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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

TEÓFILO O JOVEM, 2

Rodrigo Sobral Cunha



Assente, por conseguinte, que houve um Teófilo romântico e um Teófilo positivista e que essa dualidade atravessará a sua obra, na qual se há-de contar decerto a República Portuguesa, importa agora reparar bem que durante uma década permaneceu ele em linha directa da obra de Vico, onde, segundo conta na Autobiografia, “recebeu a primeira iniciação”, precisamente pelo verdadeiro sentido da poesia.
Nessa Autobiografia Mental, com efeito, mostra Teófilo como da convergência do seu “estado de poesia” com o seu mais alto ideário resultou o esforço principal da sua obra:
“Foi na Ciência Nova, de Vico, que tive a primeira revelação poética dos Símbolos com que a Humanidade exprimiu com verdades as suas aspirações; Mitos e Fábulas, Alegorias, Tropos, Imagens, Lendas, Contos, são uma linguagem do sentimento que só o poeta moderno compreende, quando identifica sob a forma de Emoção a Síntese filosófica atingida pela inteligência.”
“Pelo trabalho intenso da Epopeia humana e coordenação simultânea de uma História Universal, apareceu-nos em toda a sua nitidez o pensamento determinativo ou a missão que se encerra em uma História da Nacionalidade Portuguesa. O sentimento nacionalista é servido pelo ideal poético e pela narração histórica. Na marcha da Civilização europeia é imprescindível o conhecimento da acção do Povo português iniciando pelos Descobrimentos marítimos a era da actividade pacífica; como Israel, como a Grécia, como a Holanda, Portugal cumpriu uma missão impulsora inolvidável […]. [9]
“Sob este aspecto, a História de Portugal muitas vezes me parecia como um hino; no estudo da História universal, apareceu-me em toda a luz o pensamento de Schiller, em uma das suas cartas: ‘Um espírito filosófico só pode particularmente interessar-se por uma nação quando ela lhe aparece como condição do progresso da humanidade inteira’.” [10]
Admitindo que a maior parte da obra de Teófilo Braga é consagrada ao desenho da Idade Humana – e há-de se ter reparado como colocou ele Portugal à proa da “era da actividade pacífica” –, a reflexão que aqui expomos sob o título “Teófilo o Jovem” procura clarear no campo do pensamento contemporâneo os resultados quase perdidos da experiência da convivência de Teófilo Braga com o pensamento de Giambattista Vico; particularmente nessa primeira década do percurso intelectual desse jovem das fragas do Atlântico, voltado então, na senda da Scienza Nuova, para as idades dos deuses e as idades dos heróis.
É, pois, sobre a juventude que queremos hoje falar.
Logo na introdução da Poesia do Direito, compreende-se o modo como é posto em jogo o projecto filológico da arqueologia antropológica de Teófilo Braga:
“As primeiras idades da humanidade, períodos de formação e de renovação, em que os grandes factos do espírito recebem forma, ou se transformam, têm o nome de poéticas, para designar a força misteriosa que se evolve em uma génese de vida”. [11]
Teófilo descreve assim a idade primordial, assim como os primeiros passos do vero heroísmo:
“A idade divina é a idade da infância. A alma flutuando entre spiritus e anima parece não haver-se destacado ainda completamente do spiritus. Ela então é criadora como Deus; a sua linguagem era a poesia, um diálogo de amor e júbilo expansivo com toda a natureza. O homem balbucia uma estrofe do canto universal, e cada nota desse concerto misterioso foi uma palavra da linguagem primitiva. É por isso que nas línguas primevas não se encontra o metro artificial, são todas ritmo, todas harmonia. A idade divina, ou da poesia da humanidade, é o período de um génesis estupendo e prodigioso. Cada olhar do homem em volta de si era um fiat, dava vida a tudo, porque a sua alma transbordava com vida.”
“Os primeiros poetas foram os primeiros sacerdotes, os primeiros legisladores. O verbo que exprimia o fas serviu também para exprimir o jus. No alto do Sinai, coroado de nimbos espessos, retalhados pelo coriscar dos raios, Moisés recebe a lei das mãos de Jeová; Orfeu e Anfião, os mais antigos legisladores no mito helénico, fazem compreender a lei pela magia do carmen. As feras perdem a sua braveza, os rios suspendem a torrente caudal para ouvirem atentos a Lira harmoniosa; era a força maravilhosa da associação que começava a fazer-se sentir. A Lira, segundo a prodigiosa indução de Vico, representa ‘a união das cordas ou das forças desses patriarcas, que fizeram cessar o emprego da força ou das violências particulares pela formação da força pública ou do império civil. A Lei foi chamada pelos poetas Lyra regnorum’.”
“Mesmo as ciências de contemplação superior, como a Filosofia, a Matemática, a Astronomia, serviram-se da linguagem cadenciada pelo número. Tales, Pitágoras, Bías de Priene e Empédocles foram também poetas.” [12]

Antecedentes: 1.ª parte
(continua)
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[9] Em 1947, cita Álvaro Ribeiro análoga síntese teofilina inclusa em As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa: “O génio e a missão histórica do povo português revelam-se na deslocação das civilizações do Mediterrâneo para o Atlântico, e pela audaciosa actividade marítima, com que iniciaram a era nova de civilização pacífica e industrial. Todas as investigações do nosso passado histórico devem dirigir-se a este fito: mostrar como logicamente cumprimos esse destino, encetando as grandes navegações, e como se deve perpetuar na marcha da humanidade o lugar de honra que nos compete” (As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, II, p. 345, in Álvaro Ribeiro, Dispersos e Inéditos, I, ob. cit., p. 318).
[10] “Autobiographia Mental de um Pensador Isolado”, in Quarenta annos de Vida Litteraria (1860-1900), Lisboa, Typographia Lusitana – Editora Arthur Brandão, 1902, pp. XV, LI.
[11] Teófilo Braga, Poesia do Direito [1865], in Poesia do Direito, Origens Poéticas do Cristianismo, As Lendas Cristãs, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda (Colecção Pensamento Português), 2000, p. 27.
[12] Poesia do Direito, ob. cit., pp. 40, 44.

2 comentários:

  1. «A idade divina é a idade da infância. A alma flutuando entre spiritus e anima parece não haver-se destacado ainda completamente do spiritus. Ela então é criadora como Deus».

    Nem de propósito! Esta passagem do artigo julgo que converge perfeitamente com um dos meus aforismos da última publicação, a nº 19. Segundo autores como Rudolf Steiner ou Max Heindel, o ser que nasce, nos primeiros tempos de infância mantém ainda um certo contacto com o mundo dito sobrenatural ou invisível, daí todos os mistérios da infância, todo um mundo de vivências onde a mais hábil psicologia (dita académica, que é a materialista) se sente escorregadia. Por aqui se vê que um dos traços mais fecundos da, entre nós, chamada Filosofia ou Pensamento Português é o de ter como primeiro pressuposto o de pensar o mundo com e para Deus. Quando o então jovem, bastante jovem, Francisco Moraes Sarmento conheceu pela primeira vez Álvaro Ribeiro, já no fim da conversa, este perguntou-lhe: Você acredita em Deus? Nós aqui todos acreditamos.

    Saudações extravasantes
    Eduardo Aroso

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  2. aliás Rodrigo Sobral Cunha:

    Cordiais saudações a Eduardo Aroso.

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