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domingo, 13 de março de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 128


Pinturas de Séraphine de Senlis

Séraphine

Cynthia Guimarães Taveira

Séraphine.
Séraphine de.
Séraphine de Senlis.
Escrevi assim de propósito porque Séraphine, que me apareceu no Sábado à noite, na RTP 2, começou por ser apenas um nome e uma pessoa daquelas que diríamos ser insignificante, com pouco significado, sem grande importância. Uma entre muitas anónimas, nascida em 1864, filha de gente pobre, com pouca ou nenhuma instrução. Órfã aos sete anos, seria educada num convento, onde acabaria por ser servente, mulher para os serviços domésticos. Séraphine lava o chão e limpa as cozinhas e, debruçada sobre o rio, bate a roupa branca a troco de algumas moedas que pouco ou nada valiam. Toda a vida serviu. Toda a vida não teve tempo. Havia a noite, no entanto. E as velas que a poderiam iluminar. E havia a lembrança dos trajectos que durante o dia fazia pelo campo. De casa em casa para servir, da casa para o rio para lavar. E, nesses trajectos ouvia, via e sentia a natureza. E, de noite, lembrava-a com uma outra luz. A luz das velas e a luz interior que havia nela.
Uma força, um impulso, uma tonteria, uma pulsão, uma vontade, um desejo, tudo isto e também um quase sem-querer levaram-na aos pincéis, aos cânticos sagrados, a escutar os anjos que lhe diziam: Pinta.


Séraphine de Senlis


E ela pintou. Primeiro em bocados de madeira, depois em telas com dois metros.
Um coleccionador olhou uma vez para a sua obra, ainda em pequenas dimensões, ainda um pouco tosca, pintada em placas de madeira com cores que só ela sabia onde as procurar: pigmentos da terra, sangue dos talhos, cera das velas das igrejas. Tudo o que ganhava era para o pequeno luxo de pintar. O coleccionador olhou para ela e disse-lhe: - Tens talento, mas tens de trabalhar muito para seres ainda melhor. Nessa altura Séraphine passou a ser Séraphine de.

A guerra de 1914 separou-os. Ele, alemão, não poderia continuar em França. Ela, ainda pouco significante, lá foi vivendo duas vidas: a de dia e a de noite. Para ela tudo estava trocado: o dia que levava eram as suas trevas de escrava; a noite, a sua luz de liberdade.
Pintou só, em segredo, fechada no seu quarto escuro, durante muitos anos.
Em 1927 o coleccionador voltou e viu, e admirou, e levou a sua obra para Paris, e aí a vendeu. Séraphine já podia comprar um vestido branco de seda, e alugar mais do que um pobre quarto. Mas o vestido branco era de noiva, e assim vestida se passeou pelas ruas da aldeia, e assim vista, meia louca, pela vizinhança assustada, acabaria por ser internada num manicómio, falando dos anjos que vinham aí.
Morre em 1942, num hospício. Morre louca? Ou era a vida dela que foi demasiado louca para ela?
Séraphine morre e, passados uns anos, passa a ser Séraphine de Senlis. Já não era insignificante. Já tinha significado.

Pinturas de Séraphine de Senlis

E a natureza que deixou era a sobrenatureza que havia na natureza.

Séraphine lava o chão/Séraphine pinta flores que não existem.
Séraphine cozinha/Séraphine faz com que as flores se movam na tela.
Séraphine torce a roupa no rio/Séraphine explode em alegria na cor.
Séraphine nada sabe/Séraphine tudo sabe.
Mas como? Perguntava o coleccionador. Como é que, sem instrução, sem cultura, sem acesso às escolas de pintura, às exposições, tem essa vontade de pintar?
São os anjos que me mandam, respondia Séraphine, olhando para o céu.
Séraphine abraçava as árvores como amigas, gostava de sentir o vento no rosto, gostava de tomar banho nua no rio, admirava as flores. O profeta Elias descobriu que Deus estava na brisa que passava… e alguns também o descobrem.

Se alguns, depois de sofrerem as agruras de duas bombas atómicas, persistem em construir reactores nucleares, e constroem-nos depois de muito estudarem, de muito saberem, de muitas gravatas usarem, outros há, assim, como Séraphine, que nada estudaram, que nada sabem de física nuclear, mas que tudo sabem sobre a natureza e que, por isso, a amam, a estimam e a vivificam em arte. Só não vê quem não quer.

(Texto escrito depois de ter visto o filme “Séraphine”, com a realização de Martin Provost e a magnífica interpretação de Yolande Moreau)

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