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terça-feira, 5 de julho de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 23














Postais católicos

Alexandra Pinto Rebelo

O catolicismo tem provocado reacções extremas desde a sua origem. A maior parte delas são mais do que justas. Ainda há poucos anos João Paulo II pedia desculpa pelos pecados da igreja. Foi um pedido simpático, vindo de um Papa simpático. O documento “Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado” inumerava alguns itens de mea culpa: as cruzadas e a Inquisição (pecados cometidos em nome da Verdade); os grandes cismas dentro do cristianismo; campanhas de depreciação contra o povo judeu; o não respeito pela diversidade religiosa e cultural.

Se pensarmos bem nalguns destes pecados percebemos que, sem eles, a Igreja católica seria hoje, na melhor das hipóteses, uma religião praticada por poucos; na pior das hipóteses, seria uma religião acabada, praticada por ninguém.

Refiro-me muitas vezes, nas minhas conversas, à violência extrema da conversão forçada dos europeus. O mundo antigo viu-se despojado dos seus locais de culto, muitas vezes milenares, dos seus rituais, dos seus deuses. No paganismo não existia uma relação intelectualizada com o divino. Os rituais apelavam à intensidade dos sentidos, à projecção física no contacto com o sagrado, à comoção pelo mistério que daí vinha. Nesse sentido era um tecido religioso mais completo do que o cristianismo.

Há uns dias entrei na igreja da Senhora da Saúde, no Martim Moniz, em Lisboa. Nunca lá tinha estado, não sei muito bem porquê. As pessoas entravam e saíam, não como espectadores desinteressados, mas como quem sabia o que queria. No altar em frente da porta, muitos vasos com plantas substituíam as usuais imagens de santos. Parecia que um deus da vegetação tinha invadido o principal local de culto, recebendo as orações e as dádivas dos devotos. No lado direito do altar, estava uma escultura enorme da Senhora da Saúde sobre um suporte que me pareceu um andor. A igreja, de dimensões muito reduzidas, fazia com que a imagem parecesse maior, dominando toda a sala onde indianos, africanos, portugueses lhe pediam, decerto, algo em troca do seu culto (o Martim Moniz voltou a ter esta saudável mistura de povos que caracterizavam, na antiguidade, as principais cidades do Mediterrâneo). Havia ali qualquer coisa de antigo. Mais. Havia ali qualquer coisa de profundamente pagão como se os alicerces mais profundos pertencessem à antiga religião e as imagens apenas tivessem sido actualizadas para o cristianismo latino. A estátua da Senhora da Saúde tem cabeleiras postiças que vão sendo trocadas, tem roupas faustosas, como qualquer deusa, usadas consoante a ocasião, o seu andor já a terá levado pelos limites do seu território, em procissão, tal como outros transportaram a imagem de Artemisa, em Éfeso. Aquela estátua, por mais que a queiram tornar apenas numa mnemónica de Maria, é bem mais do que isso. É uma estátua “viva”, de alguma forma. Uma estátua mágica incorporando em si o divino, cumprindo a sua função enquanto tal.

Quem, como eu, advoga a liberdade de culto, não pode deixar de sentir uma emoção em reverência, pela religião antiga, pagã (a religião dos campos, mas também das cidades), resistente a tudo, metamorfoseada em santos e templos, mas ainda viva (tão viva quanto os seus ídolos) respondendo às necessidades mais íntimas dos seres humanos.

Quando se fala em pecados da Igreja deve-se nomear quem os praticou. A maior parte dos crentes, que apenas querem comunicar com os seus “deuses”, poucas culpas terão disso. Possuem um impulso religioso particular, cuja origem se perde nos tempos, não constituindo isso crime algum só por si. À parte disso, pretendem somente viver em paz, como a maior parte dos crentes de todas as religiões.

Por uma vocação monoteísta, muitos dos estudiosos sempre evocaram a influência judaica, cristã e muçulmana na cultura portuguesa. Poucos tiveram a ousadia de colocar o paganismo como o outro elemento para a formação da nossa cultura (talvez o mais forte, por ter sido o primeiro). Sejamos nós, tal como eles, suficientemente audazes para, também por aí, dirigirmos os nossos estudos. Ou, pelo menos, a nossa curiosidade.

4 comentários:

  1. Vou tentar simplificar as ideias para a próxima. Agradeço a sua opinião.
    Alexandra Pinto Rebelo

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  2. Nos meus parcos dotes mercurianos, creio ter entendido o que a Alexandra quis dizer. No entanto, vem a propósito, sempre partilhei daquele ponto de vista artístico que diz mais ou menos isto:é ao leitor/ouvinte/espectador que cabe o esforço da compreender a mensagem do artista, sob pena deste se limitar a si mesmo na sua expressão. Concessões? Há quem as faça. Outros não, talvez em menor número. Por exemplo, Miguel Torga – que conheci também pessoalmente – nunca fez concessões.

    Os meus cumprimentos
    Eduardo Aroso

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  3. consegui chegar ao fim...ulterioare .acho

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