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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 24

















Na imagem, Auto-retrato de Almada Negreiros

A grande falácia

Alexandra Pinto Rebelo

Muitas páginas têm sido escritas tentando justificar a arte contemporânea. O engraçado destes discursos é que não argumentam a favor deste ou daquele tema, deste ou daquele material. Sabem que calcanhar têm de proteger, indo logo directos ao assunto. Afinal o que esses textos pretendem é provar-nos que aqueles objectos são mesmo arte e não uma outra coisa qualquer. Nós é que não o conseguimos compreender.

Um dos argumentos mais utilizados é, absolutamente, delicioso. E resume-se no seguinte: o mercado dos coleccionadores de arte está mais ávido do que nunca de produtos culturais cada vez mais complexos. Daí estes produtos, os objectos de arte, terem tendência a tornar-se mais herméticos para o público comum. Aquilo que, no fundo, nos estão a dizer é que as obras de arte contemporâneas exigem tanto do observador em termos cognitivos que são raros os possuídores de tais capacidades, imprescindíveis, para os avaliar. Simplificando ainda mais, aquilo que nos juram é uma coisa absolutamente simples: só os ignorantes não vêem que aquilo é, obviamente, arte.

Este argumento lembra fortemente aquele utilizado por Hans Christian Andersen no seu conto As Roupas Novas do Imperador. Os “grandes tecelões” recém chegados à cidade, conseguiam fazer um tecido mágico só visível para aqueles com uma super capacidade cognitiva, semelhante em tudo à requerida aos bons observadores actuais da arte contemporânea. Já que ninguém quer dar parte fraca, todos garantem ver o tecido. Por esta analogia de processos, teria neste momento de ir buscar o testemunho de uma criança que, perante um objecto de arte contemporânea, tivesse dito: “isto não é arte”. Não há crianças assim e, a haver, meteriam um certo medo. Nem tão pouco a sua afirmação teria algum peso neste campo da Teoria da Arte.

O que eu proponho é seguirmos um caminho mais simples, confrontando um objecto específico com a sua suposta complexidade. Peguemos no sapato de Joana de Vasconcelos, construído com tachos e tampas dos mesmos. Através da sua observação, guardamos três pontos fundamentais na sua mensagem- mulheres, cozinha e glamour. Agora, basta-nos formar sentidos lógicos com estes pontos. “As mulheres estão sempre divididas entre a cozinha e o glamour”; “As mulheres deixaram a cozinha e transformaram-se em glamour”; “Por muito que as mulheres tentem ser só glamour, têm sempre implícita a sua função ancestral na cozinha”. Qualquer destes argumentos de interpretação é válido.

Isto é complexo? Não me parece. Poder-se-á, no máximo, escrever um livro pequenino à volta do assunto, esgotando-o no final das primeiras páginas. A obra Las Meninas, de Velázquez, não foi feita para ser um objecto de arte complexo e, no entanto, já levou a que, sobre si, se escrevessem bibliotecas inteiras. O mesmo se poderá dizer, reduzindo o número de textos escritos, dos nossos Painéis de São Vicente.

Almada Negreiros escreveu uma frase que aqui faz todo o sentido: “As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca se acabam.” De alguma forma, a complexidade das obras de arte faz lembrar esta afirmação. As mais admiráveis são aquelas que nunca se acabam. São aquelas que permitem sempre leituras inovadoras, sabendo manter-se como um conjunto aberto de interpretações. Como fazer isso é um dos mistérios da arte, da verdadeira.


2 comentários:

  1. «Aquilo que, no fundo, nos estão a dizer é que as obras de arte contemporâneas exigem tanto do observador em termos cognitivos que são raros os possuidores de tais capacidades, imprescindíveis, para os avaliar».
    É a racionalização da arte. Uma pseudo intelectualização dessa mesma arte (claro que há excepções), pois o que a arte contemporânea deveria querer ver (ou recuperar) era o elemento simbólico, fosse qual fosse a técnica. Prefere ignorar o verdadeiro universal, para que o artista dito contemporâneo crie todo um código de interpretação perante o leitor da obra. Mas também adoça a situação pela ideia da obra-aberta e semelhantes, que é o público que faz isto e aquilo da mensagem. É a racionalização da arte em prejuízo do sentimento estético, mas depois falam no lado direito (intuitivo) do cérebro! Se o público é quem cria o sentido da mensagem artística, então o autor da obra não tem nada para comunicar. Aliás este conceito de arte, reflecte a mentalidade característica do nosso tempo: desprezar (prescindir) o superior e nivelando tudo por baixo, resolve-se o problema.
    Ainda hei-de chegar a tempo de ver uma plateia a dizer a um maestro para tocar desta ou daquela maneira a 5ª sinfonia de Beethoven, pois talvez o compositor não se importasse de ser deste ou daquele jeito. Isto já se faz noutros géneros de música, em estúdios, desventrando-a: alteração dos timbres, dos andamentos, compassos, etc. Esta atitude pode chegar a ser perigosamente compulsiva, como hoje se modifica, em segundos, o rosto de um ser humano numa fotografia, com um computador.
    Alexandra, é sempre bom ouvir o que disseram (dizem) Almada ou Lima de Freitas entre outros.

    Eduardo Aroso

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  2. Excelentes observações as suas, alicerçadas nas palavras dos mestres (aqui, é o caso de Almada e Lima de Freitas)

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