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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 118


A Nuvem

Cynthia Guimarães Taveira

Vagueando por entre canais televisivos, antes fossem os de Veneza, eis que encontro amantes de livros em conversa. Parei para ouvir. Falavam das novas tecnologias -- as tecnologias são sempre novas, acabadas de nascer, só no canal História é que, de vez em quando, falam das velhas mas, por regra, as que interessam são as novas, belas, prometedoras e infalíveis. Os livros dentro de um e-book estavam sendo apresentados como uma maravilha: podíamos transportar um biblioteca inteira debaixo do braço e, em vez de ter de erguer o mesmo braço, num esforço pesado querendo contrariar a força da gravidade, para passar a página, bastava um toque, digital, caminhando-se, assim, de página em página, de uma forma muito mais fácil, muito mais cómoda. O problema, no entanto, segundo disseram, estava na queda, como se o problema não estivesse sempre na queda: estou aliás convencida de que, há muitos anos atrás, a força da gravidade deveria ser muito menor do que é hoje, menires, pedras do Egipto, pirâmides americanas poderiam ser erguidas com mais facilidade. Enfim, o problema estava na queda porque, ao que parece, o filho de um desses amantes de livros tinha deixado cair ao chão um e-book e, assim, muito mais rapidamente do que o incêndio da biblioteca de Alexandria, o alegre conversador tinha perdido uma biblioteca inteira não tendo o e-book sobrevivido aos 30 centímetros que, segundo as suas palavras, o separavam do chão. Imediatamente o apresentador pegou num livro e, deixando-o cair à mesma altura, demonstrou que um livro normal era bastante mais resistente. Ironias…
Mas o melhor ainda estava para vir: os aficionados da grande tourada que são as novas tecnologias poderiam, com um serviço novo (claro, novo) da Google, possuir uma nuvem. E o que é uma nuvem? Uma nuvem é um espaço na Internet onde se guardam livros e também toda a espécie de documentos. Na nuvem podem conviver lado a lado os nossos papéis, as nossas facturas mensais, as nossas fotografias de infância, os nossos apontamentos, os nossos livros, iria mesmo mais longe, a nossa casa. Finalmente temos uma casa nas nuvens. Pensei de mim para mim: e se chover? Cai-nos a casa em cima?
Dizia também uma amante de livros: “as novas tecnologias vão permitir às crianças aceder de uma forma muito mais lúdica aos livros” e, com aquela alegria de menina marota, ergueu vitoriosa o seu e-book e mostrou-nos como podíamos brincar com as imagens ilustradas da Alice no País das Maravilhas mudando-as de sítio. Fiquei deveras triste por já ser grande: quem me dera poder ir ao Museu de Arte Antiga e brincar com aquelas imagens todas: colocar o Santo Antão em cima do Paráclito dos Painéis, eis o meu sonho!
Enfim, ao passarmos a ter livros nas nuvens a realidade torna-se também muito mais nebulosa ao ponto de falarmos erradamente: um e-book não é um livro, é outra coisa. Um e-book não é uma biblioteca, é outra coisa, um e-book ilustrado não é uma ilustração, é outra coisa. Chamem-lhe o que quiserem mas não lhe chamem livros porque não são. Um livro é um objecto feito de papel e tinta. Tem páginas, tem forma, tem peso e costuma estar dentro das casas, das livrarias ou das bibliotecas e as nuvens estão no céu.

1 comentário:

  1. Há poucos anos estive no Chipre. Como registo de memória, levei uma máquina fotográfica digital. Algures em Nicósia (possivelmente a capital mais feia da Europa), a máquina fez um som semelhante a uma pequena explosão. Todas as fotos tiradas até aí dissolveram-se numa verdadeira obra ao negro sem progressão. A partir daí, aprendi que os mundo virtuais são engraçados, cómodos, fascinantes, mas parecem estar sempre a um pequeno passo da sua dissolução. Agradeço o teu texto, Cynthia.

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