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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 27 de agosto de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 26

Réstea
Pedro Martins

Em pleno labor da escrita, no transe de um intenso convívio com Teixeira de Pascoaes, eis a dúvida que emerge: deverei grafar réstea? Ou, antes, réstia, como, há muito, (e eu só agora o vejo) parece ser norma? A par da minha ignorância, aqui confesso que a primeira forma é, de longe, aquela que mais me agrada. Ainda ontem a fui casualmente encontrar, durante a leitura deleitada de um dos Contos Bárbaros do espantoso escritor duriense João de Araújo Correia (prometo cá voltar em breve, para vos deixar um apontamento sobre os seus Contos e Novelas, em curso de reedição na INCM).
Partilho com o grande Pascoaes a ideia de que o génio foneticamente grave da língua portuguesa, redutível a uma só letra – o e –, foi pervertido pelos ii que, a torto e a direito, lograram usurpar o lugar natural da segunda vogal. Tenho para mim que os ii são riso e sangue – o sol a pino e o diabo a sete! Uma coisa do meio-dia, portanto… que, por certo, não quadra com este nosso sentir brumoso e litoral, próprio de gente da finisterra, onde o sol sempre cumpre o suideicídio do seu ocaso. Sei bem que a fraqueza está do meu lado: não desconheço a importância significativa que António Telmo fundadamente atribui à vogal do meio.
Pascoaes diz que os ii são italianos como os àà são de Castela, mas na imensidão da Meseta é que eu punha os primeiros: lembram-me os cornos dum touro desembolado, correndo até à morte – eran las cinco en punto de la tarde – no redondel de Las Ventas. Ou um par de bandarilhas sangrando o dorso sacrificado do animal.
Com o vate foi diferente. Teve de lidar na areia do deserto. E bem sabia o que o esperava em causa própria. Calculo que, lá onde Deus o tenha para maior glória de ambos, o nosso poeta se amofine com as frechadas que lhe desferem – o que não raro sucede, sempre que alguém escreve Pascoais. Só não terá sido capaz de adivinhar que, ao Marános onde dissimulara o kippah, houvessem de enfiar um grande barrete, como quem tira um Coelho da cartola. Marânus – escrevem eles agora.

Outono, de José Malhoa: clique na imagem para a ampliar
Revertendo. Em que ficamos? Réstea, como eu pretendo, ou réstia, como manda o dicionário? Percorro o sabichão até à saída da entrada. O leitor terá a bondade de me acompanhar:
réstia
s. f.
1. Corda feita com ramas ou hastes entrelaçadas.
2. Uma dessas cordas com alhos ou cebolas enfiadas.
3. Feixe ténue de luz.
4. Pop. Corja; súcia.
andar ou meter-se de réstia: arranchar.


Ficou lido? Pois é célebre! Réstia, que sugere o que resta (o que ainda se tem) – como em uma réstia de esperança –, afinal não vem de resto. Ele há sobretudo cordas, cebolas e mariolas. Mas resta, desta réstia, um feixe ténue de luz, que é bem capaz de nos iluminar. Réstia é a luz que resta, à tardinha, ao crepúsculo, quando o sol se põe. Nem sequer se compõe com o arrebol das matinas, ainda e só a promessa de uma dádiva maior. Réstia é a luz que, outonal, declina. Só por isso é réstia. E é já réstea.

1 comentário:

  1. Belo texto, na forma elegante e no conteúdo engenhoso e subtil, questionando com poética argúcia a motivação das palavras.
    Reflectir desta forma é um admirável exercício, pondo em causa, obrigando a pensar, incomodando, ignorando a fácil resignação, abanando o "statu quo", recusando o (que parece) óbvio, mesmo se de Colombo...

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