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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 109


Dias de Luz
Cynthia Guimarães Taveira

Há poucos dias acabei de ler um romance de Carlos Ruiz Zafón intitulado “Marina”. Nele, a Barcelona que eu conheci é uma outra Barcelona, um verdadeiro cenário de um filme “noir”, um ambiente gótico, às vezes macabro, uma permanente chuva e escuridão, uma procura da luz no meio das vísceras em ferida da cidade.
É curiosa a capacidade transmutadora dos autores quando fazem leituras sobre a cidade. Para mim, Barcelona, quando lá estive, pareceu-me uma cidade com luz e com muita cor; para o autor, é o oposto.
Recentemente, vi a apresentação do filme português “O filme do desassossego” e, nessa apresentação, Lisboa aparece quase sinistra, com os prédios amontoando-se numa perspectiva impossível sob um céu de chumbo. Para mim, Lisboa é sobretudo luminosa, um pouco triste em certos recantos mas nada que se pareça com essa imagem tenebrosa do filme. A cidade, quem sabe, é um espelho que reflecte o nosso estado de espírito.
Tudo isto para falar do sonho.
Nesse livro, «Marina», os sonhos da personagem principal são recorrentes e mais uma vez me deparei com uma incapacidade pessoal: não consigo acreditar nos sonhos quando estes aparecem a pontuar a ficção, quer de uma obra literária, quer de um filme. Sei que a incapacidade é minha e um pouco paradoxal, pois acreditando na ficção já não acredito na ficção dentro da ficção. E porquê? Quando temos atitudes irracionais talvez seja bom pararmos um pouco para pensar, para descobrir o porquê dessa atitude. Assim, cheguei à conclusão que o espaço do sonho, estranhamente, é uma espaço de verdade, mais até do que o verdadeiro real. O sonho é o que de mais espontâneo nós temos e, por isso, o que de mais incontrolável nós temos. Quando se cria um sonho a partir de elementos do real e se conjugam esses elementos com uma racionalidade e um propósito implícitos perde-se a realidade desse mesmo sonho. Subjuga-se o sonho à nossa vontade quando, na sua essência, ele está para além da nossa vontade e, mesmo quando interpretamos os sonhos de maneira a sossegar o espírito, há sempre alguma coisa que nos escapa, porque a racionalidade é que é irreal e a verdade total está no sonho irracional.
Tentando explicar esta perspectiva a uma amiga, ela relatou-me um estranho sonho que tivera: sonhara que entrava numa cidade da América Latina e os prédios estavam cobertos de esculturas. Casas e pessoas tinham cores tão vivas que quase ofuscavam. Dentro do sonho, a minha amiga saia da cidade e, já longe, notou que se tinha esquecido de um objecto numa das casas. Voltou à cidade para recuperar o objecto e, quando lá chegou, verificou que a cidade e as pessoas eram afinal de papelão. Ela não podia entrar de novo naquele sonho porque, de alguma forma, o “tempo” do sonho tinha acabado. Achei aquele sonho extraordinário. Os sonhos tinham um tempo certo para acontecer, tinham um nascimento precioso, verdadeiramente espontâneo, mas fora dessa espontaneidade deixavam de poder existir como eram. Era o próprio sonho da minha amiga que explicava o meu cepticismo face à ficção dentro da ficção, como os sinais da matemática mas ao contrário: “mais” com “mais” dá “menos”, “menos” com “mais” dá “mais”. A lógica do real e do imaginário eram o contrário da lógica. Surpreendente!
Mas verdadeiramente surpreendente foi um episódio que me aconteceu há uns anos: morava ainda noutra casa que tinha uma grande varanda da qual se podia ver uma grande avenida em declive. Nessa manhã fui à varanda e, qual não foi o meu espanto quando reparei que no parapeito e no chão se passeavam dezenas de aranhas pequeninas. E fios de teias estavam suspensos no ar. Não era um ou dois fios, eram imensos fios. E olhando para avenida notei um brilho diferente nos telhados dos prédios: brilhavam ao sol como certas zonas do mar iluminadas. Depois percebi que eram milhares de teias que, esticadas, cobriam os telhados e, com a brisa e a luz dos raios solares, brilhavam a um ponto tal que parecia um sonho. Telefonei a uma amiga a contar o sucedido. Apenas a mãe dela, que se encontrava na baixa, tinha dado pela concentração excessiva de aranhas. Não ouvi falar do sucedido a mais ninguém. Lembro-me de olhar para baixo da varanda e de ver as pessoas a passar tranquilamente na rua como se nada estivesse a suceder. E o sonho presente mesmo acima das suas cabeças. Pensei que andávamos tão obcecados com o pseudo-real que, quando o sonho nos aparecia nesse pseudo-real, nem nos apercebíamos. O fenómeno ali estava à vista de todos e ninguém o viu. Não foi notícia no jornal. Era um “mais” com um “menos” que dava “mais“. Era mais realidade e, afinal, permanecíamos no sono.
Hoje, estou a ler um livro que é um sonho, chama-se “A Tapeçaria do Sinai” de Edward Whittemore. Nele não há sonhos ficcionados. A ficção fascinante chega por si. É um sonho que sonho enquanto espero que, um dia, o sonho me entre pelos dias dentro, como as aranhas e as suas teias inexplicáveis. Ainda bem que não há explicação para tudo.

2 comentários:

  1. Boa Noite Cynthia

    O génio Português flutua sobre as águas, as crises e os apertos são próprios das matérias sólidas que pela sua densidade se conformam em massas mudas e cinzentas.
    Mas,em Sesimbra, 75 anos após a morte de Fernando Pessoa, ainda há sopro que se eleve.

    No próximo Sábado dia 27 de Novembro, pelas 15.30, na biblioteca Municipal de Sesimbra, teremos uma apresentação de Carlos Otero sobre Fernando Pessoa. "Pessoa na 1ª pessoa"

    Até breve
    Bj.
    Roque Oliveira

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  2. Obrigada pela informação Roque, já está publicada a par de uma outra.

    Até Breve!

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