(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 30 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 3

Carlos Aurélio


3
A imaginação criadora é propícia a lançar as almas livres na mais bela das orações: a convergência das mónadas ─ unidades únicas, reflexos do todo universal ─ propõe e clama pela fraternidade das criaturas sustentadas no amor, o fogo criador. Orar é convergir para o alto. Oraram os nautas que Camões fez desembarcar na Ilha do Amor enquanto rezava nas estrofes d’Os Lusíadas. Os portugueses foram épicos não por chegarem à canela e à pimenta em Calecut, mas por terem buscado as mónadas pela via do amor. Viu assim António Telmo[1] e por aqui vislumbramos a realidade imaginativa da Senhora da Saudade na obra de Pascoaes, por exemplo, e até aceitamos que Balzac tenha realmente visto Eugénia Grandet em aparição junto à sua escrivaninha, enquanto escrevia o romance que dava vida à personagem. E também que Flaubert tivesse que recorrer a que lhe lavassem o estômago em urgência hospitalar, para lhe expurgarem o mesmo veneno “imaginado” com que matou Madame Bovary. A imaginação cria realidade de alma, sendo a alma muito mais que energia mental, transcendente à psique deitada e exposta no divã psicanalista. A alma não se reduz a um canto da memória, não se confunde com a consciência. Ela tudo anima e envolve. O que de nós vamos conhecendo é tão só, apenas e sempre, uma ténue figura exterior em busca da forma eterna que nos faz existir. Temos forma única e somos mónada.
Dito isto, e isto dificilmente pode caber em desenhos desanimados, importa que nos apercebamos da decadência no romance por via da mera fantasia sensitiva. «Ceci tuera cela» ─ a TV matará o Livro, depois do Livro ter debilitado a Arquitectura.

Manoel de Oliveira
Titubeiam em lucidez os que optam pela quantidade em desfavor da qualidade e assim não reparam que a Banda Desenhada contraria a essência da Iluminura antiga. As imagens que se abrem à luz dos símbolos faíscam na obscuridade dos textos sagrados e, impondo um hieratismo, mantêm o mistério, enquanto a sucessão desenhada condiciona e paralisa a alma que verdadeiramente deseja ser criativa. Basta que nos lembremos das Bíblias em bandas desenhadas para crianças para avaliarmos a desgraça dos estragos. No fundo, continuam as palavras a determinarem a eclosão da liberdade em arte e, possivelmente, as artes plásticas remetem sempre para legendas implícitas. Para subir da percepção pelos sentidos até à emoção pela alma, as palavras serão sempre forças ou virtudes no mundo da relação. Isto é tão evidente quanto poderoso nos filmes de Manoel de Oliveira ou noutros cineastas «simbolistas» como Federico Fellini ou Win Wenders, e muito mais na pintura medieval. Certa vez Manoel de Oliveira, justificando a um jornal porque filmava tantas vezes a «vida dos ricos», aduziu que o fazia em busca da verdade, pois sendo «ricas» as pessoas que melhor conhecia só a verdade lhe interessava. Manoel de Oliveira quis dizer que prefere filmar a alma humana em vez da moda ideológica. Há quem filme a suposta pobreza à superfície para se fazer aos prémios que os ricos e os bem-pensantes gostam de atribuir. Aliás, o amor pelos pobres não suporta o facilitismo sentimental: dar de comer a um pobre em nossa casa terá o seu valor, mas amá-lo impõe sentar-se com ele à sua própria mesa, junto à sua miséria. Em cinema, o absurdo da acção pela acção no plano físico, resulta na mais cabal inacção de alma. O estilo «sexo e porrada» à moda de Hollywood nasce da fantasia sensitiva, a qual, fazendo descer as personagens a bonecos sem alma, abre depois caminho aos desenhos desanimados. O mesmo em literatura.

A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci: clique na imagem para a aumentar

Falando em literatura não resistimos a desmontar a colagem que os escritores de sucesso foram fazendo paulatinamente ao cinema, e até, à televisão. Quando a narrativa literária prescinde dos tropos que lhe são próprios, são as palavras que perdem a braveza pura que as distingue como fonemas em busca da luz. Tomar palavras por convenções ou simples mensagens é matar-lhes a forma pela figura, secar-lhes a alma, desistir da poesia e do símbolo. Muito do que se escreve cai na sedução da montagem cinematográfica, em clara inversão de potências. Sendo legítimas as relações entre as várias expressões artísticas, a essencialidade do Desenho, por exemplo, há-de sempre precisar da linha, a Pintura, da cor. Vem isto a propósito desse best-seller do embuste recente que foi O Código Da Vinci. O autor, Dan Brown, movido pelo facilitismo contemporâneo que faz da Igreja Católica pele de tambor apetecível para todo o zurzir, urdiu um thriller em texto escrito, bem apropriado portanto à sensitividade das multidões, cujas fantasias são moldadas pela televisão. A eficácia saiu garantida, se bem que literariamente não passe de zero absoluto. E, mesmo quanto a eficácia narrativa, há obstáculos óbvios que aqui rememoramos a esmo: o fresco que está em Milão, A Última Ceia de Da Vinci, é dele, de Da Vinci, não foi pintada por Cristo e, seja o que for, é apenas uma interpretação de um artista, não o absoluto da Verdade; e se, nessa pintura é de facto Maria Madalena que está ao lado Jesus, isto congeminado a propósito da sua figura imberbe, então, o que fez o pintor de S. João, o mais jovem dos discípulos? Estando treze à mesa, contando com Madalena, terá portanto faltado um conviva à Última Ceia? Entre os braços de Jesus e de Madalena o escritor americano vê um vazio natural que logo transforma em “V” esotérico, forma e símbolo do Graal e do sexo feminino. Com este critério aplicado a quaisquer duas figuras sentadas a uma mesa, meu Deus!, quantas imagens da arte mundial ocultarão o Graal?! Enfim, cansa expor o óbvio. Aliás, Dan Brown, confessa o seu propósito quando substitui o nome do pintor e de Mona Lisa pela frase anagramática do seu enredo: «O, Draconian devil! Oh, lame saint!». Com o “O”, prévio e invocador, claro!

Antecedentes: 1.ª parte; 2.ª parte
(continua)
____________
[1] ANTÓNIO TELMO, Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Guimarães Editores, 1982.

1 comentário:

  1. OBJECTIVAS SEM OBJECTIVOS

    Não sei quem são Camões, Pascoaes, Balzac, Flaubert, Manoel de Oliveira, Fellini, Win Wenders, nem o que é banda desenhada e na maior parte do tempo, não sei quem sou, embora sinta que os meus olhos são objectivas que filmam a objectividade, ainda que reconheça, que nas estrias do tempo não sei por onde anda o sinal que me declare objectivo. Desconheço o Brown, a Mona Lisa e não sei participar nos enigmas sintéticos da Última Ceia, porque me esqueci da linguagem que nunca aprendi. A memória que me tem construído esta vida de sombras, é feita com o diário das objectivas
    que tem seguido os percursos sombrios de Patrícia Highsmith, onde se descobre na profundidade da personalidade humana que todos elaboramos os quadros da simpatia criminal que nos liberte dos traços amargos que nos desenham às vidas daninhas das rotinas diárias. Todos aspiram à glória dos seus 15 minutos, mas desconhecem que a fama é filha dos “Ratos e Homens” que Steinbeck roeu aos ossos dos que são tudo o que não o sendo, são. Hoje há ratos que são a comunicação dos homens que sopram ao vermelho da “Beleza Americana”, a chuva da neve que cai, ao cairmos todos na miséria humana da riqueza que nos trai o mais ínfimo dos sentimentos. E as objectivas, que são os olhos da crueza humana, querem falar do sentimento que é o fogo do qual se alimenta os fotogramas das verdades que são mentiras e das mentiras que se comem à ceia dos que lendo o que não lêem, provam que há verdades que se olham nas cores e nas palavras que povoam as falências racionais das filmagens, que objectivas semelhantes às minhas, encontram nas encruzilhadas, as cruzadas que se empreendem como pipocas de Futuro. Eu conheci Bilal, quando dobrei a esquina do tempo e recolhi pedaços de viagens à negação humana que se espalha por aí, como uma das pragas do Egipto flutuando ao sabor das objectivas e dos objectivos dos “Dez Mandamentos”.
    Eis a pobreza destas objectivas que ao não amanhecerem o sentido estético das suas filmagens, procuraram converter a ignorância do estado puro na centelha de um processo em que todos mergulhamos porque somos poeira da mesma estrada por onde todos passamos sem que demos por isso.
    Como ponto final resta-me o “J´Accuse”.

    Jorge Brasil Mesquita

    ResponderEliminar