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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 33

António Carlos Carvalho

Só para encerrar o triste assunto «Caim»:
O jovem universitário, muito progressista e cheio de si, estando de visita à sua terra natal, foi visitar o velho rabi.
-- Sabe, rabi, descobri que não acredito em Deus.
-- Não faz mal, meu filho, Deus acredita em ti.
-- Não está a perceber, rabi, eu sou ateu.
-- Mas costumas ler a Torah?
-- Não, não me diz nada.
-- Mas ao menos estudas o Talmude...?
-- Não, rabi, essas velharias não me interessam.
-- Mas então, meu filho, tu não és ateu, és um ignorante!
Lembrei-me muito desta história da sabedoria judaica, ouvindo ou lendo o que se comentou a respeito da polémica criada em torno do tal romance badalado. Cheguei à conclusão (ou melhor, confirmei) que existe por aí uma grande ignorância, misturada com uma série de ideias feitas, a respeito dos textos bíblicos.
Lamentável, sobretudo, o profundo desconhecimento que tantos católicos revelam quando se trata dos que eles chamam «Antigo Testamento» -- é como se nunca o tivessem lido, ou então, se leram, não perceberam nada. Não perceberam, sobretudo, que Jesus passou o seu tempo de vida neste mundo a citar passagens do tal «Antigo Testamento» (que nunca chamaria assim, claro...). Incluindo o que constitui o essencial da sua mensagem: «amarás o teu próximo como a ti mesmo» -- que já encontramos no Levítico, 19, 18.
É essa lamentável ignorância que permite, como ouvi nestes dias, dizer que «o Deus do Antigo Testamento é cruel» (foi dito por uma intelectual católica e progressista, e de esquerda, aos microfones da Antena 2: a pobre senhora, coitada, nem sequer percebe que, admitindo a existência de dois deuses, o do Antigo e o do Novo Testamento, está a ser simplesmente politeísta...) ou que o amor só nasceu com o Cristianismo (afirmou um escritor prolífero nesse mesmo programa) – então e o amor de Abraham e de Sarah, de Isaac e Rebeca, de Jacob e Rachel (e de Léah por Jacob), de David e Betsabé, e o do «Cântico dos Cânticos», verdadeiro «santo dos santos» dos textos bíblicos...?

Abraham, Sarah e o Anjo, de Jan Provost

Como é possível ignorarmos os nossos textos fundadores?
Eis um bom retrato da nossa época: tantas bibliotecas, em papel e na Internet, e tanta ignorância – agora sem desculpa de não termos acesso fácil às fontes.
Entretanto, o que escrevi antes suscitou um comentário do «Pedro» sobre a confusão actual entre símbolo e sinal e a possibilidade de vivermos hoje a realidade do símbolo, nomeadamente enquanto dominador da pulsão predadora.
O que me faz lembrar o meu encontro com o universo do simbolismo.
Corria o ano de 1970 e eu vivia uma crise de agnosticismo (pois é, ninguém é perfeito...). O meu amigo João Carlos Alvim passou-me um livro e disse-me: «Tens de ler isto» O livro em questão era «Symboles fondamentaux de la science sacrée», de René Guénon. Li-o e a minha vida mudou – de repente, graças à descoberta do símbolo, tudo fazia sentido.
Depois li a obra toda do Guénon, estudando-a atentamente. E a seguir passei para outros autores da mesma linha de pensamento tradicional, entre eles o importantíssimo Luc Benoist. Uma das suas obras, «Signos, Símbolos e Mitos» (Edições 70) escrita a partir da descoberta de Guénon pelo próprio Benoist, é igualmente essencial para entendermos o que está em jogo no mundo do simbolismo – e na sua verdadeira chave, segundo o mesmo Guénon: a teoria do gesto.
Escreve Luc Benoist:
«Considerada na sua concepção mais alargada, a teoria do gesto postula a reintegração da continuidade a todos os níveis de um mundo que a física quântica apresenta como dominado pelo descontínuo. Ela restabele um elo de solidariedade virtual entre estados distintos, sobretudo quando o gesto inicial se transforma em ritmo pela sua própria repetição. Porque a acção, imediata por definição, produz os seus efeitos de modo sucessivo e só se liberta do provisório graças ao ritmo que comanda os gestos, os ritos e os símbolos. Existe, diz Guénon, identidade entre o símbolo e o rito. Não apenas por qualquer rito ser um símbolo realizado no tempo, mas porque, reciprocamente, o símbolo gráfico é a fixação de um gesto ritual.»
Admito que esta compreensão do símbolo não seja para todos – nem sequer para os que tinham a obrigação de entender o que está aqui em causa, religiosos e professores de simbolismo na universidade – a uma dessas professoras, aliás muito conhecida pelos seus trabalhos sobre a tradição hermética, ouvi-a eu defender que o símbolo é uma criação meramente humana (como o sinal de trânsito, perguntei eu?).
Com o decorrer dos anos, fui-me afastando de algumas ideias guenonianas e mergulhando mais no perene universo bíblico. O que me leva agora a recordar, por exemplo, que Deus explica a Caim que o mal está acocorado (como um predador à espreita) à sua porta e que ele tem de saber dominá-lo. De facto, a tendência ou inclinação para o mal encontra-se dentro de cada um de nós (como a do bem) e compete-nos saber como a devemos dominar.
Por outro lado, em matéria de simbolismo, podíamos citar o episódio do não-sacrifício (ao contrário do que se costuma dizer) de Isaac: Deus pede a Abraham que lhe ofereça, que «faça subir» o seu filho único, bem amado, e Abraham julgar ver nesse pedido uma ordem, e nessa ordem a obrigação de fazer com Isaac o que outros pais, de outros povos vizinhos, faziam com os seus próprios filhos: matá-los e oferecê-los aos deuses.
Claro que Deus está apenas a pedir a Abraham que se desligue do seu filho tão desejado (por Abraham e por Sarah) para que ele, Isaac, possa libertar-se dessa atadura paternal e seguir o seu próprio caminho.
Mas Abraham imagina o pior: leva o filho ao alto do monte, ata-o (liga-o) e quando se prepara para desferir o golpe da sua faca de pastor, um anjo suspende-lhe o gesto e indica-lhe um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos.
E assim, de uma maneira simbólica, se deve encerrar a era dos sacrifícios humanos, e mais ainda a dos infanticídios, transferindo o sacrifício para os animais.
(Diga-se de passagem que «sacrifício» ou «holocausto» são palavras com outras conotações bem diferentes das que contém o «korban» hebraico, «oferta de gado» feita subir ou aproximar de Deus. E que a tradição judaica nunca fala de «sacrifício» mas antes de «atadura de Isaac»).
Eis um bom exemplo da importância do simbólico como dominador do tal instinto predador a que todos estamos sujeitos quando nos esquecemos da nossa condição de seres humanos a quem foi dado como norma: «Tu não assassinarás». E ainda mais: «tu escolherás a vida».
Mas claro que nestes tempos em que vivemos, com tanta confusão de imagens, de sinais, de palavras, com tanto esquecimento ou ignorância dos textos fundadores, nestes tempos de «tudo é permitido», entrar no universo simbólico é muito mais complicado e arriscado do que viajar para outro planeta: arriscamo-nos a descobrir que este mundo que fizemos, nós, todos cheios de direitos e de liberdades, mas de nenhuns deveres, está virado de pernas para o ar. E que seria necessário, tal como Abraham, sairmos daqui, deste estado das coisas, e irmos para o lugar que Deus nos indicar.
Ou seja, irmos para nós próprios, ao encontro do propósito para o qual formos criados.
O simbolismo continua a ser uma aventura, uma descoberta, uma demanda, certamente uma das mais importantes. Mas onde estão os novos argonautas, os Cavaleiros do Amor?

2 comentários:

  1. É essa lamentável ignorância que tem lavrado o chão do anti-semitismo, e que Saramago bem denunciou, ao afirmar que «Caim» talvez ofendesse mais os judeus que os católicoa.

    Aconselho vivamente a leitura de «Caim»... uma obra edificante, de grande clareza teológica, onde se pode ler Eva a explicar ao anjo Azael que diarreia e caganeira são a mesma coisa, enquanto este lhe apalpa as mamas!

    Esta obra de Saramago é uma das piores imbecilidades de toda a literatura portuguesa. Só a senilidade a pode já justificar.

    Assim tenha tempo, vou também dedicar umas palavras à bosta que me custou 15.21 euros e me levou 2 telenovelescas horas a ler.

    Abraço a todos!

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  2. Cada Cavaleiro do Amor está no seu posto. Esperando a chamada para a dita aventura.
    Mas a questão que coloca, pode e deve, a meu ver, ser posta ao contrário: só em plena peregrinação conjunta de aspirantes é que podem estes verdadeiramente conhecer-se uns aos outros e perceber quais os aptos a vencer o ego. A viagem cria, pelo contacto humano intenso que provoca, a 'fricção' de almas (para usar um termo recente do Telmo), da qual emergem os argonautas. Que sejam francos e sem reservas. Enfim, «Partir!»

    Cordialmente,
    Pedro

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