APRESENTAÇÃOA publicação, já em 2010, do
Manual de Teoria Política Aplicada, da autoria de Orlando Vitorino (1922-2003), constitui, por certo, um dos grandes acontecimentos editoriais do ano. Obra inédita, e portanto saída a lume a título póstumo, com a chancela da Verbo, este livro – tal como o autor o quis significar no respectivo subtítulo – apresenta-nos “O Liberalismo como Sistema de Liberdade”.
Atento o mote dado ao segundo volume, que o leitor agora folheia, dos
Cadernos de Filosofia Extravagante – o das
Singularidades, sobretudo as observáveis na língua por que superiormente se define a Pátria –, suscitou-nos particular interesse a quarta das seis partes em que este notável
Manual se divide. Nela se trata d’
A Grande Deturpação – a da inteligência – que, para Orlando, consiste no ataque assanhado, continuado e eficaz que há muito, entre nós, a
cultura oficial vem movendo à
cultura real, a ponto de, nas últimas décadas, se ter transformado numa “ameaça de morte” à “presença dos valores do espírito”.
Segundo o filósofo, desde 1945 essa investida é protagonizada por dois blocos – o marxista e o da Unesco – que, sendo essencialmente diferentes, se tornaram, na prática, indistintos, visto o rumo levado pelos acontecimentos.
Aos dois blocos irmana-os a disputa travada no esforço com que igualmente procuram “dominar e esmagar, sob a bandeira da equidade uniformizante e humanitária, a infinita variedade do mundo do espírito”. Que “as diferenças que há entre eles não são irredutíveis” – acorre a demonstrá-lo o “denominador comum que os torna solidários até à morte: a destruição das
culturas reais que, exprimindo cada uma delas, em sua singularidade, uma manifestação do espírito, são a razão de ser das pátrias”.
Ilustrando, com recurso a sucessivos exemplos, o caminho que vai sendo feito pela hidra, o filósofo detém-se à oitava ilustração, que mostra como se escapa à
Grande Deturpação, com uma recensão do livro
História Secreta de Portugal, publicado por seu irmão António Telmo em 1977.
Possa a sequente transcrição desse breve e lúcido registo de Orlando servir de remate às presentes linhas, na esperança de que, pela conjugação, o leitor de
Singularidades fique a saber ao que vem. E na certeza de que, por essa via, perceberá quão próximos, pelo sangue e pelo espírito, se encontram os dois irmãos filósofos, seguindo a luz da mesma estrela por caminhos diversos.
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OITAVA ILUSTRAÇÃO
que mostra como se escapa à grande deturpação
com uma recensão do livro História Secreta de Portugal
História Secreta de Portugal
No momento em que se levantam sérias interrogações quanto à possibilidade de sobrevivência de Portugal, eis que surge um livro como este. Livro surpreendente que vem continuar, actualizar, além de a acrescentar com uma singularidade muito significativa, uma tradição de patriotismo que se inicia, talvez, nas obras, por interpretar, do filósofo D. Duarte e do historiador Zurara, para se prolongar até aos nossos dias nas
Trovas, do Bandarra e D. João de Castro, no
Encoberto, de Bruno, na
Mensagem, de Pessoa, e na
Arte de Ser Português, de Pascoaes.
Ao chegar ao último capítulo desta
História Secreta de Portugal, será o leitor informado do propósito do autor: perante a demissão dos “grandes organismos espirituais de ligação do Céu com a Terra” – o autor acabara de designar como tais a Maçonaria e a Igreja Católica – a cada um de nós “resta apenas uma saída: a de ficar só, completamente só em si mesmo e de, nessa solidão, se manter firme, não cedendo um ponto”. Acontece, porém, que, mais radicados nós nela do que nos citados “grandes organismos espirituais” e mais terrena e erradicável do que eles, “há a Pátria”. E o autor demonstra: “Não é por acaso que se nasce português, e misteriosas são as leis das afinidades pelas quais temos aquele Pai e esta Mãe, estes irmãos, esta mulher e estes filhos. Como é possível abandonar tudo e ficar só?” É, deste modo, próprio da natureza e da existência humana de cada um, pertencer a uma Pátria. Ora “a Pátria somos nós todos, os que vivemos, mas, sobretudo, a cadeia invisível dos antepassados, essa enorme força da espécie que o Anjo marcou na sua génese com uma língua e um determinado sestro, histórico senão transcendente”. História secreta de Portugal é a que procura, nas visíveis pedras dos monumentos, nas audíveis palavras dos poemas, nos manifestos eventos e homens a tais pedras e palavras ligados, esse
sestro histórico que, no caso do Portugal, se afigura efectivamente transcendente.
Onde estão sinais e segredo, estará a decifração. António Telmo decifra, primeiro, o enunciado do sestro nas pedras do claustro e do portal dos “Jerónimos” que compõem uma imagem cuja legenda – pois não há imagem sem legenda – é pela primeira vez lida. Decifra, depois, o seu significado nas palavras de
Os Lusíadas a que dá uma interpretação poética e teológica que deixa na penumbra tudo quanto, em saber literário e historicista, até hoje se disse sobre o grande poema. Decifra, por fim, a sua agonia nos versos de Pascoaes e Pessoa, e aqui demoramos um pouco a notícia deste livro.
António Telmo apresenta Fernando Pessoa como o “rectificador da maçonaria” da qual tinha um saber – “a maioria dos seus poemas constituem o desenvolvimento dos ensinamentos maçónicos” – que os maçons há muito perderam trocando-o por artificiais, inadequadas e ridículas interpretações activistas e positivistas. Pessoa refutou e repudiou a tese, comum a Sampaio Bruno e José de Maistre, de que a maçonaria seria uma “organização judaica”: a influência do judaísmo na maçonaria, tal como a do catolicismo, a do protestantismo e a do ateísmo, só se terá dado a partir do século XVIII através da introdução de “graus iniciáticos” que se sobrepuseram aos “graus simbólicos”. Nos “graus simbólicos”, a maçonaria terá sido, sempre segundo a interpretação de Pessoa, o prolongamento da Ordem dos Templários e como tal é que estará no “segredo de Portugal”: a
Mensagem é, até ao
Valete Fratres do ritual das “lojas” com que encerra, a descrição maçónica, mas de uma maçonaria “rectificada”, da história secreta de Portugal.
Pascoaes é-nos apresentado como o “outro” de Pessoa. Sugere António Telmo que há, nos seus versos, “uma excessiva beleza” e que é essa excessiva beleza que torna a maioria dos portugueses hoje incapazes de os entenderem, até de os lerem, aparecendo-lhes eles como um “infindável marulho de som”. Uma das chaves deste livro é a erudita sensibilidade para com os valores estéticos da poesia, que o autor em geral esconde na exposição conceptual das interpretações que faz dos poemas. Essa sábia sensibilidade chega a explodir com um vigor polémico que, todavia, se contém para a não denunciar. É o que acontece nas páginas onde se descreve “a campanha feroz que os sergistas movimentaram contra os grandes poetas do sagrado, Pascoaes, Pessoa e Régio, hostilizados socialmente, à direita e à esquerda da cruz, porque se atreveram a imaginar ou a pensar a ideia de Deus”; ou naquelas outras páginas onde o autor, depois de nos dizer que o “saudosismo foi catalogado como corrente literária para ser esquecido no mar dos medíocres onde se perdem e afundam todas as correntes”, observa: “O papel dos adversários do povo português é este. Não podem fazer outra coisa senão crítica literária ou o análogo.”
É na poesia de Pascoaes que o “sagrado” adquire um actual sentido universal. Todo o movimento é composto de progresso e de regresso. E porque não há – como sempre observava José Marinho – “progresso infinito”, para lá de certo limite o progresso cai numa “separação abissal” do princípio que lhe deu origem e só persiste como degradação e perdição. Uma das formas mais patentes e fatais desta degradação, reside na oposição e no ódio à natureza, representados, primacialmente, pelo sistema da filosofia alemã. A esta degradação progressista importa opor a sublimação regressista: “O que sobretudo importa – diz António Telmo – é o encontro do homem consigo na natureza sem ninguém, do homem que por uma transmutação interior se torna capaz de um contacto efectivo com aquilo que a natureza é: o lado oculto das coisas e dos seres. Não só perdeu esse contacto como a possibilidade dele. Pascoaes foi a última tentativa para restabelecer essa possibilidade.”
O que se pode entender pelo “homem transmudado” verá o leitor que é “o homem que pensa e conhece com todo o seu ser”; o que se pode entender por natureza, é o que em Pascoes se aprende. “Aprende-se a conhecer na natureza visível o seu duplo oculto. Todos os seres têm o seu duplo, diz-nos Pascoaes, e as
sombras constituem o verdadeiro lado das coisas. Por
sombra entende ele […] a imagem secreta de cada coisa, que se torna presente ao espírito por uma invocação mágica que nomeia o ser da coisa e os seus atributos: a ideia.”
Neste último texto transcrito, encontramos a expressão daquilo que, na abertura desta “notícia”, dissemos ser “a singularidade muito significativa” do livro de António Telmo. Com efeito, as obras de tradição secreta, ocultista ou esotérica, suscitam sempre a suspeita e receio de se tratar de obras onde o pensamento não sai do labirinto, sempre perturbante e muitas vezes belo mas sem finalidade, das combinações, comparações e metáforas, das analogias sem anagogia. Outra suspeita que poderia também suscitar um livro do autor de
A Arte Poética – publicada há dez anos para ficar circunscrita ao círculo, ou ao “gueto”, onde se refugia a livre poesia – seria a de se tratar de uma armadilha destinada a atrair caçadores de borboletas, isto é, perseguidores do segredo da alma, neste caso a de uma Pátria, que, ora rastejante ora alada, sucessivamente se esconde para em nova forma surgir e surge para de novo se esconder, e em suas metamorfoses infinitamente repete o mesmo eterno ciclo de progresso e de regresso. Ora em todo este livro, como no texto transcrito, verificará o leitor que António Telmo não ficou nem na imagem muda do saber secreto nem na palavra poética da imaginação sem conceito: - num primeiro momento, a imagem emerge ao espírito por uma invocação mágica, operação na qual reside o pensamento esotérico que – à maneira do amor em Dante – solicita todo o ser do homem; num segundo momento, a invocação adquire substância poética, ou palavra, pois nomeia, dá nome à imagem invocada; num terceiro e último momento, o nome dado à imagem invocada é o nome do “ser da coisa e seus atributos: a ideia”.
O saber poético em que culminou o saber esotérico, culmina, por sua vez, no saber filosófico. E ao situar no último momento, sem o qual os outros pouco ou nada são, a filosofia, o leitor decerto evocará, expressa como ela está pela “ideia”, os dois pensadores de extrema oposição que foram os dois filósofos da “ideia”: Hegel e Platão. Não se trata, porém, da ideia de Hegel, que é a ideia de Deus encarnado, do Cristo, cingido como está todo o pensamento hegeliano – sistematização acabada da filosofia nórdica ou moderna – a um penoso comentário
pari passu da missa cristã. A ideia, “ser da coisa e seus atributos” – ou ser e saber do ser – aparece aqui como uma interpretação anagógica das
sombras de Pascoaes. É pela poesia pontifical, pela função pontifical da poesia, que, por cima e para além das águas já mortas do hegelianismo, a ideia nos prende a Platão que também pôs nas sombras o patente e o secreto.
Orlando Vitorino