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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

PRODÍGIOS DE IMAGINAÇÃO


Na imagem: fractais

Peço a atenção dos leitores para estes três prodígios de imaginação provindos de três culturas diferentes: a celta, a persa e a indiana. Três prodígios de imaginação sem efeitos especiais, sem influências televisivas ou cinematográficas. Lendo isto, resta-me perguntar até que ponto não somos escravos da imaginação dos outros e, por isso, perdemos nós mesmos a capacidade de imaginar. Somos escravos e os escravos apenas podem desejar uma outra vida. A imaginação, pelo contrário pertence aos homens livres dos pesadelos da escravidão, aos homens livres que, do alto de uma montanha contemplam o horizonte, vêem outros espaços e utilizam a língua como se de um encanto se tratasse. Os homens livres vivem a sua vida e outras tantas, os escravos desta civilização nem vivem a sua nem aquela que desejariam ter. Convido os leitores para o mundo real da imaginação, aquela pura, sem tecnologia tolhendo os movimentos. Imaginem-se ainda crianças, num tempo sem luz eléctrica, com as sombras das velas e lamparinas por companhia, sentados no chão a ouvir os mais velhos relatando estes episódios. Por momentos que pare o tempo para que um outro surja.
Cynthia Guimarães Taveira
Tradição Celta

“Por fim, ele [Couhoulinn] pôs o seu capacete de crista e deu um grito igual ao de cem guerreiros. Este grito tinha um enorme alcance, pois era dado ao mesmo tempo pelos fantasmas com rostos de bode, pelas fadas dos vales, pelos demónios do ar, diante dele, por cima dele, à sua volta, sempre que ele saía para fazer correr o sangue dos inimigos e para executar extraordinárias façanhas. Depois vestiu o seu véu de protecção, que o tornava invisível, peça de indumentária trazida da Terra das Promessas e dado por Mananann, filho de Lîr.
Deu-se então a sua primeira contorção, que foi terrível, múltipla, maravilhosa. As suas pernas tremeram à sua volta como uma árvore contra a qual vem bater um vento tempestuoso. Cada um dos seus membros se pôs a tremer, cada articulação, cada dedo, cada juntura, desde o cimo da cabeça até à ponta dos pés. Num acesso de fúria, ele torceu o corpo, os seus dedos dos pés, a parte da frente das pernas, os joelhos passaram para trás dele, os seus calcanhares, as barrigas da perna, as nádegas, voltaram-se para a frente. Os músculos superficiais das barrigas da perna pousaram sobre a superfície anterior das suas pernas e formaram aí uma bossa tão grossa como o punho dum guerreiro. E os nervos do cimo da cabeça moveram-se para trás da sua nuca, de tal modo que cada um deles produzia uma bossa redonda, indescritível, tão grossa como a cabeça de uma criança de um mês.
Depois as feições do rosto deformaram-se, e um dos seus olhos entrou para dentro da cabeça de tal modo que nem um guindaste teria conseguido trazê-lo do fundo do crânio para a face. O outro olho saltou fora da pálpebra e veio a colocar-se na superfície da face. A boca deformou-se de uma forma monstruosa. As maxilas afastaram-se, deixando escancarada a boca e tornando assim visível o interior da garganta. Os pulmões e o fígado vieram flutuar na boca. Com uma sapatada de leão, ele bateu na pele que cobria a sua maxila superior, e todas as mucosidades que, como uma corrente de fogo, chegavam do seu pescoço até à boca, se tornaram tão grandes como a pele de um carneiro de três anos. Ouviu-se o barulho que fazia o seu coração ao bater no peito, e este barulho era tão violento como o que é provocado pelos latidos de um cão de guerra ou os rugidos de um leão que se prepara para atacar um urso. O calor provocado pela sua violenta e ferocíssima fúria encheu o céu de nuvens de tempestade e, do seio destas nuvens, saíram mil faíscas de fogo que se espalharam por todo o lado com uma imensa crepitação, como uma trovoada que não cessasse de atingir a terra.
À volta da cabeça, a sua cabeleira tornou-se espigada e semelhante a um ramo de fortes espinhos no buraco de uma sebe. Se sobre a sua cabeça alguém tivesse sacudido uma macieira coberta de belos frutos, estes não teriam caído à terra mas ter-se-iam todos plantado sobre cada um dos seus cabelos eriçados pela fúria. Na sua fronte, acendeu-se então a luz do herói, um fogo comprido e grosso como a pedra de amolar de um guerreiro, e do cimo da sua cabeça saiu um raio de sangue castanho, rectilíneo como uma viga, tão alto, tão espesso, tão forte, tão comprido como o mastro de um navio. Resultou daí um vapor mágico semelhante ao fumo que sai do palácio dum rei, quando o rei se vai sentar junto à lareira, à noite, no fim de um dia de Inverno.”

Excerto reescrito a partir de fontes irlandesas da Idade Média retirado do livro “A grande epopeia dos Celtas - Terceira Época - O herói dos cem combatentes” de Jean Markale, Ésquilo Edições, pág. 143

Tradição Persa

“Quando acabou e preparou o círculo da maneira que queria, colocou-se e parou no meio, onde fez uma rezas e recitou versículos do Alcorão. Insensivelmente o ar escureceu de maneira a parecer que já era noite e que a máquina do mundo se ia dissolver. Sentimo-nos transportados por um medo terrível, esse pavor aumentou ainda mais quando vimos de repente aparecer o génio filho da filha de Elbis com a forma de um leão enorme.
Assim que a princesa viu aparecer esse monstro, disse-lhe: ‘Cão, em vez de rastejares diante de mim, ousas apresentar-te sob essa forma horrível e julgas amedrontar-me?’ ‘E tu??’ retorquiu o leão, ‘não receias renegar o contrato que nós firmámos com uma jura solene, de não nos molestarmos nem causarmos nenhum dano um ao outro?’ ‘Ah!, maldito!’, replicou a princesa, ‘é a ti que devo fazer essa censura.’ ‘Tu vais, interrompeu bruscamente o leão, ‘pagar-me o trabalho que me deste em cá voltar.’ Ao dizer isto, abriu uma boca enorme e avançou para ela para a devorar. Mas ela, que já tinha tomado as suas precauções, deu um salto para trás e teve tempo de arrancar um cabelo, e, pronunciando duas ou três palavras, transformou-o num sabre afiado, com o qual cortou em dois o leão pelo meio do corpo. As duas partes do leão desapareceram e apenas ficou a cabeça, que se transformou num grande escorpião, que, não se sentindo em vantagem, retomou a forma de uma águia negra e poderosa e perseguiu-a. Deixámos de as ver uma e outra.
Pouco depois de terem desaparecido, a terra entreabriu-se diante de nós e dela saiu um gato preto e branco, com o pêlo todo eriçado e que miava de uma maneira horrorosa. Um lobo negro perseguiu-o e não lhe deu tréguas.
O gato, muito apressado, transformou-se numa minhoca e colocou-se junto de uma romã caída por acaso de uma romãzeira que estava plantada à beira de um canal de água profundo, mas pouco largo. A minhoca furou a romã num instante e escondeu-se. Então a romã inchou e tornou-se grande como uma melancia, erguendo-se até ao telhado da galeria, donde, depois de dar uma voltas em rotação, caiu no pátio e partiu-se em vários bocados. O lobo, que durante este tempo se transformara em galo, lançou-se sobre as pevides da romã e pôs-se a engoli-las uma após outra. Quando já não viu mais, veio até nós de asas abertas, fazendo muito barulho, como para nos perguntar se já não havia mais pevides. Restava uma à beira do canal, na qual ele reparou ao voltar-se. Correu depressa, mas, no momento em que ia debicá-la, a pevide escorregou para o canal e transformou-se num peixinho… (…) O galo lançou-se ao canal e transformou-se numa solha, perseguindo o peixinho. Estiveram ambos duas horas na água e nós não sabíamos o que lhes tinha acontecido, quando ouvimos uns gritos horríveis que nos fizeram estremecer. Pouco depois vimos o génio e a princesa a arderem. Lançavam um contra o outro chamas pela boca, até que se puseram a lutar corpo a corpo. Então as duas chamas aumentaram e deitavam um fumo espesso e flamejante que se erguia muito alto.”

Excerto retirado das “Mil e Uma Noites”, A história do invejoso e do invejado (quinquagésima noite), Edições Europa-América, pág. 118

Tradição Indiana

“Certa vez, quando brincavam, as crianças disseram a Yasodã: «Krsna comeu terra.» Yasodã tomou Krsna pela mão, e censurou-o dizendo: «Seu maroto, por que razão comeste terra?» «Não o fiz», disse Krsna. «As crianças estão a mentir. Se acreditas nelas e não em mim, vê tu própria a minha boca.» «Então, abre-a», disse ela ao deus, que por brincadeira tomara a forma de uma criança humana; e ele abriu a boca.
Yasodã viu então todo o universo dentro da sua boca, com os seus limites longínquos do céu, e o vento, e o relâmpago, e o globo terrestre com os seus oceanos e montanhas, a lua e as estrelas, e o próprio espaço; e viu a sua própria aldeia, e viu-se a si mesma. Ficou confusa e assustada, pensando: «Será isto um sonho ou uma ilusão criada por Deus? Será talvez uma ilusão da minha própria mente? É que o poder ilusionista de Deus inspira em mim crenças falsas como “Eu existo”, “Este é o meu marido”, “Este é o meu filho”.» Quando Yasodã conseguiu compreender deste modo a verdadeira realidade, Deus espalhou a sua ilusão mágica sob a forma de amor materno. Yasodã perdeu instantaneamente a memória do que acontecera; colocou o seu filho ao colo e voltou a ser como era, mas o seu coração fora agora inundado de um amor ainda maior a Deus, que julgava seu filho.”

História retirada do livro “Sonhos, ilusão e outras realidades” de Wendy Doniger O‘Flaherty, Assírio & Alvim Edições, pág. 192

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