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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

SOBRE A REPÚBLICA, 100 ANOS DEPOIS



Joaquim Domingues

(Comunicação de Sábado, dia 30 de Outubro, apresentada na Biblioteca Municipal de Sesimbra no âmbito da série de colóquios "Sobre a República, 100 anos depois") .


Da república pombalina à república aquilina

I
Grato pela oportunidade que me foi oferecida de participar na reflexão sobre o significado actual da proclamação da República há cem anos atrás, desejo com ela homenagear o Dr. António Telmo, cuja presença se mantém viva nesta como noutras iniciativas. Nesse pressuposto anuí ao convite recebido através do Amigo Rodrigo Sobral Cunha, altura em que surgiu, de improviso, o título que veio a ficar registado no programa. O qualificativo aplicado à república era no entanto assaz bizarro, pelo que tentei explicitá-lo melhor agora, mediante as duas perspectivas representadas pelas aves simbólicas que são a águia e a pomba.
Como é sabido, a palavra república, para além de outras acepções particulares, significa, de raiz, o bem comum, aquele núcleo de interesses que move o conjunto de um povo e que ao Estado cumpre promover no âmbito das suas competências. Aparece já nos escritos dos Príncipes de Avis, quando as noções do direito romano se impunham às do germânico, designadamente as do código visigótico, e consta do elucidativo título de Diogo Lopes Rebelo, De Republica Gubernanda per Regem, ou seja, Do Governo da República pelo Rei, um incunábulo saído em Paris nos fins do século XV. Assim se reconhecia ao rei, sem prejuízo das prerrogativas do clero, da nobreza, dos municípios e das corporações, a missão de velar pelo conjunto da grei, representada nas cortes, com o poder de confirmar e destituir o soberano.
Não haveria pois contradição no uso de expressões como monarquia republicana ou república monárquica, subentendendo que o bem comum depende dos princípios simbolizados na coroa, cujas hastes convergem do aro para a esfera, encimada pela cruz, segundo o modelo tradicional. Com efeito, a doutrina prevalecente entre nós, e vitoriosamente confirmada em 1385 e em 1640, era a de que todo o poder é de origem divina, vindo ao rei mediante o povo; a verdadeira razão da reverência que os Portugueses lhe prestavam, pois nele viam a presença ou a representação de um princípio sobrenatural e sobre-humano, como carisma da função real. Só por anomalia, sanável através da reunião dos três estados, se concebia a existência de incompatibilidades mais do que circunstanciais entre os interesses da república e os do monarca; havendo apenas memória de um caso em que, mercê da intervenção de Roma, o rei foi destituído em nome do bem comum.
O aparecimento do movimento republicano na segunda metade do século XIX, maugrado as interferências de fora parte, deve entender-se neste contexto; ele correspondeu à assunção por alguns portugueses duma irremediável ruptura entre a instituição monárquica e a república, ou seja, os interesses da grei, o bem comum ao clero, à nobreza e ao povo, do qual se destacara entretanto a burguesia, cada vez mais poderosa desde que cessara a distinção legal entre cristãos-velhos e cristãos-novos. A gravidade do conflito ficara patente na luta fratricida entre os Portugueses, divididos em dois partidos, encabeçados pelos filhos varões de D. João VI, personificando orientações divergentes e mesmo inconciliáveis acerca da organização política e social do País. A vitória de um dos partidos não sanou as feridas, porque persistiu a diferente ponderação dos valores; de modo que a realeza, diminuída já no seu conceito desde 1822, se limitou a sobreviver, mais por inércia do que por acção ou omissão dos titulares, cuja perda de carisma era paradoxalmente simbolizada na coroa, pousada sobre uma almofada, a par do ceptro, que ninguém empunhava mais.
Perdida a esperança de que o rei salvasse a república da desagregação que a corroía, julgaram alguns que a burguesia seria capaz de formar a oligarquia que imprimisse ao País um rumo idêntico ao que se supunha garantir a felicidade de outros povos. A expectativa frustrou-se, porém; à falta de um princípio unificador, multiplicaram-se os grupos e as facções (federalistas, socialistas, democráticos, anarquistas, tradicionalistas…), sem acordo quanto aos reais interesses de Portugal. Concebido e organizado como partido, ou parcialidade, o republicanismo logrou derrubar a monarquia – não sem promover ou sancionar actos de extrema violência, onde avultou o assassínio de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe –, mas foi incapaz de reunir os Portugueses, que viveram em estado de guerra civil larvar e tiveram de render-se enfim às forças armadas, sob cuja ameaça ou tutela viveram quase todo o século XX.
A meu ver, não há, pois, razões bastantes para celebrar um episódio do passado que, em rigor, assinala apenas mais um passo no longo processo da degradação dos valores que identificam o País e o Povo, os quais não perderam a vigência senão no tempo e no modo, permanecendo incólumes na sua essência. Convicção que nada tem de singular, pois animou homens em cuja grandeza nos podemos rever com orgulho e sobretudo com esperança. Tudo depende de crermos, querermos e sabermos realizar o que, apesar de sistematicamente ignorado pelos detentores do poder, está garantido em obras como as de Bruno e Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro e Fernando Pessoa, Afonso Botelho e António Quadros, Orlando Vitorino e António Telmo.

II
Mas república pombalina, porquê, afinal? Admitindo que a expressão seja pouco feliz, remete no entanto para um aspecto que tenho por determinante. De pouco serviria descrever e interpretar uma realidade como a que é objecto destes colóquios sem tentar compreender onde ela radica e esclarecer as causas do persistente desvio do rumo próprio do nosso Povo e do nosso País.
A tese que sustento é a de ter sido no período pombalino que se geraram as mudanças sob cujo signo ainda hoje vivemos, pelo que o modo como o republicanismo tem sido entendido e praticado para ele remete em última instância. Basta atentar no especial apreço pela figura do marquês de Pombal demonstrado pela generalidade dos intelectuais e políticos identificados com a ordem de valores dominante para considerar pertinente a hipótese. Lembro apenas o relevo dado por Teófilo Braga em 1882 ao seu centenário na preparação do clima mental que conduziu ao fim da monarquia, bem como o lugar central do monumento que celebra o ministro de D. José na capital, colocado em posição dominante sobre a cidade e sobre o dedicado ao monarca, erguido na mesma Rotunda onde se entrincheiraram os revoltosos de 1910.
Trata-se de aspectos simbólicos, é certo, mas por isso mesmo significativos do modo como os republicanos entendiam a realidade sobre a qual se propunham agir, como quem reatava um processo remontando ao período histórico de que Sebastião José de Carvalho e Melo foi, sem dúvida, a figura mais representativa. Como asseverou Teófilo Braga, «tudo quanto houve de vida e de iniciativa na sociedade portuguesa concentrou-se nesse homem eminente, que reduziu, mau grado o seu absoluto regalismo, a realeza a uma situação subalterna, a um fetiche teatral» (Os Centenários como Síntese Afectiva nas Sociedades Modernas, Lisboa, 1884, p. 182). Ora, o que o ministro de D. José impôs, de modo inequívoco, foi a razão de Estado, princípio abstracto de que nem o rei se podia reivindicar, por corresponder a algo de impessoal, cujo paradigma era dado pelas ciências e tinha no traçado geométrico da cidade reconstruída a partir das ruínas do terramoto a impressiva imagem.
Compreende-se, por isso, que nenhuma realização fosse mais encarecida pelo Marquês e pelos muitos clérigos, nobres e burgueses que o admiraram e secundaram, do que as reformas do ensino, em especial da universidade, pólo da revolução espiritual que fez primar a razão natural, como então se dizia, sobre a razão iluminada pela fé. Para isso foi mister condicionar a presença da Igreja nesse domínio, mormente a das ordens regulares, o que explica a hostilização da Companhia de Jesus; mas também dar ao Estado um controlo quase absoluto, mais severo que o da Inquisição, sobre a vida intelectual, que por vezes se estendeu mesmo às questões religiosas. A mudança foi de tal ordem que as reacções subsequentes à morte de D. José, voltadas sobretudo para sanar pendências de ordem pessoal, não alteraram a legislação relativa ao ensino, embora aliviassem a vigilância sobre as publicações.
Ao pôr em causa a ordem tradicional, em nome de uma razão que, além dos créditos científicos e técnicos, se empenhara na crítica das doutrinas e práticas religiosas, bem como da ordem social consuetudinária, o iluminismo pombalino abriu caminho ao ascendente poder da burguesia, por via de regra descomprometida de qualquer tábua de valores particular. Ela irá protagonizar os acontecimentos do nosso século XIX e preparar o fim da monarquia, numa sucessão de passos que se diria inelutável. Por isso o novo regime representou o culminar de um processo cuja génese remonta ao período pombalino, do qual, a meu ver, não saímos ainda, como o confirma o esforço oficial para celebrar um episódio sem grandeza, fasto apenas na perspectiva de uma parcela, a menos autêntica, da sociedade portuguesa.
Com todo o respeito e apreço que cada pessoa nos deve merecer, é fora de dúvida que o republicanismo, tal como se impôs, primeiro por via intelectual e depois a partir das alavancas do poder político, constitui uma flagrante contradição nos termos, visto ser de raiz e na prática a expressão de interesses particulares. Não estão em causa as boas ou más intenções deste ou daquele, tão certo é que um homem como Teófilo Braga, por duas vezes Presidente da República, nunca visou satisfazer interesses pessoais e morreu quase esquecido e abandonado, mas convicto de que o principal factor da mudança social fora e deveria continuar a ser a doutrinação, a partir de princípios superiores e reconhecidos, como entendia serem os do positivismo. Outros porém tinham entretanto compreendido que não era possível manter ou gerar a coesão social a partir de uma doutrina abstracta, alheia e hostil aos valores da nossa cultura, defendendo antes um republicanismo radicado, que é como quem diz, nascido das tendências próprias da sociedade portuguesa, avessa a qualquer forma de tutela.
Julgo que Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno foram os que melhor compreenderam essa verdade, apesar do radicalismo das posições iniciais, de que corajosamente se foram demarcando, de modo a advertir os que se mantinham noutra rota, cujo fracasso se adivinhava já nas dissenções que muito antes de 1910 dividiam os republicanos. Justifica-se portanto que tivesse sido inspirado na orientação dada às suas obras que surgiu em 1911 o movimento da Renascença Portuguesa, cujo fito era precisamente o de imprimir carácter de autenticidade nacional a uma política cujo facciosismo, de tão ostensivo, alienava tanto as simpatias populares como as de muitos intelectuais e burgueses. O facto de ainda hoje ele servir de referência, mesmo entre as mais novas gerações, parece-me um dos melhores argumentos em prol do projecto renascentista, menosprezado pelos homens do poder, antes e depois tanto do 28 de Maio como do 25 de Abril.

III
Faço jus aos organizadores destes colóquios interpretando o mote ‘Portugal Renascente’ como apontado menos a celebrar o passado do que a pensar o presente e atentar no futuro, que tal é a responsabilidade maior de cada um de nós. Daí julgar pertinente a reflexão acerca duma característica estrutural do tempo em que vivemos, mantendo-nos amarrados ao pretérito, reféns de valores, metas e modelos esgotados. Por estranho que pareça, os destinos do País estão nas mãos de homens que se revêem em concepções do mundo e do homem que diríamos intervalares, pois tiveram a sua génese há duzentos e cinquenta anos e há um século deram o passo decisivo para eliminar ou neutralizar os obstáculos à sua plena imposição a partir das instituições do Estado.
Se assim é, como resulta da idêntica prioridade atribuída à ciência e à técnica, do privilégio dado às questões económicas e financeiras, do controlo exercido sobre a cultura segundo critérios sociológicos e pragmáticos, bom será que reflictamos sobre o valor de tal herança. Aliás, não há que enganar quando vemos como dia a dia os Portugueses são advertidos, depreciados e humilhados por não estarem à altura das exigências de quem sabe o que é bom, belo e verdadeiro... Quando constatamos que até o essencial factor da nossa identidade colectiva, a língua portuguesa, mais do que maltratada, se vê posta ao serviço de interesses estranhos, como se alguém, ainda que sejam os órgãos do Estado, pudesse dispor do nosso património cultural ao seu talante.
Ao lembrar as datas de 1385 e de 1640 tive em mente que elas representam a força de um povo em defesa da sua autonomia e dignidade, animado daquele espírito que, sem prejuízo da singularidade de cada pessoa, configura a realidade colectiva. Gostaria por isso de concluir apelando a uma república aquilina, na lídima acepção da que tenha por símbolo a águia, a ave real que figura no escudo de Avis e os homens da Renascença Portuguesa, como alguns jovens de hoje, escolheram para simbolizar a altura, a liberdade e a lucidez que há-de guiar quem se propunha reconduzir uma sociedade alienada ao perfeito domínio de si mesma. Sem esquecer que a águia está associada a São João, o profeta da Jerusalém futura, que é como quem diz, da consumação do Reino de Deus na terra. Essa, sim, se há-de considerar a perfeita república, conforme à verdadeira monarquia; um mito, se assim quisermos dizer, mas na acepção de modelo supremo, que é o único molde adequado até ao ínfimo projecto humano.

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