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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 38

António Carlos Carvalho
No dia 9, quando fomos a Vila Viçosa festejar os Reis, uma das coisas mais surpreendentes dessa jornada foi o encontro que João Tavares nos proporcionou com um estranho cruzeiro ali existente: uma cruz envolvida por uma grande serpente.
Ficámos todos visivelmente impressionados com essa insólita imagem. No meu caso, por razões também pessoais: pouco tempo antes tinha sabido da notícia da morte de João Marques de Almeida, editor das Edições Acontecimento, que em 1994 me publicou um livrinho no qual tentei «exorcizar» a minha repugnância por serpentes: «As Duas Faces da Serpente».

fotografias de João Pedro Secca: clique, abaixo, na segunda imagem para a ampliar

Há quem consiga até conviver com tais bichos ou pelo menos quem os considere tão normais como um texugo ou um coelho ou outro qualquer. Não é esse o meu caso. Basta vê-los num simples documentário televisivo para ter de desviar os olhos ou mudar de canal, tal é o incómodo, o nojo, que me provocam.
E, no entanto, não posso ignorar o resto: que este lugar da Terra foi outrora chamado Ofiússa, terra das serpentes; que a serpente é um símbolo próprio da nossa «Pré-História»; que a serpente é um símbolo bíblico fundamental; que o Pessoa escreveu sobre «o caminho da serpente», identificando-a com Portugal; sobretudo que a serpente, mas alada, como um dragão, faz parte das Armas de Portugal.
Ou seja, por muito que me custe, eu tenho de lidar com ela...
E foi por pensar assim que escrevi o tal livrinho, no qual procurei salientar a sua importância para todos nós e para os portugueses em especial. Confesso que a minha repugnância não desapareceu só por cumprir tal rito de «exorcismo»...

E eis que agora, em plena Vila Viçosa, tão ligada à casa e à dinastia de Bragança, me deparei com uma enorme serpente abraçando uma cruz...
Abraçar é o termo exacto, porque a tal serpente de pedra tem mãos, e tem asas, ainda que pequenas, e até mesmo um rosto que parece humano...
Creio que tão insólita representação só se explica se tivermos em conta um facto geralmente esquecido ou até mesmo ignorado por muitos: as Armas de Portugal, na sua plenitude, incluem um timbre que é uma serpente alada, uma serpente capaz de voar, ou seja, que não só ultrapassou a condenação do eterno rastejar como adquiriu (ou readquiriu?) mãos e asas que lhe permitem erguer-se para o céu.
Estas são as Armas atribuídas a Portugal pela lenda (de fundação) de Ourique e que foram mantidas na sua totalidade, com o tal timbre, até muito tarde, tendo depois caído no esquecimento.
Há quem julgue, erradamente, que a Heráldica é coisa de nobres e de prosápia de «sangue azul», sendo portanto desprezível (e efectivamente desprezada). Mas a Heráldica, ciência auxiliar da História, é essencial para se entender muito dessa mesma História, e sobretudo fundamental para entrarmos na compreensão simbólica do brasão – representação figurada de um destino individual ou colectivo.
Lembro que até mesmo os antigos pescadores da Póvoa de Varzim tinham o seu brasão de família, com o qual marcavam os seus apetrechos de pesca e que aparecia depois nas suas pedras tumulares.
Lembro que os pedreiros medievais faziam o mesmo com as suas marcas inscritas nas pedras das construções.
Lembro também a heráldica municipal, que ainda se mantém, quanto mais não seja por costume.
Isto para sublinhar que a Heráldica diz respeito a toda a gente, mesmo aos mais republicanos (eles que me perdoem...!)
E que o estudo da simbólica da Heráldica merece a nossa atenção dedicada. No caso de Portugal, a serpente alada, com as suas referências bíblicas evidentes ao bastão-serpente de Moisés e à serpente de cobre colocada sobre uma haste, aparece em verdadeira glória na profusão das Capelas «Imperfeitas» (na verdade voluntariamente inacabadas) da Batalha, autêntico templo de uma História do Futuro, de cariz messiânico. Basta ir lá e ver, ver com olhos de ver.
No cruzeiro de Vila Viçosa, a serpente desce para a terra, ainda se arrasta pela cruz. Tem asas mas incipientes. Talvez precise ainda de descer até ao fundo para depois abrir asas maiores e finalmente voar, um dia... quando?
Creio que devíamos estabelecer um diálogo simbólico entre este cruzeiro de Vila Viçosa e as capelas da Batalha. Para então podermos decidir o que queremos, e devemos, fazer: continuar simplesmente a rastejar, como agora fazemos – ou abrirmos as asas e voarmos, cada um de nós, todos juntos, como país? O brasão, ainda que oculto, está aí. Mas a decisão é só nossa.

5 comentários:

  1. A propósito da serpente, de símbolos e de antiguidades, também o brasão antigo (1275) ou selo da Câmara do concelho de Coimbra tinha uma serpente, facto que até Sá de Miranda refere e o próprio Gil Vicente escreveu «uma comédia em cujo enredo tentou explicar o nascimento e composição das armas de Coimbra». Isto no-lo diz D. Luiz Gonzaga de Lancastre e Távora, numa separata da revista Armas Troféus, de 1979. Depois, ao brasão da cidade foi retirada a serpente (cá para mim, coisas da Inquisição, muito feroz aqui em Coimbra).
    Já agora, alguém me sabe dizer onde posso adquirir o livro do António Carlos Carvalho «As Duas Faces da Serpente»?

    Abraços
    Eduardo Aroso

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  2. Meu caro Eduardo Aroso, obrigado pelo seu comentário, que abre outras pistas de estudo.
    O meu livrinho vale pouca coisa, nem sei se a editora ainda tem exemplares, mas a morada era esta:Rua Gil Vicente, 24 - Atelier 1300 Lisboa. Em 1994 ... Convém verificar se ainda é esta. Obrigado pelo seu interesse.

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  3. Muito obrigado pela sua informação e pela sua modéstia, embora não a vá aceitar (!), isto é, quando o Amigo diz «O meu livrinho vale pouca coisa», se valer -e assim deve ser - o que valem os seus livros, que eu já conheço (nomedamente aquela magistral introdução ao magistral livro do António Telmo «História Secreta de Portugal»), então o livrinho vale muito. Quem dera encontrá-lo!

    Um abraço
    Eduardo Aroso

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  4. Simples judeo-luciferismo: «O Senhor disse a Moisés: Faz para ti uma serpente ardente e pendura-a num poste. Todo o que for mordido, olhando para ela, será salvo.»

    Num, 21, 8

    Abraço!

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  5. P. S. Essa coisa do «voar» ou «rastejar»... dependerá em muito do apreço que se tenha pela grande revolução luciferina de nome Renascimento... Na Filosofia Portuguesa não será fácil... ;)

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