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quarta-feira, 30 de março de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 16


Alexandra Pinto
Rebelo
Diálogos improváveis
As guerras transformaram-se naquilo que são hoje. Batalhas rápidas, dentro de conjuntos maiores chamados guerras, onde os inimigos não se olham nos olhos, nem tão pouco sabem quem são. Para nós, o desconhecimento do outro, alivia essa coisa tenebrosa que é matá-lo.
Bem diferentes eram as batalhas medievais. Depois do cerco montado, seguiam-se meses de escaramuças, de insultos de parte a parte, de diálogos improváveis junto às muralhas onde uns e outros expunham os seus pontos de vista.
Encontramos um desses diálogos improváveis na Carta de Osberno, escrita por um cruzado inglês que ajudou a conquistar Lisboa aos ditos mouros. Numa parte do texto, este descreve os insultos que sofreu, juntamente com os companheiros, durantes os dias e noites que estiveram de guarda no sopé das muralhas. Um desses insultos era uma crítica à teologia católica, acompanhada pela visão islâmica de Deus e de Cristo. Ouçamo-lo:
“(...) em arruídos e palavras injuriosas e insultantes, afrontavam constantemente a Santa Maria, mãe do Senhor, amesquinhando-nos porque adoramos com tanto respeito, como a um Deus, o filho de uma pobre mulher, e dizemos que é Deus e filho de Deus, quando é evidente que há só um Deus, por quem foram criadas todas as coisas que têm princípio; que não pode existir outro que lhe seja coeterno e participante na divindade; que Ele era a suma Bondade, Perfeição e Omnipotência, e que, sendo omnipotente, era indigno e blasfemo restringirmos a um corpo humano e à forma dos membros o tam grande poder duma tam alta divindade; que nada julgavam mais insano e contrário à nossa salvação do que acreditarmos em semelhantes coisas; e perguntavam-nos porque não afirmavamos antes que esse filho de Maria era um dos maiores profetas, já que ao homem não é lícito usurpar o nome de Deus.”
Ao contrário do que foi exposto ao longo de séculos de história escrita, o mundo medieval não era composto por tribos distantes e incomunicáveis, nem a informação sucolenta estaria reservada apenas aos receptivos e benevolentes templários do Oriente. Nesse tempo, vivíamos paredes meias com os outros. Eram os nossos vizinhos, literalmente, tendo-nos ficado na memória, até hoje, a noção doce do que representa esse conceito de vizinhança. Para entrar em contacto com os segredos sufis, não era necessário ir em combate ou em peregrinação para o Médio Oriente, ou ser aceite na restrita Ordem do Templo. Muito possivelmente, a alguns, bastava subir a rua e entrar na casa do seu vizinho, aceitando a comida, sempre oferecida como sinal de hospitalidade, acedendo em participar nas festas da comunidade.
Este cruzado desconhecia por completo esta vizinhança saudável que acontecia dentro dos muros das cidades muçulmanas. Vindo do norte da Europa, este desconhecimento é completamente desculpável. Mas aqueles que agora começavam a ser portugueses, D. Afonso Henriques e os seus, sabiam por certo que, lá dentro, viviam comunidades multiculturais, com grandes grupos de cristãos, como não poderia deixar de ser. Ao que parece, ninguém fez referência a isso aos cruzados. Talvez a atitude dos homens que vinham do norte da Europa, ao sabê-lo, fosse diferente, evitando a crueldade para com os cristãos no momento da tomada da cidade.
Compreende-se assim a surpresa do cruzado em relação à reacção de muitos “mouros” naqueles momentos de pânico:
“(...) outros mouros, vivos, mas semelhantes a cadáveres, arrastavam-se por terra, e suplicantes abraçavam e beijavam o sinal da cruz e proclamavam boa a Santa Maria Mãe de Deus (...)”
Parece que o cruzado, ao espírito da época, conforma-se com a crueldade dessa fase das batalhas (envolvendo mortes, violações, barbaridades de toda a espécie), pois com ela vinha também uma espécie de verdade teológica católica à qual os vencidos se rendiam. O sinal da cruz e o nome de Maria seriam a luz para a qual os vencidos se voltavam inevitavelmente, perdida que estava a sua causa. Mas nós hoje, tal como os que começavam nesse momento a ser portugueses, sabemos que não era assim.
Aqueles que proclamavam o bom nome de Maria eram os católicos que viviam ao lado dos “mouros”. Eram os seus vizinhos que, ao pagarem uma taxa especial, podiam continuar a ser cristãos sem que isso perturbasse a cidade. Aquilo que o cruzado nos diz sem querer, é que no meio da euforia do caos, houve que fazer vítimas tão católicas como aqueles que os atacavam.
E isto tudo no meio do silêncio daqueles que sabiam e assistiam ao massacre, talvez, impassíveis.

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