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quarta-feira, 5 de maio de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 14

Cynthia Guimarães Taveira





As Estrelas
Devia bastar um sorriso,
para que o passeio se iluminasse
Neste breve e leve passo
Devia bastar um abraço
Para que novo o tempo fosse
De alto e baixo misturado
Aqui, onde o breve laço
É tecido passo a passo


Sim, neste caminho do caminho há locais desérticos, certos sítios que mais não são do que tempos, onde a esterilidade impera. Vê-se televisão e não se vê nada. Lêem-se os escaparates de revistas e não se sente nada. Pessoas passam, passos rápidos, preocupações lentas de mais, e nada fica. Nem uma mão se estende em auxílio. O carro avança na auto-estrada e o cinzento do asfalto não tem implicações com o estado de alma. A paisagem mal se vê. O mundo parece de papel, três dimensões estáticas no meio da agitação aparente. Um sufoco que provoca a memória, chama por ela como o último reduto de humanidade. Sim, naquele tempo nós éramos diferentes… Lembras-te de uma certa leveza no acto de viver? Leveza em si, leveza natural. Leveza que fazia fluir uma gargalhada metida entre duas eternidades, mesmo no meio do infinito. Ligeireza que não nos fazia temer falar. Falar à vontade, sem medo do julgamento imediato dos outros, ainda livres de aparências. Falar livremente, com gestos, expressões e mimetismos que exprimiam melhor o estado imediato do ser.
Como é possível Ser, neste deserto onde só o martelo do juiz bate incessantemente, ordenando penas consecutivas? Sabia que no caminho do caminho o julgamento era apenas uma impossibilidade. Nada podia julgar verdadeiramente, porque lhe faltavam elementos inumeráveis e precisos. Como viver com esta consciência num país que embora o amasse parecia ter sido dominado por todos os juízes e todos os juízos, não sendo nenhum deles o Final? Por todo o lado todos “achavam”, todos “tinham opinião”, todos “pensavam que” quando não pensavam “de que”. O direito, a legalidade, o crime, o abuso de confiança, os litígios, os processos, as penas, execuções, liberdades incondicionais e condicionais enredavam os seres. Bastava estar vivo para se estar, de alguma maneira, a cometer uma ilegalidade, e não se podia evocar o desconhecimento da lei, o seu desconhecimento não desculpabilizava ninguém, como se esta fosse só uma e não milhares…
Parou, por momentos. E nesse deserto de papel ouviu o bater do seu coração. Compassado, calmamente musicando. Ainda batia, afinal. Tentou reproduzir o seu som, dançando. E dançou por esse deserto ao som do seu coração. E assim foi recuperando os gestos genuínos, e falou para as estrelas com as antigas expressões, e deu uma gargalhada quando uma constelação lhe pareceu um martelo de um juiz. Uma gargalhada daquelas que puxam os dois lados do infinito para dentro de si. E as estrelas, essas, não o julgaram, e riram-se com ele. Gargalhadas sem fim unidas num laço livre. Sem rei nem roque, mas com o tabuleiro inteiro do universo para passear.

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