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segunda-feira, 24 de maio de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 58

Nostalgia sem idade
Cynthia Guimarães Taveira

Maria de Lourdes Modesto falava na televisão. Ouvia-a atentamente e observava-lhe as expressões numa espécie de atenção oriental (o esquecimento de si e a entrada no fundo dos olhos do outro). Chorara, dizia, quando havia folheado um livro seu, já antigo, sobre a gastronomia tradicional portuguesa. Não percebia porque havia chorado. Mais espanto sentira, dias mais tarde quando um jovem, procurando-a por causa de uma tese, lhe contara que, ao folhear o mesmo livro, se emocionara também. Duas gerações, uma ponte grande de anos entre elas, no entanto, ambas choram perante o mesmo. Uma estupidez, uma futilidade de um livro de culinária. Uma idiotice que não se explica, a não ser pelas memórias, pelos cheiros contidos nessas páginas, pela cultura transmitida no segredo das cozinhas, pelas vivências da infância.

Essas lágrimas são uma estranha forma de resistência, nesta altura em que a NASA nos explica, por A mais B, que o futuro da espécie humana passa pela colonização de outros planetas. Essas lágrimas são deste planeta e, de alguma forma, alimentam uma outra esperança que não aquela em que o homem se procura e procura a sua perfeição numa distância só possível em imaginação. Essas lágrimas são de alguém que se encontra no seu próprio quintal, ali, entre os coentros e a salsa, exactamente no meio de Portugal.

Eliezer Kamenezky
Haverá sempre o movimento pendular tão bem descrito por Fernando Pessoa no prefácio da “Alma Errante” de Eliezer Kamenezky:
“Os povos equilibram-se, na sua vida psíquica, pela consistência automática de qualidades opostas. (…) A vida oscila como um pêndulo, e a oscilação num sentido requer, para que a mesma vida não pare, uma igual oscilação no sentido inverso.
Como, porém, na oscilação do pêndulo se mantém o ritmo do movimento, sucede que tanto as qualidades que estão num limite da oscilação, como as que estão no outro limite, participam da mesma oscilação essencial. (…)
Esta existência necessária, nos povos, de elementos opostos e, por isso, complementares e equilibrantes, manifesta-se, em geral, através de indivíduos diferentes. Quer dizer: não é no mesmo individuo que normalmente coincidem os dois elementos complementares; aparece um em certos indivíduos, outro em outros. O equilíbrio dá-se na raça ou no povo em conjunto, não nos indivíduos separadamente.”

Os nostálgicos naturais da naturalidade de Portugal, da naturalidade do homem, da naturalidade do planeta, equilibram os vorazes do futuro tecnológico, os sedentos de robôs. Os que pressentem sabedoria nas rugas contrabalançam os que sentem a beleza na juventude. E a força comum destes sentimentos é o desejo.
Lembro-me de ter sido educada numa família ateia: era-me dito, como um mantra, “se Deus existe, o problema é dele”. O meu irmão ouviu bem a lição e aperfeiçoou os mestres quando há pouco tempo proferiu a máxima que suplanta a original: “Se Deus existe, eu não sou problema para ele”. No meu caso, algo correu mal, na idade dos treze anos: numa cabine telefónica, a pensar apenas no número que ia marcar, um flash, uma súbita intuição, uma certeza vinda não sei donde, fez-me gritar no interior daquelas paredes de vidro que me isolavam do mundo: “É claro que Deus existe”. Nada disto tinha explicação. Perante as mesmas condições, dois filhos seguem rumos diferentes. Era a força do pêndulo a actuar, a mesma que actuou nesse jovem universitário sem que ele o percebesse.
Assim se vê que a nostalgia não tem idade e que a missão dos que amam Portugal é tão importante como a daqueles que o procuram esquecer, destruir, aniquilar. É apenas uma questão de equilíbrio para que Portugal permaneça vivo. Talvez porque aos olhos de Deus, afinal, este país, valha a pena.

1 comentário:

  1. O Portugal subterrâneo – o que, pelos sucessivos governantes, foi empurrado para o escuro da existência -, o Portugal do Povo (com letra maiúscula, para se distinguir do “querido povo” votante) confere o referido equilíbrio e dá sentido a todo este estado de coisas, coisas e pessoas, pessoas coisificadas, estas que dizem que vivem num “Estado de Direito”. Um estado de coisas que já não tem nenhum Estado, para não falarmos da Nação e da Pátria. Mas, como eu disse recentemente num aforismo, se há um exercício pervertido do poder, então é porque existe um verdadeiro poder que, indubitavelmente, só poderá aprender-se e exercer-se na comunhão transcendente. E, assim, seja em que grau for, a História assume – pelo menos em determinadas épocas – um único sentido: o providencial.

    As minhas saudações
    Eduardo Aroso

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