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sábado, 25 de fevereiro de 2012

SABEDORIA ANTIGA, 20


Os Cinco escudetes no Brasão Português

Alexandra Pinto Rebelo

É curiosa a chamada de atenção de Maria de Lourdes Rosa, na sua obra Santos e demónios no Portugal medieval, em relação ao significado dos cinco escudetes no brasão de Portugal.

Na segunda redacção da Crónica de 1344, lê-se: “E, despois que el rey e o cardeal ouverom todo seu preyto firmado, e ao tempo que lhe avia de mandar a carta, como já ouvistes, desvestyosse el rey de suas vestiduras e disse: - Querovos mostrar, dom cardeal, em como eu som herege. E entom lhe mostrou todas as feridas que ouvera em seu corpo, dizendo e assignando quantas e quaaes feridas ouvera nas batalhas e quaaes nos combates e quaaes nas entradas das villas que tomara aos mouros”.

Este episódio refere-se ao encontro de D. Afonso Henriques com o Cardeal enviado por Roma para fundamentar o seu direito ao Reino. Despindo-se, D. Afonso mostra ao Cardeal as feridas por si sofridas nas várias batalhas pela posse de Portugal. No corpo do Rei, as cicatrizes formam uma espécie de mapa sagrado do território, mitificado pelas chagas. Esta identificação mística, quase, do corpo do Rei com o Reino é a sua sacra justificação para o direito às terras conquistadas.

Ao que parece, esta versão circularia oralmente ainda em vida de D. Afonso Henriques, tendo aparecido em textos escritos de meados do séc. XIV a fins do séc. XVI. Em 1380, o Bispo de Lisboa, D. Martinho, apresenta a mesma justificação ao rei de França, Carlos V: os escudetes estão assim dispostos no brasão de Portugal, visto representarem as cinco feridas que o rei recebera no seu próprio corpo, com a mesma disposição.

A identificação do corpo do guerreiro com as suas armas é muito conhecida. Pelo menos desde a Alta Idade Média era costume, aquando da morte de um nobre (querendo isso dizer, por tradição, guerreiro), as suas armas, ou seja, o seu brasão, ser invertido, quebrado, ou ocultado por uma faixa negra. Ainda há uma dezena de anos, talvez, assisti à ocultação de um brasão que encimava a porta principal de uma casa senhorial, através de um pano preto, pela morte do seu proprietário, em Castelo Branco.

Nesta versão da história, existe uma primeira identificação bélico-mística do corpo do Rei com o do Reino. Na guerra tornada Santa, as feridas surgem no corpo de Afonso, tal como estigmas. Estigmatização obtida, não pelo êxtase, mas pela espada, prova corporal, a única, possivelmente, condizente com a classe guerreira. A segunda identificação, consistirá na representação dessas mesmas feridas no brasão.

Daqui resulta um triplo movimento: Cristo – Rei/Reino – Brasão. Mas a lógica deste movimento é um pouco diferente daquela que nos é habitualmente apresentada.

As chagas do brasão português não serão, desta forma, uma imitação directa daquelas de Cristo. Neste triplo movimento, existem elementos desdobrados ou multiplicados. Afonso será aquele que se torna eleito pela sua gesta, num acto de confirmação (ou eleição) depois da auto-eleição. O seu corpo, desdobrar-se-á, igualmente, entre o corpo-nação, mapa de batalhas físicas, históricas, e aquele coincidente com o corpo-universo de Cristo. As chagas, em escudete, terão então um duplo remetente: o do corpo físico da nação, subsumido no corpo do primeiro Rei, e o de Cristo.

Voltando ao início do movimento triplo, Cristo será, nesta lógica simbólica, também ele desdobrado: a sua quíntupla representação física, adquirida como representação de escatologia universal, projecta-se agora, em imagem e poder, sobre um reino material em particular, Portugal.

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