marketing valoriza, ansioso por novidades; -- porque Moacyr Scliar é um homem grande, de estatura e de coração, um dos poucos escritores que entrevistei e que se me revelaram iguais ao que escreviam.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 32

BIBL.: DOMINGUES, Joaquim, Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional. Introdução à Obra de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1997; GALA, Elísio, A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999; GOMES, Pinharanda, «Álvaro Ribeiro: Da Renascença Portuguesa à Filosofia Portuguesa», in Aa. Vv., O Pensamento e a Obra de José Marinho e de Álvaro Ribeiro, vol. II [inteiramente dedicado a Álvaro Ribeiro], Lisboa, IN-CM, 2005.
*entrada sobre Álvaro Ribeiro publicada no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Caminho, 2008.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
AFORISMOS, 4

domingo, 27 de setembro de 2009
O CAMINHO DO CAMINHO, 6

O terror vem antes do terrorismo
Todas as sociedades que promovam ou de alguma forma conduzam ao suicídio ou à loucura são sociedades doentes. Quantos suicidas temos nós? Quantos loucos sem graça passam por nós na rua? Outras patologias mais loucas do que o suicídio ou a loucura parecem cair numa espécie de normalidade assustadora. O encontro com essa realidade aconteceu quando vira o filme americano “Forrest Gump“. Saíra da sala horrorizado como se de um filme de terror se tratasse. “Forrest Gump” é mesmo um filme de terror sobre a verdadeira ameaça que cai neste momento sobre a espécie humana para além das outras traduzidas em danos físicos ao planeta. Curiosamente foi um filme que emocionou milhares. Saiam comovidas as pessoas da sala de cinema, fungando e limpando as lágrimas. O filme relata a história de um pobre diabo que sofre de um atraso e que por via dos sucessivos acasos da sua história de vida se torna presidente de um grande grupo empresarial. O filme acaba com uma pena, leve ao vento, que, tal como Forrest Gump, inocente e para sempre prisioneiro de um estado infantil, voara ao sabor do acaso. A patologia, a deficiência mental era assim exorcizada com a fórmula simples de um sentimentalismo barato e antigo como o mundo: coitadinho, não sabe o que faz, mas até consegue. A plateia era toda Jesus Cristo, no alto da sua cruz, desta vez não pedindo perdão pela maldade dos homens, mas sim abençoando todos os atrasados do mundo, tornando-os ídolos, senão mesmo modelos exemplares de uma beatitude descontrolada, apenas ao sabor do vento, que Deus ajuda, que Deus eleva, que Deus torna empresários de multinacionais. A perversidade tem vários rostos, e neste mundo há que estar atento...
E atentos ainda à questão da memória. Peguemos em dois pólos. O autismo e o Alzheimer. Duas patologias em moda por força da persistência e do número crescente com que se infiltra nas nossas crianças e nos nossos idosos. De um lado, o autismo. Revisitado agora na televisão pela mão de um documentário sobre duas gémeas com sérios problemas. Lembravam-se de todos os dias que viveram, sem excepção. Do que tinham comido ou da meteorologia de um determinado dia. Chamavam-se a si próprias computadores humanos pois sabiam o calendário mundial de cor. Sabiam-no sem saber como. Apenas o sabiam, de forma que as duas gémeas eram uma colecção de factos, ao jeito da história factual nascida com o positivismo. Factos que para nada serviam, catálogos vazios sem os respectivos livros. Por várias vezes, nesse documentário, foram apelidadas de génios por desenvolverem uma memória privilegiada. Com síndromes ou sem síndromes de nomes de médicos, o autismo está a crescer em número e uma das constantes é esta capacidade anormal de memorizar qualquer coisa.
Do outro lado temos o Alzheimer, estado demente da pessoa, no qual esta já nada retém, até poder chegar ao ponto de se esquecer de si própria. Não saber quem é. Por enquanto esta patologia não é tão venerada como as capacidades a que o autismo conduz mas, provavelmente, lá chegaremos, até porque a democracia, tal como nos é dada a viver nos dias de hoje, só pode viver, respirar e alimentar-se à custa da desmemorização sucessiva dos indivíduos. Se assim não fosse não eram necessárias campanhas eleitorais, verdadeiros processos de desmemorização, substituindo uma realidade imediata por outra.
Com estas observações, e enquanto percorria o caminho do caminho, chegara à conclusão de que toda a memória deveria ser doseada. De nada servia tudo esquecer, de nada servia tudo lembrar. Todas as lembranças deviam ser quanto baste, e algumas até transformadas consciente ou inconscientemente de forma a encaixarem numa linguagem simbólica que lhes devolvesse um sentido. Era isso que faziam os escritores, os contadores de histórias e as lendas que percorriam o corpo da História.
Forrest Gump era o protótipo do americano comum. O americano que todos deveriam ser. Um vencedor, sem que interessasse como ou porquê. Ler os livros de Bill Bryson pode ser bastante didáctico se procurarmos assegurarmo-nos do risco que corremos enquanto espécie.
O americano, feliz, quer-se junto à televisão, tal como as duas gémeas autistas em frente ao ecrã assistindo a um concurso-fantochada e fachada de um possível conhecimento, assentando num papel as perguntas e respostas, assentando as vezes que uma campainha ou um gongo tocam, assentando tudo para que de nada sirva a não ser para estatísticas, estatísticas que servem sempre a democracia e nada mais...
Este elogio da normalidade do anormal lembra o filme tristíssimo, esse sim, esclarecedor, onde Peter Sellers no papel de Mr. Chance, vivendo em função de uma televisão, conhecendo o mundo e a vida só em função daquilo que o ecrã lhe dá, acaba memorizado por ele e desmemorizado de si mesmo. O inverso dos homens da Renascença que se queriam plenos, amantes de todas as disciplinas, conhecedores dos jogos simbólicos das histórias, pintores e matemáticos, alargando cada vez mais o espectro das possibilidades de conhecimento, ao contrário de hoje, em que se corre o risco de chamar génio a alguém que é apenas deficiente, só porque sabe fazer contas rapidamente, mas está morto para o mundo, para si próprio e pior, para a face transcendente do homem, feito à imagem e semelhança de Deus. E Deus não é autista nem tem Alzheimer.
No caminho do caminho, não se deve perder o trilho... e estranhamente este conduz-nos para cima, para a nossa transcendência, para onde todas as nossas possibilidades boas são aproveitadas, expandidas, até a um limite que não podemos imaginar.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 5
3 - Vê o leitor que fui descendo e que agora já não escuto ninguém nos altos cumes entre os poetas, antes ensurdeço num mísero vale entre a vozearia meio alterada de uma taberna. Teve que ser porque, apesar dos plebeus que nos desgovernam, ainda acalento velada esperança no povo. Se mesmo assim, for o povo português de cerviz dura e contumaz que nem o seu instinto de sobrevivência escute, quero eu mesmo exilar-me na Ilha dos Amores, acaso os seus anjos guardiães permitam a entrada a tão tosco pedinte. Ou então − ó meu Deus, tudo vendemos! Vi há dias num grande camião, quatro centenárias oliveiras portuguesas a serem levadas para Espanha, as suas raízes no ar e arrancadas da nossa terra − ou então, dizia eu, como a questão de Olivença permanece em aberto, recolho-me subversivamente a essa Terra das Oliveiras, para nela levantar sozinho de novo Portugal. Fica assim Portugal uma ilha dentro de Castela, uma ilha de terra com terra à volta, irreconhecível e por isso inexpugnável. Nela farei um poema conforme souber, em português e com o último sopro que me restar. Morrerei nessa terra que é a Saudade por inteiro, quente e seca, em agonia longe do mar. Nela descansarei para sempre em pura identificação com a Pátria que me deu a língua com que escrevo e nomeio o mundo, a língua com que amo e sofro. Pode, numa sepultura em duplo quadrado similar ao nosso mapa do rectângulo pátrio, ser o epitáfio assim escrito: «Nesta tumba, tombou Portugal». Imagino agora como foi pungente de dor a agonia de Camões em 1580: «Morro, mas morro com a Pátria».
Post-Scriptum: aos portugueses que restam há ainda o consolo da língua portuguesa, que guarda em si um mundo espiritual por inteiro. Há também algumas romarias religiosas, o tesouro esquecido que é a Galiza, a sardinha e a castanha (ambas assadas) e alguns (poucos) poetas e gente que sabe filosofar. Só com estes é profícua, sã e desejável a relação com Castela e, melhor ainda, com as Espanhas.
Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte; 3.ª parte; 4.ª parte
ABDEL HAYY, IPSIS VERBIS

quinta-feira, 24 de setembro de 2009
ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 4
[conclusão do 2.º capítulo]
Se Afonso Henriques fundou Portugal como nação, a pátria portuguesa que precisa do espírito criador de uma língua nasceu com Camões: «Esta é a ditosa pátria minha amada». A espinha de Portugal vive fora de Espanha e foi Camões, ditoso poeta, a sua medula ígnea. Devido a ele, Portugal e a sua irmã Galiza vivem hoje também no Brasil, em África, no Oriente. Só os poetas e filósofos podem entre si falar destas coisas porque passa por eles o espírito criador das pátrias, as quais, tal como os indivíduos, têm um papel inalienável a desempenhar no destino do mundo. A obra de Rosalía de Castro pode conversar naturalmente com a de Cervantes ou a de Calderon de la Barca, sem que a Galiza sofra desmandos intoleráveis por parte de Castela. Ou a do catalão Gaudí, ainda que arquitecto, pois toda a arte deseja exprimir espírito. Se, todavia, deixarmos o comando das coisas no mando ou nas mãos do homo oeconomicus, acabamos sempre todos à estalada ou em desconfianças de agiotas. Agora que falei de novo em economia, tenho que voltar ao vocabulário moderno mais rasteiro e, nestas coisas mais pequenas, ainda aqui deixo uns cordelinhos necessários para cada qual puxar o seu títere:
(continua)
NO CORAÇÃO DA ARTE, 22
Arco-Íris
Pintou um arco-íris e não escorregou por ele. Foi o arco-íris que por ele escorregou. E assim foi com toda a obra. Entraram por ele a dentro as sombras e luzes do amanhã e tornou-se profeta sem que o soubesse ou que alguém soubesse. Entraram por ele ninfas nuas girando na água. Rodopiou com elas e abrasou-se nos seus braços. E veio a cidade inteira, com esquinas de surpresas, labirintos encontrados e rios espreitando ao fundo. Caminhou por ele grave e altiva, encrostando-se nas suas mãos e esvaindo-se em tinta. Estremecia a cada janela que se abriu e espantava-se com as pessoas que por ele passavam. A tela era apenas um espelho do espelho que ele era. E vibrava de luz a cada carícia suave dada pelo pincel.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 3
2 - E os iberistas de lá? Quem são e ao que vêm? Lá como cá, existe a visão mercenária e mercantilista e aquela outra de poetas e filósofos. Esta última sendo larga não nos convém porque, já o dissemos, é sempre mais continental e não contempla o mar como nós. A primeira precisa de um pouco de caricatura, não o nego, para que melhor se destaquem os traços dos seus propósitos. No teatro do mundo também existe a comédia. Nesse iberismo castelhano mais raso e boçal, Portugal é uma espécie de ilha para ser governada por Sancho Pança, e isto sem os sábios conselhos de D.Quixote. Fica dentro dos limites de um qualquer alcaide, faz parte da ideia centrípeta de Isabel a Católica e do catolicismo castelhano que lhe fez a vénia. Está incluso na “Castela Una” de Filipe II, do duque de Olivares, de intelectuais ou políticos como Calvo Sotelo, Gil Robles, Salvador Madariaga, gente de direita e também alguma de esquerda até chegar ao Generalíssimo deles, Francisco Franco, cuja tese como cadete na Academia de Toledo se revela na jactância do título escolhido: «Como se ocupa Portugal em 28 dias» – realmente o mês lunar avisa sempre sobre a transitoriedade das ideias degenerativas! Há depois o iberismo que se quer superior que é o de Pelayo, Pidal, Unamuno ou Ortega y Gasset que, supostamente, admite o resto da Península com direito a ser algo centrífuga. A obra de alguns deles como a de Unamuno, até conversa superiormente com a de alguns nossos, como é o caso de Teixeira de Pascoaes. E a isso que tanto tem de catalisador e de admirável nada temos a opor. Todavia, as coisas nem sempre são o que parecem e lembremos tão só, que Ortega y Gasset, o madrileno e ímpar filósofo da geração de 98 e no que foi seguido pelo reitor de Salamanca, Unamuno, escreveu a Espanha Invertebrada, livro no qual as vértebras necessárias, muito naturalmente, só ganham força tomando Castela para espinha das Espanhas. Pudera! Para Portugal, Galiza, País Basco ou Catalunha o afastamento da coluna vertebral exclui-lhes a possibilidade de chegarem a ser sequer um órgão nobre, o coração, o fígado ou os pulmões. Teríamos sorte se nos calhassem umas vísceras da barriga ou um quase anónimo ossinho do tornozelo. Enfim, coisas do teatro anatómico!...
(continua)
ANOTAÇÕES PESSOAIS, 28
Há dias, vendo um documentário do canal História sobre a acção de Aristides de Sousa Mendes durante a Segunda Guerra Mundial, salvando cerca de 30 mil refugiados contra tudo e contra todos, veio-me à memória o momento em que tomei conhecimento da existência desse Homem Justo.
Foi há 30 anos. A RTP passava uma série que causou escândalo e controvérsia: «Holocausto». Houve países que proibiram a transmissão da série. Por cá, a série passou sem sobressaltos mas a mim levantou-me um problema de consciência – era importante recordar o «outro lado» dessa tragédia: recordar aos portugueses que Portugal foi refúgio e porto de abrigo de muitos milhares de refugiados, ou seja, dos que tentavam precisamente escapar ao tal destino dos campos de extermínio. É um episódio que nos honra, e nos justifica enquanto nação, ser espiritual com destino próprio, mas de que pouco se fala (há meia dúzia de livros que referem o assunto, entre os quais os romances «Deus não dorme», de Suzanne Chantal, «Croisade sans croix», de Arthur Koestler, «Uma noite em Lisboa», de Erich Maria Remarque, e, claro, o texto de Saint-Exupéry, «Carta a um refém»).
Falei então com uma senhora, judia austríaca, que se refugiou em Lisboa e aqui ficou até morrer, e com a Comunidade Israelita de Lisboa, em busca de informações, dados, histórias exemplares.
Foi exactamente durante uma conversa na sinagoga que Joshua Ruah, de quem me tornei amigo e admirador, passou ao repórter uma história incrível: a de Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus nesse mês decisivo de Junho de 1940, quando a cidade de Montaigne triplicou o número dos seus habitantes com a multidão de refugiados de várias nacionalidades (além do próprio Governo francês) que ali procuraram abrigo. E de como Sousa Mendes, recusando obedecer às ordens injustas e desumanas de Salazar, acabou por passar dezenas de milhares de vistos aos que demandavam em Portugal o porto de saída para a liberdade. E também o que lhe aconteceu: demitido, expulso da carreira diplomática, perseguido e ostracizado mesmo pelos que se diziam seus amigos, obrigado a desfazer-se dos seus bens para sobreviver, socorrendo-se dos serviços da mesma Cozinha Económica que oferecia refeições aos refugiados. A partida dos filhos para outros países, a solidão desse homem honrado, que viria a morrer no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, no ano de 1954.
terça-feira, 22 de setembro de 2009
ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 2
[conclusão do 1.º capítulo]
Desde logo foi tão intencional e certeiro D. Afonso Henriques que sempre recusou enviar às Cortes dos vários reinos das Espanhas qualquer dignatário ou mero representante português, nem sequer nelas permitiu o simples hastear do nosso pendão. Ainda que cristã como as outras da Reconquista, a nação foi sempre apontada a uma outra coisa futura, quer chamando-se a si mesma Terra de Santa Maria, quer se abrindo à meditação do Quinto Império. Mas, no final da dinastia Afonsina voltaram em força os do costume: Leonor Teles anda mal com o Andeiro e parte importante do nosso escol bandeia-se com Castela. Os nossos poetas, tanto fazem versos como guerras, e o Mestre de Aviz com Nuno Álvares Pereira, ambos coadjuvados pelas “quadras” populares de Álvaro Pais e de seu enteado João das Regras, escrevem um poema enorme e épico até Aljubarrota. Ainda hoje, o Mosteiro de Alcobaça se aparelha e verseja com as Guerras da Fundação, tal como o Mosteiro da Batalha com as Guerras de Independência, ambos sendo exemplos de pedra viva e virtuosa para a cura de quem se deixou “entuberculisar” pela virose iberista.
Depois de termos voado alto como as águias para vermos num só abraço toda a Terra, o jovem Rei Sebastião deixou-se crivar de setas, tal como o Santo Sebastião atado à coluna – ainda assim uma coluna que liga terra e céu! – e gritou no deserto de Alcácer-Quibir o exemplo do sol atlântico fenecendo, lentamente, no crepúsculo vespertino da nossa Finisterra: «Morrer, mas devagar». Foi então manca e frouxa a “poesia “ de D. António Prior do Crato e, duas máscaras lúgubres do iberismo, – uma de cardeal, o Henrique, outra de rainha, Catarina de Áustria e avó de Sebastião – levaram Portugal de regresso ao grande quintal das traseiras da casa, esquecendo a praia. Afinal, que mais querem os iberistas, se já estivemos 60 anos em dura aplicação experimental das suas teses e tudo deu no que deu? O desfecho culminou com uma criada mais negra que as Áfricas no Palácio dos Almadas ao Rossio a delatar Miguel Vasconcelos, o iberista defenestrado! A História é um teatro cujo texto dramático se escreve depois da representação da peça. Ultrapassada a experiência de Cristóvão de Moura e do conde-duque de Olivares, dois mercenários iberistas, passou Portugal, sempre débil e a coxear, pelo palco do mundo. Depois dos Jerónimos que já profetiza nos claustros o sol fenecendo a ocidente como Sebastião no deserto, desistimos de erguer um quarto mosteiro contemplativo e regenerador como é o de Alcobaça ou o da Batalha, que o de Mafra sendo maior na pedra é menor na alma. Enchemos os bolsos com o ouro do Brasil e tornámo-nos pedintes depois, ora em maus negócios com os ingleses, ora em sujos lençóis com a facção liberal, francesa e napoleónica.
Dom Quixote e Sancho Pança
Veio o século XIX e aí sim o Iberismo até merece que aqui se escreva em letra maior porque, explicavelmente, alguns dos nossos grandes por lá passaram. E tudo na verdade se explica se atendermos a que a doença se entranhara agora na própria monarquia, semente do reino que, entretanto, morria. O vírus havia sido inoculado como vacina contra a fidalguia que, de nobre decaíra em ignóbil, contra o clero muito pouco claro. A Inglaterra roubou-nos um mapa cor-de-rosa e de tão leal aliada enredou-nos, por um Ultimatum, na ilusão de ter como novos amigos os castelhanos, esses velhos inimigos. Temos que admitir como geniais os génios libertados da lamparina do mundo os quais, superiores à melhor ficção, tão genialmente engendram a história dos homens. Mas reparemos nisto que, por ser tão simples, é esquecido: desses alguns dos nossos grandes que passaram pelo iberismo – Latino Coelho, Oliveira Martins, Antero de Quental, Fialho de Almeida, Teófilo Braga, entre outros – nem um só de todos eles por lá permaneceu. O engano é o de sempre: os iberistas de cá não conhecem os iberistas de lá e depois de os conhecerem, recuam, esclarecidos! Alguns ainda foram a convénios ou jantaradas até Badajoz, Salamanca ou Madrid, mas de lá voltaram com o entusiasmo esfriado. É que na Ibéria há uma casa portuguesa com certeza numa falésia frente ao mar, e há também um castelo alcandorado na meseta, muito ao meio, centralista e centrípeto, de ameias guerreiras e olhar de cobiça sobre terras e riquezas. Castela é um castelo com vistas imperiais e o melhor ser que o excedeu foi um cavaleiro de triste figura, fugido ao alcaide. É um grande poeta e chama-se D. Quixote. Castela sempre olhou as Américas como ainda hoje a Espanha mira a Europa. Nunca se esquece que é poderosa nos negócios do mundo e que quer continuar grande como as potências da terra. Pois que seja!Os nossos iberistas do século XIX fazem-me lembrar o que há meses ouvi na TV (7/11/06-RTP1) a uma senhora, nossa euro-deputada dos finais do século XX, Maria Belo: «Nós éramos os únicos que quando lá chegávamos [Parlamento Europeu] deixávamos de ser portugueses. Passávamos logo a ser europeus. Só que éramos os únicos a fazer isso!» Conclusão: somos naturalmente iberos e europeus antes de tempo, porque anunciamos desde sempre o novo tempo. Nós somos realmente a nação nascida no solstício da noite de S. João, o povo desaparecido no deserto de Alcácer-Quibir e percursor do novo regresso de Cristo, esse sol eterno a morrer devagar no mar oceânico, porque só morrendo pode haver a ressurreição no Quinto Império. Nós somos sempre uma outra coisa e não o sabemos. Não podemos ser iberistas porque já somos, nem europeístas porque há muito que já fomos. Nesta terra do fim seremos o fim, e também o princípio de outra coisa de que não sabemos. Mas, para isso, ainda temos que continuar a ser. «Ser e não ser, eis a resposta», que por Hamlet daremos.
Repito para que a memória faça futuro: nenhum dos nossos grandes que passou pelo iberismo dos séculos XIX e XX por lá parou. Basta que lembremos Teófilo Braga que não deu nessa direcção um único passo político, e isso não obstante ter tido oportunidade decisiva para o fazer ou propor, ele que foi Presidente na novel República de 1910. E grandes também houve que bem souberam lidar com o vírus: Gomes Freire de Andrade, Manuel Fernandes Tomás, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, João de Deus, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro, Agostinho da Silva, José Régio, enfim, neles e em tantos outros há um veio de imperecível portugalidade cujas águas desaguam sempre no Atlântico. E isto não impede que possam esses rios portugueses nascer em algo de grandioso nos cumes superiores da Ibéria, a exemplo do Douro, do Tejo e do Guadiana. Mas todos eles correm para cá, não o esqueçamos!
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
AFORISMOS, 3

11 - Não sei se a memória distante é a mais nítida. É, porém, a mais duradoura.
12 - Em Lusofilias, de Paulo Ferreira da Cunha (obra que já tardava), o autor, citando Pedro Moura e Sá, escreve: «... A nossa situação actual no mundo nos permite falar de Europa, porque não contribuímos em nada para a destruir. Por erros tremendos ou em virtude de circunstâncias trágicas, quase todas as nações do nosso continente se viram envolvidas na luta e na destruição. Portugal não tem remorsos perante a Europa, porque nada fez contra ela».
Também o Brasil nunca se incomodou muito com guerras. 13 - A indiferença jamais tocará a costa de qualquer ponto cardeal; nunca apertará a mão ao nosso semelhante, para lavrar futuras rotas do mapa-mundo. A indiferença jamais saberá que a Terra é redonda. 14 - Há fragas no litoral que lembram quilhas de embarcações estáticas. Mas basta que a flor do sonho nasça, no silêncio prenhe de toda a intuição que há na pureza do orvalho nocturno, para haver fome do céu. E nesta ânsia, no que nos cabe de indeterminismo do nosso sagrado instinto civilizacional, a procura é o feixe quântico de todos os rumos do espírito. 15 - Nós pelos outros; nunca nós por apenas nós. Esta é a divisa pela qual poderíamos definir a ideia mais ampla de portugalidade. O que assim não for poderá dar lugar a alguma forma de desintegração, a uma cinzenta formatação de ideias de pseudo internacionalismos, ou até fortalecer alguma subtil forma de absorção pelos nossos vizinhos. Se a verdade a vemos como ilusão, na indecisão entre a face externa e o lado de dentro, poderemos admitir ou não, qualquer dia, um outro 1640. Mas não deverá ser necessário outro Tratado de Tordesilhas, porque, para ir às «Índias do Espírito», parece não haver vizinhos por concorrentes...
ENTRE CÁ E LÁ E OS IBERISTAS DO COSTUME, 1

[texto originalmente publicado em Março de 2007] Há na Península Ibérica dois estados independentes – Portugal e Espanha – e cinco nações ou pátrias, conforme suas línguas: Portugal, Galiza, Castela, País Basco e Catalunha. Os iberistas de ambos os lados, Portugal e Espanha, querem que haja um só lado ou um só estado. Os do lado de lá, os de Espanha, chamam naturalmente a parte menor a integrar-se na maior. Os do lado de cá, acham isso óptimo. Eu não acho! Até porque, continuo a ver como é facílimo a um português de Faro entender-se com um português de Melgaço, enquanto vejo como é dificílimo, senão impossível, que um espanhol de Badajoz perceba o que lhe diz um português de Elvas. Não obstante a União Europeia, continuam para bem da Europa, muito claras e nítidas as linhas de fronteira linguística. Haverá, por longos tempos, o lado de cá e o lado de lá.
1 - Para que pudesse ganhar significado o que aqui me traz a escrever, precisaria eu de ser bem lúcido e inteligente, certamente sábio, sedutor talvez. Mas se eu fosse poeta ainda mais decisivo seria. Já perceberão porquê.
Há perto de seis meses o semanário Sol publicou uma sondagem, na qual, mais de um quarto dos portugueses (27,7%) aceitava que Portugal e Espanha fossem um só estado, enquanto 70% negava tal proposta. Passadas duas semanas o jornal espanhol Tiempo repetia os termos da sondagem, agora no lado de lá, na qual uma maioria simples de 45% de espanhóis aceitava a mesma ideia. Esses espanhóis, muito tolerantes e abertos, nada egocêntricos como sempre nos habituaram, propunham ainda e em três imaginativas surpresas que o novo país assim constituído se chamasse Espanha, que a capital fosse Madrid e o regime de governação a monarquia! Só não sabemos se mantinham o garboso Juan Carlos de Bourbon, ex-exilado nos nossos Estoris, ou se optavam pela inovação dinástica dos Silvas, de Cavaco Silva claro está! Falo do nosso Presidente que ainda o é da nossa República, para recordar que este estalar de foguetório em sondagens, foi mundano aperitivo nos jornais aquando da visita de estado que o nosso casal presidencial realizou nessa altura a Madrid. Aliás, ao casal visitante os anfitriões ofereceram em primeira mão a informação da mais recente gravidez de D.ª Letícia. Coisas de famílias íntimas!
Já vê a benevolência do meu leitor que o assunto aqui trazido exige fundura de tacto e inteligência, só assim se superando em altura as conclusões do rescaldo de tão importantes sondagens telefónicas. Importa desde já que antes sondemos verdadeiramente e até à raiz, as razões dos constantes questionamentos à ideia superior da Pátria Portuguesa, coisa que já dura e que nos lembremos... há quase nove séculos, desde S. Mamede em 1128, nas cercanias alvoraçadas do Castelo de Guimarães. Nessa data, alguns nobres e muitos infanções do Minho e da Maia, o jovem Afonso Henriques e não sabemos ao certo qual clero e se, também, a recém nascida Ordem dos Templários sob a indicação de Bernardo, o Santo de Claraval, já aí algo de radicalmente novo e cristão quisera parir uma novel nação debruçada ao Atlântico, contemplando no Finisterra do Ocidente esse poderoso círculo do sol a morrer devagar no mar oceânico. Já então a viúva do Conde Henrique da Borgonha se aliara e se enleara com Fernão Peres de Trava, formando na altura a primeira dupla de iberistas, dupla que agora vem desembocar naqueles que aderem à integração espanhola na sondagem do semanário Sol. Diga-se que esta iluminação moderna dos iluminados de sempre, já aparecera anos atrás (1986) nos mesmos moldes e números (26%) na sofreguidão iberista do Expresso. O vírus é velho e ataca paulatinamente. Tal virose é incurável e regressa sempre como as gripes e, para a debelar com suficiência, precisaria eu da mordaz matreirice portuguesa de Gil Vicente ou do fogo devastador de Camões, da doçura subtil de Frei Agostinho da Cruz ou das metáforas do Padre António Vieira, da lucidez exacta de Fernando Pessoa ou dos relâmpagos em paradoxos de Teixeira de Pascoaes. Precisaria eu de ser poeta, e dos grandes, que titânica é a manha dos contrários à ideia de Portugal independente. É que, vitalmente e pela poesia tem Portugal justificado e pago aos deuses o milagre de existir, verdade nascida do mito superador que, desde Ourique, poetas e povo verteram em sagração canónica. Portugal é um milagre e a directa confirmação garantida pel’Os Lusíadas quando, no regresso da Índia, foi aberto ao Gama e à alma lusa o livre desembarque na Ilha dos Amores! Compreender isto em seu amplo alcance é potência dada àqueles portugueses que saibam dispor o coração ao acordo com a Pátria em sua vivência espiritual. Só por si, o portuguesinho manhoso, o homo oeconomicus em sua rasa visão, nada vê e até vai petrificando como a Medusa, o olhar de quem dele se aproxima. Fujamos pois para sítio tranquilo e continuemos após a refrega de S. Mamede, auspiciosamente deflagrada pelo solstício de S.João. Até o sol parou, “solsticiamente”, para que Portugal nascesse!
(continua)
domingo, 20 de setembro de 2009
NA SEMANA QUE VEM

sábado, 19 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 7
O CAMINHO DO CAMINHO, 5

Entre véus
Ainda caminhando, ou deslizando, ou voando, não sabemos, neste caminho do caminho, aconteceu um dia o nascimento de um novo sol. Habituara-se à claridade amena que sempre se fazia sentir, mesmo quando no grande caminho, o outro, reinava a mais escura das noites, ou a mais feroz das tempestades. Mais que um despertar, três vezes nesse dia, havia realizado o nascer do sol dentro de si. O primeiro sol, o mesmo de todos os dias, e igual para todos quando as meias-luas dos olhos se abrem após uma noite de sonho. O segundo despertar, aquele mais iniciático e que consiste em estar com todos os sentidos presentes em consciência (treino exaustivo e moroso, trabalho sobre si de paciência sempre em perigo de viver dormindo). Mas nesse dia, um outro sol tinha nascido, sobrepondo-se a todos os outros. Involuntário, surpreendente, espantoso. O véu que cobria os seres havia sido removido, e não sabendo de onde vinha essa percepção aguda conseguia olhar para os familiares (as primeiras pessoas que vira pela manhã) e saber imediatamente o estado em que encontravam. Não era exactamente uma leitura da essência das suas almas, mas sim, o estado em que se encontravam, como uma paragem no tempo de uma viagem sucessiva de estados de alma. Aflitos, angustiados, em harmonia.
Esse sol, mais de vigia do que de vigília, prolongou-se por algumas horas. Lembrava-se que ao descer a rua que era habitual descer a caminho do trabalho, os homens e mulheres pelos quais passava, eram vistos como de facto se encontravam. O seu verdadeiro estado de alma. Vira tristeza, mas também alegria, preocupações e a pressa como um adjectivo de estado de alma. A variedade era igual à das flores. Estranhamente esses estados de alma podiam ser facilmente adjectivados pois havia sempre uma palavra que se sobrepunha a todas as outras quando os via assim passar, esses fantasmas autênticos.
Nesse dia, o dia do terceiro sol, soube do véu que cobria o mundo e que esse véu era o véu do seu próprio olhar. A miopia não era mais do que uma metáfora de uma outra miopia. As metáforas tinham-se transformado numa Escrita Real, paralela à vida... e seria deveras interessante pensar as doenças como metáforas, como por exemplo o autismo crescente presente nas nossas crianças. Sem chegar a um fundamentalismo tradicionalista, no qual obrigatoriamente uma deficiência do corpo corresponde a uma deficiência da alma, mas observando as falhas dos corpos que se pensam feitos à imagem e semelhança de Deus, como se de uma linguagem nova se tratasse. As falhas, nessa Escrita Real, podiam ser aprendizagens a caminho de uma obra perfeita, e quando impossíveis de corrigir no corpo, por incapacidade medicinal, possíveis de corrigir na alma, por capacidade do espírito.
Mas esta parcela estreita do caminho mais tímido do mundo havia suscitado outras reflexões e estas, surpreendentemente, tinham a ver com o sonho. O que esconde e o que revela. Anos sonhando e anos aprendendo que os temores e alegrias nocturnas eram construções simbólicas de episódios vividos e que essas construções simbólicas procuravam resolver, com uma outra lógica, aquilo que desperto não havia compreendido. Os sonhos demonstram bem a nossa sede de compreensão. Nos sonhos os amigos apareciam adjectivados num símbolo. Como o fleumático que surge como um macaco falando correctamente o inglês. Outras lógicas e outros véus. Os sonhos pareciam usar véus disfarçados de máscaras para que o símbolo pudesse falar livremente com a sua lógica intrínseca. E ocorreu-lhe que vivia entre véus: o véu do seu olhar para o real, e o véu do sonho que assim, velado, procurava compreender esse mesmo real. Assim era possível sonhar que se estava desperto e desse modo alcançar o despertar, e no real, já longe da almofada, era possível ver o mundo como um sono profundo, podendo, pela graça do espírito, ver um outro real para além da realidade. A vida é estranha e maravilhosa por isso. Quantos sóis estarão ainda para nascer?
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 6
DA GUARDA A TIRANA...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 5
PENSANDO À BOLINA, 9
Caminhei por vales e montes, mas não cheguei à montanha. Não quiseste que subisse até ti, que olhasse o panorama distante, longe dos homens, que se avista do teu cimo. Não quero saber por que enviaste aquele dilúvio; agradeço-te até por não ter chegado. O que é chegar, afinal, senão a ilusão de julgar que se chegou?, a tristeza de se ter chegado? O peregrino que chega à sua Jerusalém, chora quando chega, chora porque chega, chora porque quer já partir novamente, chora, enfim, porque no íntimo de si sabe que não chegou, sabe que nunca poderá chegar; e de estação em estação, de Jerusalém em Jerusalém, continuará a caminhar. Ele parece amar o destino para que se encaminha, mas não é assim, ama mais ainda o caminho, porque o destino é o mesmo para tantos outros, mas o caminho é só dele.
Tu, montanha alta, serás a minha Ítaca. Serás a mais alta das montanhas, a inatingível. Em cada lugar por onde passe, será sempre o teu cerro que procurarei. Pobres dos que crêem que, por terem subido, chegaram a ti. Não sabem que ninguém pode subir a montanha, que a montanha não se sobe; na ilusão da subida nem reparamos que é ela quem bondosamente desce até nós.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 4
ANOTAÇÕES PESSOAIS, 27
«A maior parte das pessoas são outras pessoas. Os seus pensamentos são as opiniões de outro; as suas vidas são uma imitação; as suas paixões, uma citação...
Só há uma maneira de alguém realizar a sua própria alma, e é desembaraçar-se da cultura.» Esta fina observação de Oscar Wilde, feita obviamente a respeito da sociedade do seu tempo (1854 – 1900), choca-nos pela sua actualidade -- por ser ainda mais verdadeira hoje, passado mais de um século sobre o momento em que foram escritas estas palavras. O requintado irlandês não podia prever que um dia haveria uma verdadeira indústria montada à escala mundial para a transmissão de modelos, em todos os campos da existência humana. Para ele, nas suas lamentações irónicas, a coisa situava-se entre a Imprensa, o teatro, os salões e os clubes. Para nós, a coisa é muito mais complicada, e global, porque, além dos jornais e das revistas, atinge a rádio, a televisão, o cinema, a Internet, a publicidade, as artes (agora chamadas plásticas – talvez porque sejam de plástico) e o que ainda vem por aí. Tudo o que, hoje, muitíssimo mais do que no tempo de Wilde, se chama cultura – e de que ele nos aconselhava a desembaraçarmo-nos rapidamente. No espelho, ou no ecrã, dessa tal cultura nos miramos, nos contemplamos, e, julgando que nos encontramos e reconhecemos, acabamos simplesmente por imitar os últimos modelos do que significa existir «em massa».
Agora tudo é espectáculo (foi a grande vitória de Hollywood) e entretenimento. E todos os lugares são também palco e plateia, simultaneamente. Estamos em exposição permanente, vigiamo-nos mutuamente -- e ai daquele que se desviar dos últimos modelos, do que nos mandam ser (parecer) ou ter ... Há muitos anos que me espanto com a força do precedente – uma vez aberto, nunca mais se fecha. Assim aconteceu também com o totalitarismo: «inventado» no século XX, supostamente derrotado pela força das armas, continuou a impor-se, sob outras formas mas com os mesmos efeitos, como se vê actualmente à nossa volta. Sermos nós próprios, «realizarmos a nossa alma», como escrevia Wilde, implica um verdadeiro combate de resistência contra quase tudo o que dizem definir a nossa época. Precisamos urgentemente de uma filosofia da rebeldia.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 3
NO CORAÇÃO DA ARTE, 21

O Preto e Branco
O preto e o branco sossegam o coração pelo excesso. Com o preto e o branco tudo está excessivamente nos seus devidos lugares. Produzem uma espécie de paralisação no espaço. E procuram dizer que é possível o movimento mesmo no estático. O preto e o branco induzem, deste modo, a certeza da vida para além da morte estática, aparente. Por outro lado, o contraste repõe a verdade no caos das cores. O preto e o branco possuem o excesso de zelo das nossas convenções. Desde modo, de uma forma inconsciente, ridiculariza as convenções. Há sentido de humor no preto e branco. Uma gargalhada da própria essência que está sempre para lá de qualquer dualismo. É por causa dessa apreensão que o coração sossega. Mas depressa se cansa do sossego e procura a cor. Há a cor e há o a preto e branco. E há fases na vida de um artista como se este fosse regido pela lua. Uma lua estranhamente a preto e branco.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 2

AFORISMOS, 2

Obrigado, Leonardo Coimbra.
domingo, 13 de setembro de 2009
A MINHA CARTILHA, 1
A vida efémera participa da existência eterna, como a Criação do Criador. Logo, no efémero, há o eterno, e no humano transluz o divino, e temos Deus em Jesus Cristo. Um Cristo, que eu não admito senhor, nem na terra nem no céu. Eu por exemplo, existo desde sempre, e para sempre existirei; mas apenas vivo, desde o dia 2 de Novembro de 1877. A minha eternidade apenas foi interrompida por um lapso de tempo; mas esse lapso de tempo representa o advento da consciência humana, a conversão do Criador em Redentor. Todo o ser humano é uma Bíblia, o Velho, o Novo e o Novíssimo Testamento: o Verbo Encarnado ou a falar. Teixeira de Pascoaes
sábado, 12 de setembro de 2009
À DESCOBERTA DE PASCOAES

É desta forma que Teixeira de Pascoaes, reafirmando o império da Saudade, encerra as breves laudas de A Minha Cartilha, um livrinho póstumo que termina com a palavra FIM e onde desejou apenas dar, em resumo elucidativo, as suas ideias sentimentais, espalhadas na sua obra poético-prosaica. Concluído em São João de Gatão em 9 de Junho de 1951, mas somente publicado por ocasião do segundo aniversário da morte do poeta, A Minha Cartilha ficou sendo uma sorte de testamento espiritual. Bem mais conciso do que O Homem Universal, o opúsculo partilha com esta obra uma intenção de síntese bastante reveladora: Pascoaes escreveu sempre o mesmo livro, ao modo de tema e variações.
A partir de amanhã, e durante a próxima semana, aqui iremos revisitar A Minha Cartilha em alguns dos seus momentos fundamentais, contribuindo para a (re)descoberta de uma obra saída a lume em exígua tiragem, e que, não tendo nunca sido reeditada, constitui hoje uma preciosidade bibliográfica.
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
PALAVRAS QUE FAZEM VER, 13

quinta-feira, 10 de setembro de 2009
NO CORAÇÃO DA ARTE, 20

As Mãos
Naquela loja de material de desenho está um velho pintor. Tem à sua frente, no balcão, um tubo de óleo de azul índigo. É mais do que azul índigo esse azul que está em cima do balcão. É todo o Oriente. São aqueles panos azuis estendidos ao sol sob um vento tranquilo que figuram nas imagens de um livro sobre o Japão. É um azul sintetizado entre o marinho e o turquesa nas sedas das rotas. Pousa as mãos sobre o balcão, liso de madeira, o pintor. As suas mãos são mais longas do que se esperava. Talvez por perseguirem incessantemente as cores da luz. E trazem tinta. Tinta fiel que vem com ele à rua, numa pausa. Ou numa urgência. Traz parte da obra no seu próprio corpo. Com que cores andou a pintar? Lá está: o azul índigo em falta, um rosa pálido, um dourado incandescente que brilha subitamente com um ligeiro movimento da mão. A tinta que o acompanha já é memória seca e lavável. Para quem o observa é o quadro possível: talvez um mar escuro, crepuscular e um pôr-do-sol já posto. No céu, laivos de rosa pálido e um ouro estampado no fim do horizonte como último suspiro do dia. Sim, talvez seja esse o quadro.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 31
Pedro Sinde
Para o Professor Doutor Paulo Borges
É uma opinião comummente difundida entre estudiosos das universidades e também entre pessoas de pensamento maculado ideologicamente a ideia de que Álvaro Ribeiro é “apenas” um patriota. Não contava, porém, encontrar uma opinião parecida com esta, infundada e precipitada, em Paulo Borges, que tem tido uma responsabilidade grande na divulgação do pensamento português. Aquilo para que gostaria de chamar a atenção aqui é apenas um dos aspectos “esotéricos” de Álvaro Ribeiro, que o coloca muito longe daquele plano medíocre em que Paulo Borges o quer encerrar; a ele e aos alvarinos, como lhes chama, quem quer que eles sejam.
Quem melhor compreendeu o ponto da montanha em que se situa Álvaro Ribeiro foi António Telmo nestas palavras de 1989 (!): “Prudentemente começa a Universidade a ensinar José Marinho e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno e Antero de Quental. Só Álvaro Ribeiro não é mencionado, a não ser para pôr sobre os seus livros o sacer esto [pelo qual se repelia um indivíduo de uma comunidade] dos mistérios romanos.” (Filosofia e Kabbalah, p. 99)