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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



domingo, 3 de janeiro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 11

Cynthia Guimarães Taveira



A Obra
Via agora imagens num livro sobre pirâmides, essas da América latina, de antigos povos. E lembrou-se desses estranhos rituais de sangue em que homens eram assassinados em nome de um deus. À medida que ia caminhando duvidava cada vez mais das grandes religiões, dos grandes aglomerados, das grandes massas. Mas talvez fosse apenas uma fase. Uma fase de questionamento. Para que serviriam essas grandes religiões que arrastavam multidões, e erguiam ídolos visíveis ou invisíveis, e erguiam mortos mártires, e queimavam com bombas e inquisições, e perseguições, e convenciam e convertiam e corriam sempre o risco de um fanatismo? Todos os fanatismos forçam a nota. Não amam, exigem amor. Que deuses e Deus eram esses que se associavam tão facilmente ao poder do carisma, da força, das armas, dos gritos secretos exigindo mais dos outros? Não questionava os deuses ou Deus porque não os conhecia na intimidade, e alguém conheceria? Questionava o valor das religiões quando, no final, restava o homem sempre nu, o mais indefeso ser dentro da natureza e também, o mais mortífero e o mais criativo. O divino, no meio desse caminho, nunca definitivo, nunca parado, incessante nas questões, estava na natureza como fonte de todos os males e origem de todas as virtudes. Para além dos deuses, que restava ao homem senão a natureza e a sua própria natureza? As religiões eram edificadas em símbolos que, por sua vez, sustinham os rituais, e tendiam cada vez mais a uma abstracção do divino, do politeísmo ao monoteísmo, da pluralidade de sentidos até ao sentido último inatingível. Mas esses símbolos estavam gravados na própria natureza. Sua geometria, seus animais, seus elementos, seus mistérios tão próximos, tão presentes e tão velados. A vida e a morte sempre pulsando no princípio e no fim. A perfeição intuída no centro da imperfeita natureza. Nada mais importava senão ela, essa natureza magnifica, capaz de tudo, capaz de em si conter tudo, até o próprio Deus, esse desconhecido misterioso. Homens vinham lembrar princípios éticos esquecidos, homens divinos ou divinizados em seguida, tornando-se, sem querer, os primeiros de uma nova religião. E assim nasciam mais massas cegas para o mundo, tendo olhos apenas para crenças que se unificavam no olhar de um único ponto, numa única luz, sem saberem que esta era em si mesma diversa..
A natureza permanecia indiferente a todos estes casos de amor dos homens por figuras, por ideias. E permanecia no seu mistério de tudo conter. O homem, indefeso, permanecia também no seu mistério de conter em si toda a natureza. Toda a natureza continuava a conter em si todos os modelos sociais possíveis: seus modos de viver, suas regras nos seus predadores, seus rituais de acasalamento, sua solidariedade ou não, e tudo isto sem uma consciência palpável. Essa consciência estava apenas no homem que a tinha como uma espécie de bónus por lhe ter sido dado o jardim do paraíso e suas árvores misteriosas, da vida, do bem e do mal e do possível conhecimento… Pensava em jeito de herói solitário que todas as religiões deveriam parar por instantes o seu percurso, tantas vezes fraudulentos e longe da verdade e da dignidade. Parar um pouco. Continuamos nus e indefesos perante a natureza e perante a verdade, assim parados nos deuses, parados em Deus que assim pára um pouco também, talvez para respirar ou suspirar… Se há a percepção no homem da perfeição e este é tão da natureza como do céu, esta, tal como ele, caminha para a redenção. O que rege este universo é a imperfeição, uma vez perfeitos passamos para outro, mais perfeito, e lá, talvez haja a possibilidade de um mais-que-perfeito, mas disso nada se sabe…. a não ser desses magníficos nomes de tempos de verbos como, por exemplo, pretérito imperfeito e sua noção de que o passado não é perfeito…
Assim parados, por breves instantes, numa marcha sem fim, talvez entendêssemos que há modelos culturais, tão diversos como aqueles latentes na natureza e que esta é apenas fonte de todos eles e fonte também da sua imperfeição. E talvez entendamos também que ao homem foi dado esse fogo destruidor e transmutador, de si e da natureza que o rodeia e o “como” nem sempre está nas imperfeitas religiões dos homens, apenas dentro dele e na sua proximidade ou não aos céus. O “como” está na Arte, aquilo que vai para além da própria cultura: se a cultura é tudo o que se acrescenta (e retira da natureza), a arte é tudo o que se acrescenta a uma cultura (e dela se retira), tornando o onírico matéria e despertando o onírico para a matéria, em vias de sonho subtil (não de sono), que se ergue em esferas acima em direcção ao Espírito perfeito tão intuído. As artes, todas elas: música, pintura, etc, e a suprema Arte Real, ou alquimíca, são o fundamento do homem que se diz religioso. E o homem religioso é sempre mais consciente de que qualquer massa de pessoas que funcionam em pensamento único face a uma religião.
Diz-se que Deus, numa tradição rabínica, criou já várias humanidades e que esta última não seria flagelada por uma catástrofe, sendo essa promessa simbolizada numa aliança que, por sua vez, foi simbolizada no arco-íris . E se fosse verdade? E se Deus, o demiurgo, ou o deus de mil faces do politeísmo, ou a força cósmica, ou chamem-lhe o que quiserem, tivesse mesmo criado várias humanidades numa tentativa de aperfeiçoamento do homem e da sua natureza envolvente e endógena? Será Deus o grande artista e daí sermos nós feitos à sua imagem e semelhança? De que nos servem as religiões se não existir uma consciência artística? Fundamentalmente, servem para passar o tempo, como um jogo de cartas que se limita a esgotar todas as possibilidades de probabilidades. O jogo em si não muda, nem as cartas. E não mudar não faz parte do espírito artístico e talvez não faça parte do espírito de Deus.
Assim parado, no meio do caminho, pegou numa flor, delicada, bela, quase-perfeita. “Assim seja a obra de todos nós… dentro ou fora das religiões“. Embora soubesse, que, como dissera António Telmo, num sussurro quase mudo, num jantar, em que vozes se confundiam com o barulho da televisão e o agitar dos talheres, “é necessária muita coragem para se ser religioso e não se pertencer a nenhuma religião”.

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