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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

ESTRAVAGANCIAS II, 3













Os Raposões

Cynthia Guimarães Taveira


Os raposões do filme “Sonhos”, de Akira Kurosawa. Que fazem eles? Naqueles dias únicos nos quais, ao mesmo tempo, faz sol e chove, sai um cortejo de homens-raposas em ritual pela floresta. São eles os iniciadores, de uma criança que os espreita quando é proibido espreita-los. Que fazem eles para além disso? Dão alguns passos, param e olham fixamente. A única diferença é essa: olham simplesmente com a profundidade dos contos de fadas. Essa profundidade do olhar está ligada aos sentidos: o gesto como tacto, suspenso no tempo e no espaço, o som que pára em uníssono com esses gestos, o olhar que atravessa várias camadas do ser. Esse olhar é de amor. Mas não de sentimentalismo, como se existisse uma espécie de amor que, na sua essência, nasce enlaçado, misturado com a verdade. Uma espécie de verdade implacável que atravessa os seres em voos internos, deixando para trás camadas e camadas superficiais até ao cerne da própria existência.

Os outros são mistérios indecifráveis para nós. Na superfície são máscaras, mesclados de psicologias, historietas, vulgaridades, animalidades, confusões de imagens. No primeiro olhar os outros são sempre surrealistas no absurdo. Como se o que fosse verdadeiro tivesse necessidade de se camuflar em teatro.

Mas quando chove e faz sol, nesse tempo indefinível em que o fogo e a água se misturam na atmosfera, em que é fácil luzir o arco-íris, como aliança entre o visível e o invisível, esses raposões, homens de olhar apurado, saem pela floresta em ritual que é apenas a vivência do mito do próprio momento. Não há actualização do mito nesse instante porque o mito é o próprio instante em que chove e faz sol, é a actualização da actualização. Esse é o momento tradicional por excelência, porque mostra, revela, confirma que a tradição está viva no tempo sem tempo. Mostra que a Vida está viva, que o não tempo é, afinal, todo o tempo do mundo. Daí a proibição de os observar nesse instante. Toda a proibição é um convite em simultâneo, como o paradoxo de chover e fazer sol.

A Tradição, estranhamente, nesse conto, aparece como a possibilidade e a capacidade de contemplar. Mas a contemplação é já morte e é, ao mesmo tempo, a contemplação de um mistério. Um mistério mudo. Um mistério que se aproxima de nós por uma intuição tão forte que toca, literalmente, porque em corpo, a raiz da existência. Mas uma existência que é toda potência, toda essência à beira de uma explosão em manifestação. O corpo, é afinal, potência de manifestação e não manifesto ainda. É nesse limbo, nesse limiar que a exigência de morte aparece. Porque só pela morte se pode dar a manifestação. Nesse sentido, numa primeira volta, o corpo que temos é morto e só numa segunda volta se torna vivo.

Uma das formas pelas quais a Tradição se revela, se mostra, mais do que isso, regressa em Vida à vida, é pelo olhar, o real olhar, porque o olhar é o sentido de ausência (na medida em que há um esquecimento do eu) e um sentido apurado de presença no mesmo instante.

Creio que hoje poucos escutam e poucos ainda mais olham. Mas um olhar que é todo o ser projectado para a frente, para a imagem que contemplam: um olhar que vasa na imagem toda a máscara que somos, todas as camadas, todos os pensamentos, todos os sentimentos, todas as intuições que residem no coração. Um olhar que desagua como um rio no oceano da Tradição, um oceano sem dimensões por conter todas elas.

Nesse pequeno instante em que o olhar desagua, então a Tradição toma conta de nós. Adopta-nos como uma mãe. Torna-nos sua parte, seu instrumento sem a mácula do materialismo puro. Nem se poderá falar de sintonia porque não há partes dispersas nesse gesto (que é estar e ser) que acontece simplesmente. Há uma verdadeira união. Um regresso ao Uno. Um acordo, um acorde musical, um acordar, um coração a dar. Um pelicano, afinal, daqueles antigos que arrancavam do seu coração parte do seu ser, e como em pó de projecção, transmutavam outros na mesma subtileza, na mesma natureza, nas mesmas propriedades. Ouro gerando ouro em gerações múltiplas.

1 comentário:

  1. 1-Este texto é um desses momentos de ouro.
    2-Sempre que se fala de Oriente neste blog, há um silêncio geral. Foram os portugueses que uniram o Oriente ao Ocidente, em termos exotéricos (mas necessários). Silenciar o Oriente é silenciar a nossa história naquilo que teve de mais universal.

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