(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

CARTA ABERTA A PEDRO MARTINS



Eduardo Aroso

Caro Pedro Martins,

Na passada terça-feira, 25 de Janeiro, dia em que se comemora a fundação da cidade brasileira de S. Paulo, onde mais de 15 milhões de pessoas falam a Língua Portuguesa, tive o grato privilégio de, inesperadamente, o ver em Coimbra, e assim podermos falar num local onde o mistério das Rosas de Isabel sempre requereu a nossa língua para, no possível, o exprimir, começando pelo próprio esposo real D. Dinis, impulsionador do idioma luso e ele próprio poeta-trovador. Mesmo ao lado do Portugal dos Pequenitos (noutro sentido «dos Maiores»), da Galeria de Santa Clara que habitualmente é banhada por um sol místico e acolhedor, àquela hora na esplanada já fria, também lançámos os olhos ao Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, que dali se avista em todo o lado sul. Sentados depois na sala que recebia calor da lareira vindo de uma outra, de alguns tópicos que abordámos, sempre no mote do saudoso António Telmo «reunir o que está disperso», um deles gostaria de trazer de novo nestas palavras, no intuito apenas de o clarificar, para o caso de não o ter feito, como é costume nas conversas que temos com alguém que não vemos há algum tempo e que decorrem, via de regra, no amistoso afã de quem quer trocar muitas ideias e notícias.
Tendo vindo ao assunto o conceito oriente-ocidente, seja também no que respeita ao pensamento português, citei eu dois exemplos: o de Guénon e o de Fernando Pessoa. Desde já, caro Pedro Martins, lhe peço licença para este intróito da questão. Porque creio não ter sido suficientemente claro na nossa conversa, começo por dizer que ninguém porá em dúvida que o melhor do ocidente se deve também ao melhor do oriente. No entanto, é preciso considerar que se o ocidente se degradou em muitos aspectos, parecendo manchar e mesmo esquecer ao longo dos séculos uma certa pureza ancestral do espírito do oriente, como hábitos de vida e conceitos filosóficos e doutrinais, na exacta contraparte desta situação adquiriu e conservou porém uma gnose numa oitava acima da sua congénere oriental. Vejamos: quando um mestre da mais alta craveira espiritual (avatar, messias) aparece no mundo, ele não só traz uma mensagem nova por tese, doutrina ou conceito, como explicita, no possível, o que de anterior ainda é absolutamente necessário e que urge lembrar e manter. Cristo não aboliu a antiga lei; completou-a, e assim libertou. Como muito bem descreve Annet Rich, a ideia-chave do hinduísmo é «unidade, ensinando-nos que a Divindade está em toda a parte do universo; depois chegou ao mundo a ideia-chave da religião persa ou de Zoroastro que é pureza.» (…) «Séculos mais tarde veio Buda para novamente ensinar as antigas verdades que se encontravam escondidas sob as ruínas do egoísmo e da casta». Posterior à onda espiritual que brilhou sobre a Grécia e que cai para ser ensombrada pelo militarismo romano, neste ambiente hostil surge o Cristo que revela o Amor. Cristianismo que, a partir do século IV, terá que ser procurado não na Igreja de Pedro, mas na de João, a via que os Templários abraçaram. Podemos dizer que o esoterismo do ocidente começa aqui, isto é, a preservação da essência no meio de uma crescente degradação por um cristianismo de fora, que cresce e se enraíza numa estrutura hierárquica, pari e passu com o império romano, cristianismo esse que do dogma levaria ou acompanharia o materialismo actual.
É ponto assente que uma das missões dos Templários seria a de unir (de um modo não apenas geográfico) oriente e ocidente. Mas nisto reside o enigma: que ligação? Por terra e mar, ou pelo espírito? Ou por ambos? Não nos pode deixar de impressionar que uma ordem guerreira e iniciática como a dos Templários tenha cultivado um especial carinho pelo culto do feminino, que na tradição cristã é a Virgem Maria, símbolo de intercessão, mas também princípio criador (Espírito Santo).

Cristo não aboliu a compaixão, a inofensividade, a paz e outros pontos da doutrina de Buda, tendo contudo lançado o enigma «Não vos trago a paz, mas uma espada». Acentuou também que o sofrimento expia-se sofrendo, quando não há alternativa («Toma a tua cruz e segue-Me»), ou então evita-se no presente e/ou no futuro quando aconselha que aos inimigos se deve perdoar «setenta vezes sete». Também não veio fazer a apologia do nirvana – do qual provavelmente nasceu a tragédia do nosso ocidental Antero, bem patente nalguns sonetos –, mas deu o exemplo de superação, no marcante episódio da tentação no deserto, mostrando que a força espiritual pode e deve ser direccionada, e nisto tocou o ponto essencial para o clássico problema do bem e do mal. O perigo, tão delicado para o budismo, que a essência do desejo contém, não pode ser traduzido na recusa do mundo, só porque é gerador de dor, sofrimento e tensões várias. Ou seja, a recusa de enfrentar a dualidade – pelo menos com a complexidade que o ocidente a toma.
O panorama actual da relação oriente-ocidente mostra-nos, inequivocamente, que o primeiro já só existe como passado do presente e que, agora, em rápido movimento se tem “ocidentalizado” no pior que tem a nossa civilização. Mas, perante isto, não existe, intocável, toda a gnose das civilizações do sol nascente? À legítima pergunta se responde afirmativamente, valendo também para o ocidente no que expus em cima. «A Europa jaz, posta nos cotovelos:/ De Oriente a Ocidente jaz, fitando» (…) «Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado». É razoável pensarmos que Pessoa, ao dizer Europa, se refere ao movimento da civilização. Se é verdade que, na perspectiva geográfica, o sol nasce a oriente, não é menos significativo o seu movimento que é de leste para oeste, assinalando assim o curso da civilização, com as suas virtudes e defeitos. Como, pois, o equívoco de trocar o budismo pelo cristianismo ou a flor-de-lótus pela rosa? Como, pois, voltar-se para o passado do presente (e do futuro), não reconhecendo o verdadeiro tao (via) do ocidente «Eu sou o caminho, a verdade e a vida», pronunciado pelo Senhor do Sol? Como, pois, recusar encarar a sombra, o «guardião do umbral» no confronto da pura individualidade ou individuação na unidade divina que o pensamento do ocidente foi revelando?
Depois deste intróito, quiçá longo para uma carta, se entenderá melhor o percurso iniciático do indiscutível René Guénon, mas que não estabeleceu a essencial diferença entre uma coisa e outra: oriente e ocidente. Se bem que a divindade não pode estar, em circunstância alguma, dividida geograficamente, o certo é que a forma de a realizar na imanência humana tem caminhos diferentes. Quando um discípulo procura o caminho da iniciação só pode avançar no seu «raio vibratório». Não é novidade. Vem nos livros. Disseram-no Besant, Blawatsky, R. Steiner, Heindel, entre outros, há cerca de cem anos. Embora Guénon tenha escrito páginas e páginas enciclopédicas sobre ocultismo, não disse o essencial e interior sobre o esoterismo cristão. Não podia dizer. Como muito provavelmente os autores atrás mencionados não poderiam ter dito sobre o sufismo. Creio ser pertinente a seguinte observação: a propósito de Guénon, António de Macedo diz-nos num dos seus livros que teve uma conversa com o seu amigo Lima de Freitas, tendo-lhe confidenciado que no autor de A Crise do Mundo Moderno, «em nenhum dos seus livros se lê uma só palavra sobre amor e sexo». (Nem sequer no sentido sagrado do último termo, diria eu), «ao que Lima de Freitas retrucou: - Nem sobre Estética!». Muitos, entre nós, há muito observaram que Guénon, enigmaticamente, calou sobre Portugal e os Templários. Provavelmente porque, também neste ponto, pouco ou nada sabia, assunto que aliás está intrinsecamente relacionado com o esoterismo cristão. Tendo nascido em Blois, não muito longe de Paris, acabou por morrer no Cairo, convertido ao sufismo, sendo o pormenor da cidade onde faleceu de pouca importância. Importância sim, nele, foi o do seu «raio vibratório» (um entre os sete existentes na Terra) inequivocamente islâmico (adoptou, por fim, um nome de acordo) e por isso incapaz de compreender, pelo menos no lado mais profundo, a doutrina secreta do Cristo.

Quanto ao interessantíssimo caso de Fernando Pessoa, podemos dizer que segue uma via inversa. Como bem observou António Quadros, o poeta místico-ocultista parte de uma predominância racionalista e filosófica, avança para um estádio neopagão, depois espírita, gnóstico, teosófico e hermético (onde surge também a astrologia) para ser absorvido, finalmente, pelas doutrinas rosacruzes e templárias. Se bem que, como também adverte António Quadros no prefácio de «À Procura da Verdade Oculta» (ed. Europa-América), estes estádios, como é evidente, não estão separados de todo, correspondendo a épocas de acentuação de interesses, de interiores (re) descobertas. Particularmente significativo é o conjunto de escritos que Pessoa regista nos últimos dois anos da sua vida, o que faz evidente o seu percurso, ou o seu oculto encontro-em-si-mesmo, que outra coisa não é que o portal ou já altar da iniciação. O seu «raio vibratório» é inequivocamente o cristão esotérico, com a particular expressão ocidental rosacruciana e templária. Vamos reler, por exemplo, o seu poema à Virgem Maria, datado de 14/8/1935, cerca de três meses antes da sua morte física: «À Virgem – Ninguém, nem eu, tem de minha alma dó, / neste momento,/ Ó mãe universal, sê minha só!/ Não são teus olhos, é a minha vida…/ Não são as tuas dores reveladas/ Pela presença das espadas/ Que te me fazem uma mão vivida…/ O que eu sou e o que eu fui, bóia, fervilha/ à tona das marés mudadas./ Não são teus olhos que [sic]». Ainda do mesmo mês e ano, um outro: «Virgem Maria – Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria, do fim do seu cansaço…/ E tens na mão usado e nunca immundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as lágrimas do mundo».
Parece até que Pessoa se voltou resignadamente (ou desiludido) mais para a Igreja de Pedro do que para a de João, ele que tinha dito anos antes «troquemos Fátima por Trancoso». Apenas, em meu entender, depois da tal «procura da verdade oculta», uma pura aceitação, cândida e simultaneamente reveladora, onde o poeta alquimiza todo o seu percurso, ou melhor, quando encontra o seu getsmani. Convém ter a par disto que dos últimos dois anos da sua vida datam também versos onde encontramos palavras como calvário, cruz, Pilatos, Nazareth, Anjo da Guarda, e poemas como é o caso de Monte Abiegno, de inconfundível conteúdo iniciático, quando o poeta alcança o cume mais elevado. Assim, nos derradeiros anos, a cruz a que o poeta se refere não é a da Igreja de Pedro, mas a esotérica, quando no final do poema O Encoberto diz «Que símbolo final/ Mostra o sol já desperto?/ Na Cruz morta e fatal/ A Rosa do Encoberto».
Esta carta, à primeira vista, parece estar emoldurada quase só de uma certa teologia do cristianismo, pela citação de várias passagens bíblicas, e por uma defesa do ponto de vista ocidental. Seja assim; sobretudo no último ponto. Sabemos que religião e filosofia seguem vias diferentes, mas não antagónicas, porque ambas estão sob o mesmo Sopro Universal. Porém, eis a diferença fulcral, também quanto a oriente-ocidente: tendo em conta o actual mundo dito da comunicação (mas que espécie de comunicação?), ainda assim cada povo e civilização interpretam a divindade e a si se pensam de modo particular. Aqui recordamos a lúcida afirmação de Álvaro Ribeiro: «A cada povo é proposto um ideal diferente de realização da Humanidade». Perante isto, que conclusão extrair, se conclusão se pode tirar? Uma coisa é certa: há um caminho. Antes, o início e o fim desconhecem-se. Depois, tocam-se de modos diferentes, juntos no plano da realização, como ouroboros que morde a sua cauda. Portugal tem sido designado como a terra da serpente, animal de duplo sentido que tanto atraiu Pessoa, que nos falou da Ordo Serpentis. Cristo mostrou a possibilidade de dois caminhos num só ao dizer «Sede sábios como as serpentes e mansos como as pombas».
Aceite o melhor abraço, na expectativa de regressarmos a Santa Clara ou a Sesimbra, para continuarmos a «unir o que está disperso».

Coimbra, 1 de Fevereiro de 2011
Eduardo Aroso

1 comentário:

  1. Sobre a relação de René Guénon com o cristianismo, em particular com a Igreja Católica, vale a pena ler o seguinte artigo:
    http://elkorg-projects.blogspot.com/2005/08/william-h-kennedy-ren-gunon-and-roman.html

    Abraço, O.M.

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