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quinta-feira, 2 de julho de 2009

PENSANDO À BOLINA, 18

Pedro Sinde

O homem que assobia
Creio que em todas as terras há um “homem que assobia”. Ele passa nas ruas, sempre de humor equânime, mãos nos bolsos, passo vagaroso e, invariavelmente, a assobiar. É como se nada o afectasse, como se tudo sempre estivesse “bem”. Olhando, dir-se-ia que estamos, coisa tão rara que é fonte de inveja constante, perante um homem feliz. Por que razão assobiará aquele homem? Há um aqui onde vivo que vejo, de longe a longe, a passear (é, pelo menos, o que parece) junto à praia; não olha para nada à sua volta, o olhar está dirigido para um vago e remoto horizonte e assobia continua e ininterruptamente. Gosto de o ver passar. É impressionante, convenhamos…

Um destes dias, ao fim da tarde, regressava eu do trabalho para casa, ele sentou-se no metro num lugar perto de mim. Sempre o mesmo olhar, sem se fixar em ninguém nem em nada, a não ser de passagem; o assobio, lá estava, mesmo dentro do metro e sem reparar em quem estava à sua volta. Enquanto o observava discretamente, sondando que tipo de alma era aquele, ia magicando numa espécie de “homem-pássaro”. E o assobio ressoava. “Será que ele está a pensar em alguma coisa, ao mesmo tempo que assobia?” – ia cogitando, enquanto observava a expressão do olhar sempre tentando sondar por onde vagueava aquela alma. E o assobio ressoava. “É como se fosse mesmo um pássaro” e a ideia era bela. E o assobio ressoava. Parece, no entanto, haver um quê de indiferença, uma certa fixação “egoica”, por assim dizer, uma capa com que aquela alma se protege do mundo. E o assobio ressoava. Indo mais longe, parece haver um fundo de medo, um medo subconsciente, “primitivo” e ocorrem-me aqueles homens que só sabem estar com outros contando anedotas ou aqueles que só falam de doenças. E o assobio… No fundo, são pessoas medrosas que se envolvem numa capa colorida, como o anedotário, escura, como o doençário, ou musical, como o assobiário.
E o assob… Irra!, que o assobio irrita! Não se pode estar ao pé de um homem destes. Entranha-se-nos aquela melodia num lugar da alma e fica por ali a zunir dias a fio!
É bela a ideia do “homem que assobia”, o “homem-pássaro”, mas a sua presença é insuportável. Nós apreciamos muito o longe, mas não suportamos a presença uns dos outros: enviamos dinheiro para os desgraçados de África, mas não damos a mão ao mendigo ao nosso lado; adoptamos um “oriental”, mas não o filho do vizinho; gostamos muito de “espiritualidade”, mas não mudamos de vida por causa dela. Nós amamo-nos uns aos outros, certamente, mas só quando pensamos nisso, mas só de longe. Creio que a “queda” nos separou e tornou possíveis frases como esta de Sartre, ao dizer que o “inferno são os outros”. Esta frase corresponde com exactidão ao ponto máximo de decadência do ser humano; Hitler ou Estaline concordariam inteiramente com Sartre, não é curioso? Sim, Sartre diria que, apesar de serem “inferno”, precisamos dos outros para cumprirmos o nosso projecto existencial, mas também os dois criminosos, à sua medida, “precisavam” dos “outros”. É este o aspecto negativo do “heterogéneo” em que vivemos e, por isso, Sampaio Bruno sabia que o homem aspirava no seu íntimo ao “homogéneo”, mas, ao contrário do francês reticente, Bruno afirmava que o “eu” é o último Satã: o inferno, portanto, somos nós; só enraizada em nós qualquer mudança pode haver, por transmutação do demónio que somos em homem e do homem em anjo.
E o assobio que agora não me deixa…

2 comentários:

  1. Longa conversa ao telefone com um amigo no outro dia: "o Inferno são os outros, mas o Demónio somos nós; e é difícil evitar uma certa vaidade na constatação disso; neste mundo predatório em que vivemos, é precisa ainda alguma forma de inteligência superior, ainda capaz de algum rasgo de lucidez para o constatar". O meu amigo é um comediante, acha que devíamos fazer um filme disto. Apenas porque seria mais uma oportunidade de ser rir de si próprio. Não para se sentir acompanhado nas misérias... talvez mais um teste à paz podre em que vivemos. No decorrer da conversa, o meu amigo confessou-me que sempre que se deita tem pesadelos com a vida que leva. Só me pude rir e admirá-lo. Confessei-lhe por minha vez que quem me dera ter os pesadelos dele: é que quando me deito para dormir não é pesadelos que tenho: passo o tempo a sonhar com a minha "outra" vida, da qual é sempre um pesadelo acordar. Acho que o homem dos assobios, se pudéssemos conversar, me admiraria, tal com eu admiro o meu amigo.

    Paulo.

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  2. E ainda sobre uma certa personagem do Sartre... ah! isso fica para depois...

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