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terça-feira, 11 de agosto de 2009

PENSANDO À BOLINA, 19

Pedro Sinde


A matéria de que é feita a pedra
Hoje, voltou a acontecer. Desta vez, ia no Metro; nos bancos ao meu lado iam pai e filho, este com uns seis anos. De chofre, pergunta ao pai: “De que é feita a pedra, pai?” Não consegui ouvir a resposta do pai, o que lamentei profundamente, embora o importante estivesse mesmo nas perguntas. E de seguida: “De que são feitas as flores?... e as pombas?” Pensei comigo que a criança ia perguntando à medida que ia vendo, mas não pude confirmar e fiquei intrigado pela hierarquia estabelecida naturalmente: do reino mineral para o vegetal e deste para o animal. É a partir desta “ascensão” que os evolucionistas fantasiam a “evolução”, como se fosse natural que o simples desse origem ao complexo se não tivesse já em si a complexidade. Mas o melhor ainda estava para vir.
A criança, chegada ao reino animal, deteve-se aí e perguntou de que eram feitas as lulas e de que eram feitos os peixes. Depois, para meu assombro, perguntou ao pai: “De que são feitos os nomes?” Agora sim, consegui ouvir o pai a perguntar: “o quê?!”, como se não tivesse percebido bem. O filho repetiu e o pai respondeu com um rotundo e exclamativo “Ó!”.

A Torre de Babel, de Pieter Brueghel, o Velho
Lembrei-me que Adão os nomes aos seres e ocorreu-me que esta criança, filha de Adão, já sabendo os nomes, pergunta agora pela substância. Como se um hemiciclo se fechasse entre o nome e a coisa. Os nomes das coisas decaíram, cruzaram-se numa confusão de línguas, já não temos a língua de Adão, naquele momento primordial em que a língua exprimia, como que em prolongamento subtil, a própria natureza da coisa. Desse tempo ficaram-nos ainda os nomes de Deus, nomes que alguns sábios temerários invocam em mantras, dhikrs, nembutsus, japas ou outras orações jaculatórias. A língua primordial ou as línguas primordiais estão, portanto, reduzidas à essência da essência; para lá disto já não existem. Ora, como perdemos o nome, perdemos o elo intermediário que nos dava o conhecimento íntimo da coisa e é por isso que aquele filho de Adão perguntava ao pai de que são feitas as coisas e até de que são feitos os nomes das coisas.
Esta sessão de metafísica enfiada numa pergunta lembrou-me o quanto é importante perguntar, mas mais até do que perguntar, o quanto é importante saber perguntar, isto é, conseguir estar disponível, livre, apesar de todas as distracções para que somos convocados a todo o momento, para o enigma magnífico do mundo, prontos a parar na estação da perplexidade. Felizmente, não ouvi as respostas do pai, porque há um momento depois da pergunta e antes da resposta em que, se estivermos atentos ao íntimo da nossa alma, sabemos que sabemos a resposta, sabemos que não a queremos ouvir, para não estragar o que sabemos. Como se diz popularmente: uma pergunta é meia resposta. É que parece que se não soubéssemos a resposta nunca poderíamos chegar a perguntar.
E de que é feita a pergunta, pai?

1 comentário:

  1. PERDIDO POR SER O QUE NÃO É

    O Homem está cansado do Futuro, porque perdeu o passado quando consultou o relógio e percebeu que as horas eram a mentira do tempo. O Homem anda por aí, perdido numa imensidão de perguntas sem ouvir as respostas da realidade em que não acredita. O que é a realidade? Quem sou eu? Uma realidade que ninguém conhece quando se dobra a esquina do tempo ou a transparência que flutua no caminho marítimo para a ignorância total? Será que tenho nome ou serei, apenas, um corpo que manifesta a incoerência do tempo que não se vive e a coerência que se vive para além da realidade que se expõe ao sol da noite? Se sou o Homem, onde estão as linhas da caverna que me esconde a luz do dia que quero abraçar? Tudo se tornou invisível ao Homem que sopra como o vento e não ouve as respostas do eco, em que se tornou o espaço que habita, fingindo que as dimensões do tempo, são túneis de paralelismos humanos, em que ninguém repara, porque a lucidez de quem nos inventa é um mero espectáculo de cruzes, em cemitérios de ideias telegráficas que nem os pássaros dos fios tecnológicos são capazes de reproduzir, porque a linguagem se reduziu à tempestade variável dos mortos que vivem encarcerados em espécies legítimas da ilegitimidade do tempo que nos devora com a tranquilidade da sociabilidade inútil. Onde estão os meus olhos? Onde está a raiz dos meus frutos? Onde está a peneira das palavras saudáveis? Onde está esta boca que reduz o seu argumento a um filtro de negativos que nunca serão positivados, porque a realidade é, apenas, a flor que murchou no jardim dos vácuos perfeitos? Onde mora o Homem que não tem nome, porque o perdeu na turbulência da sua inexactidão? A caverna é o olhar que lhe decora a nudez com impressões que digitalizam o funeral do expresso que viaja sem destino. Ó Homem, será verdade que és a mentira que se confere à morte? Há registos, há memórias, mas o passado que perdeste é a inglória do tempo que subverteste à conquista do Futuro, que é o teu cansaço. És o Homem, mas não sabes que és o Homem, porque perdeste o teu nome.


    Jorge Brasil Mesquita

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