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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 22

António Carlos Carvalho

Será que perdemos de vez a noção de silêncio?
Num estádio cheio, pede-se um minuto de silêncio em homenagem a um conhecido artista popular, falecido na véspera. Os jogadores curvam a cabeça e observam o minuto de silêncio, como fora expressamente pedido, mas a multidão nas bancadas, em vez disso, desata a bater palmas.
No funeral do mesmo artista, quando sai a urna, os presentes também batem palmas (alguns deles, pelo menos, confessavam momentos antes que não costumavam ir vê-lo nos teatros, só o conheciam da televisão).
Não sei de onde veio este hábito insólito de se bater palmas a um artista morto, só sei que nem sempre foi assim.Talvez porque outrora se reagia à morte pelo silêncio e não pelas palmas – os aplausos que não se deram ao mesmo artista quando ele estava vivo e bem precisava desses aplausos para se sentir justificado...
De facto, a morte, a perda de alguém, esse absurdo – continuo a acreditar que fomos criados para vivermos eternamente e que a condição mortal surgiu como um «acidente de percurso» -- só nos pode inspirar silêncio, o silêncio do choque e do espanto, estranheza, recolhimento, meditação.
É o que mostra, aliás, o famoso São Jerónimo de Dürer, no Museu Nacional de Arte Antiga (um museu que poucos portugueses frequentam se não houver lá exposições «mediáticas» ...)
Nunca aplausos – aplaudimos o quê, quem? A Morte? «Parabéns, morte, a tua gadanha cortou cerce o fio da vida a mais um» ...?

São Jerónimo, de Albrecht Dürer

Há em Portugal um défice de apreciação por aquilo que temos, tanto gente como património – e o património humano também é uma realidade. Recordo que no Japão existe o estatuto de «tesouro nacional vivo», atribuído a artistas e artesãos de excelência, por exemplo.
E como entre nós se alimenta a ideia, totalmente errada, de que «ninguém é indispensável», ligamos pouco ou até mesmo esquecemos o património vivo que temos enquanto dura, mas depois «canonizamos» e choramos com lágrimas de crocodilo aquele que morre, batemos-lhe as palmas que nunca lhe demos quando estava vivo e activo em cima de um palco.
Esta questão do minuto de silêncio (repare-se, apenas um minuto – e nem isso se consegue) é um sintoma preocupante do nosso estado de alma, individual e colectivo.
Se não fizermos silêncio, como poderemos ouvir o que o outro tem para nos dizer?
Como faremos a escuta do canto do pássaro, da água que corre, do vento nas folhas das árvores?
Se não houver silêncio dentro de nós, como escutaremos a voz de Deus?
Lembremo-nos daquele episódio extraordinário do profeta Elias no monte Horeb (I Reis, 19, 11 a 13):
«um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante dele, porém o Senhor não estava no vento; depois do vento um terramoto, mas o Senhor não estava no terramoto, depois do terramoto um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo um cicio tranquilo e suave. *Ouvindo-o*, Elias envolveu o rosto no seu manto (...).»

1 comentário:

  1. OS APLAUSOS


    O aplauso à morte é o aplauso à vida que nunca se viveu. Ninguém sabe se a morte é a vida ou se, pelo contrário, a vida é a morte. O silêncio que a vida contém é a morte vestida de urnas que se habitam sem os pregões e os anúncios da massificação popular. Todos gastamos os silêncios dos outros, brandindo os aplausos aos que desconhecem a realidade do desconhecido. E mesmo quando conhecemos o individualismo do seu colectivo, o silêncio é o sintoma da morte que se vive. É o aplauso nocturno do dia que não se descobre e o património incurável que a morte bebe, como se a vida fosse um copo de três. É o funeral dos aplausos que ninguém sabe aplaudir, nem nunca aprendeu a aplaudir.


    Jorge Brasil Mesquita

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