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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

NAS 101 CARTAS DE ANTÓNIO TELMO
















«A ocultação da natureza constitui um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo. A palavra de Heraclito 'a natureza gosta de esconder-se' nunca foi tão verdadeira como hoje.» Se é verdade que há um aparente desejo de regresso à natureza, no entanto, diz António Telmo, esse «sentimento da natureza tem hoje duas formas: é, por um lado, o sentimento estético da paisagem ou, mais precisamente, o sentimento fotográfico da paisagem; é, por outro lado, o sentimento higiénico das forças naturais, a pele queimada pelo sol, o ar puro dos pinheiros. Nestes dois aspectos se configura o desejo de um regresso à natureza numa humanidade lassa, fabril ou febril, burocrática, vazia.» E ainda: «A expressão 'regresso à natureza' tem o defeito de poder significar uma espécie de fuga ao stress, como se o homem fosse repousar do cansaço dos dias trabalhosos ou luxuriosos no 'retiro espiritual' de uma casa de campo ou de uma barraca montada sobre qualquer praia.» Sob a aparência esconde-se algo diferente: «a verdade é que esse aspecto e outros análogos que possa assumir o 'regresso à natureza' constituem mais uma forma de cisão radical entre o homem e a terra. Onde quer que vá encontrará sempre outros homens, tão mortos como ele, numa terra morta. O que realmente importa é o encontro do homem consigo na natureza sem ninguém, do homem que por uma transmutação interior se torna capaz de um contacto efectivo com aquilo que a natureza é: o lado oculto das coisas e dos seres.» (António Telmo, História Secreta de Portugal, 129-130)

Lendo o texto de António Telmo, podemos entrever que, por um lado, o homem se coloca face à natureza e não na natureza; daí o impulso que sente de 'tirar' uma fotografia, em vez de parar para contemplar; por outro lado, parece querer apenas tirar partido, de modo utilitário, da natureza para melhorar a sua saúde corporal. Se nenhum destes dois aspectos está errado em si mesmo, no entanto, trata-se de duas manifestações inferiores da sua relação com a natureza. A saúde corporal devia ser uma consequência natural da contemplação, isto é, este movimento do espírito, sabendo ver na natureza ou através da natureza a luz arquetípica do paraíso primordial, de que o homem guarda a recordação no fundo da sua alma, deveria fluir sobre a alma como um orvalho de bênçãos e a alma, por sua vez, dimanaria estes eflúvios sobre o corpo. Como o homem perdeu a capacidade para realizar a sua relação com a natureza a partir de dentro, procura realizá-la a partir de fora apenas.

Seyyed Hossein Nasr narra num dos seus livros um episódio que ilustra de um modo muito belo aquilo a que se refere o António Telmo a propósito da ocultação da natureza: passeava um dia com o seu mestre persa Tabataba'i - sábio e santo como são necessariamente os sábios - numa bela manhã num vale nos arredores de Teerão; tinham acabado de fazer as orações da aurora. A natureza parecia ter-lhes aberto o seu segredo sagrado e dela emanava uma forte presença espiritual. O mestre disse que bastaria que um ou dois 'profanos', isto é, uma ou duas dessas pessoas que não rezam nem têm o sentimento íntimo de comunhão com a natureza, aparecesse para que toda a ambiência espiritual desaparecesse ou se escondesse. Pouco depois aparecem justamente dois indivíduos com as características referidas pelo mestre e, de facto, de imediato toda a ambiência paradisíaca desaparece, toda a beleza sagrada se oculta. O mestre, sorrindo, disse que é o que acontece quando aqueles que são estranhos (a expressão persa refere-se àqueles que não pertence ao núcleo mais íntimo da família) entram na parte mais interior da natureza. Ela fecha-se, escondendo deles o seu sagrado segredo.

O homem sabe sempre, ainda que apenas como um pressentimento no mais fundo de si, que a natureza é o templo por excelência e o lugar, se souber bem olhar, da teofania: uma realidade sacramental, hierática, simbólica, presencial. Por isso, para além do encontro consigo mesmo, referido por António Telmo, e partindo do dito tradicional (de Elêusis ao Islão) "aquele que se conhece a si mesmo conhece o seu Senhor", podemos ainda entrever outro encontro: o da criatura com o seu Criador. Seria necessário, no entanto, que o homem pudesse ainda saber-se, conceber-se, sentir-se criatura. Mas o orgulho e a filautia cegam-no, fechando-o no pequenino mundo das suas fantasias, no mundo cutural, num mundo que é já apenas uma remota criação de uma criação de uma criação ou um sonho de um sonho de um sonho. O cultural não se opõe, como falsamente se diz, ao natural, o cultural deve ser a assumpção transcendentalizante do natural - como a igreja românica prolongando sobrenaturalmente o cimo do monte, elevando-o da natureza à sobrenatureza, no movimento complementar ao da criação divina em que a sobrenatureza se 'naturaliza' ou 'mostra', por assim dizer, na natureza, pela natureza. Por outras palavras: o Criador desce às criaturas revelando-se pela natureza e o homem, criatura suprema, ascende ao Criador sobrenaturalizando a natureza, dirigindo ascensionalmente a barakah da criação.

Esta é a função sacerdotal, por excelência, da humanidade, função com que foi sacramentada desde a eternidade, mas função que cada homem, com essa vocação, deve actualizar nos sacramentos das religiões ou das iniciações, de modo a estabelecer o limite dentro do qual poderá ser pontifex sem correr o risco de profanação ou impiedade.
Pedro Sinde
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1 comentário:

  1. Leio, com muita alegria, este mavioso texto do Pedro Sinde, tomando o maravilhoso excerto de uma das obras mais importantes dos últimos 50 anos, a História Secreta de Portugal, de António Telmo. Gostaria de destacar estas palavras do Pedro Sinde «O cultural não se opõe, como falsamente se diz, ao natural, o cultural deve ser a assumpção transcendentalizante do natural - como a igreja românica prolongando sobrenaturalmente o cimo do monte, elevando-o da natureza à sobrenatureza, no movimento complementar ao da criação divina em que a sobrenatureza se 'naturaliza' ou 'mostra', por assim dizer, na natureza, pela natureza».

    Um abraço ao Pedro Sinde
    Eduardo Aroso

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