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quarta-feira, 29 de julho de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 2

Carlos Aurélio


2
«Se a razão é, efectivamente, o que distingue e separa a humanidade da animalidade, a imaginação é o factor divinizante» ─ eis uma frase esquecida de um filósofo português propositadamente esquecido, Álvaro Ribeiro, e que aparece precisamente na abertura do capítulo A Imaginação na sua obra maior, A Razão Animada.[1] Quando nos demitimos de pensar, quando também desistimos de imaginar, ficamos presos nos rudimentos da razão prática que, por utilitária, pouco mais movimenta que o resultado dos sentidos, esquematiza apenas volições numa espécie de desenhos animados entre emissores e receptores. Exercida sem mais, anula o vasto mundo interior da alma, fabrica um mundo onde a fantasmagoria febril impera. Razão prática é já dizer muito, pois há nesta um mínimo pensável, mais vale exprimi-la por fantasia sensitiva, reduzida que fica ao sensível.
No vértice oposto pode a imaginação aceder ao mundo do espírito e aí será criadora, porque fecundada pelo poder verbal. Dizemos verbal aduzindo a Verbo, tomando por ele a porta para a razão teórica ou contemplativa que a liberdade, a intuição e a inteligência bem podem ter a graça de despertar. Toda a sensação pode, se decantada pela atenção inteligente subir a emoção superior, toda a experiência pode ser estética para se transmutar em metafísica, numa escala ou numa escada em degraus de palavras e de silêncios, numa evolução do egocentrismo físico e animal até à fraternidade sublime, lugar de convívio do espírito amoroso entre os seres. Tudo tem alma, até as ideias. Nessa rarefacção de montanha em que o ar é frio e lúcido, longe do sentimentalismo quente e húmido que os pântanos exalam, abrem-se portas à imaginação criadora, factor divinizante que aproxima o homem do Criador. Medianeira entre a fantasia sensitiva dos baixios e a imaginação criadora quase alpina, lampeja aqui e ali a razão estética, capaz de fazer eclodir a imaginação animada, designemo-la assim. A imaginação animada activa-se naquele que inicia o caminho da purga sensorial, enquanto se entrega à sobriedade de meditar as teses superiores que outros já contemplaram. Apontando ao alto treina-se o olhar, apura-se a alma, dá-se pelo poderoso silêncio do Mistério. Esta é a razão porque as religiões ensinam a combater os vícios pelo exercício das virtudes. No fundo, tudo começa nas nossas imagens porque nelas habita a nossa alma, dentro delas vivemos, toda a acção reclama imaginação seja como meta ou como rescaldo e assim se pretende exercitar a imaginação animada. Faz falta imaginar “bem” para se bater à porta do Reino. É aí que são decisivos os símbolos, postos nesse vazio de silêncio aberto pela purga, símbolos dos quais se avistam e ocultam as paisagens de neblina que escudam a santa teoria, lugar do espírito de onde emana a graça das ideias puras.
Nos símbolos se centra a grande luta pelo domínio imaginativo que conduz a humanidade corrente, símbolos que são sementes vivas nas almas humanas. Os símbolos não são desenhos ou esquemas, não são alegorias ou bonecos, ou melhor, passam a sê-los se não tivermos mais nada. A vida simbólica activa-se continuamente com o sangue etéreo da nossa imaginação. «Ceci tuera cela» ─ eis a evidência que Victor Hugo pôs no seu romance, um belo livro impresso que ajudou a acabar com a arquitectura simbólica. Falamos pois dos vastos horizontes da alma, apetece dizer, do domínio do Império do Meio, dando por símbolo a grandeza de territórios orientais onde nasce o sol da subtil deambulação das imagens que nos movem e nas quais nos movemos. Os sonhos, os sonhos enquanto dormimos, são uma das evidências do exercício da imaginação animada e que, aliás, sempre assinalam o real estado anímico que nos move ou tolhe.

Leonardo Coimbra
Cada época é a sua imaginação. A actual era cosmonáutica mostrou-nos a Terra como uma esfera azul a vogar no espaço, na qual um poeta bem poderá ver uma bola de sabão sideral soprada pela imaginação dos deuses; mas é mais provável que o frenesim do futebol faça descer a mesma esfera até aos verdes relvados, o que é mais realista já que tudo sacralizamos no altar desportivo. Se em tradução quase literal por futebol disséssemos o espectáculo do pontapé, logo veríamos onde estacionou a nossa fantasia sensitiva.
Não nos desviemos. Tudo tem alma e tudo pode mudar, se activarmos a percepção do mundo como viva e convergente sociedade de mónadas ao modo do Criacionismo[2] de Leonardo Coimbra: tudo é alma em busca de correspondências, desde os minerais ao mundo vegetal e animal, no humano e no angélico, nos elementos e nos princípios, tudo converge em escala hierárquica até ao Espírito criador. Nada está isolado, tudo vem e vai para o uno, tudo são seres que se não perdem no homogéneo, antes ganham expressão única e multiforme, tudo verte para o Uno. O Universo clama. Nesta ascensão vital, cada percepção física pode ser animada até à experiência estética, domínio da alma de onde se activa e invoca a razão teórica. A intuição virá. A imaginação animada medeia e labora até às emoções depuradas, útero ou antecâmara da imaginação criadora, acaso se dê a hierogamia entre alma e espírito. É deste género de fecundação que emergem as obras maiores de poetas e de criadores, de místicos até, pois todo o místico não pode deixar de ser o poeta abismado no silêncio que o divino lhe impôs.
Mas não nos desviemos. «Ceci tuera cela» ─ a TV matará a Imprensa.

Antecedentes: 1.ª parte

(continua)

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[1] ÁLVARO RIBEIRO, A Razão Animada, reedição da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com posfácio de Joaquim Domingues, Lisboa, 2009, p.187.
[2] LEONARDO COIMBRA, O Criacionismo (Síntese Filosófica), Lello & Irmãos, Vol. I, Porto, 1983.

1 comentário:

  1. DA IMAGINAÇÃO À CRIAÇÃO OU VICE-VERSA

    Sou filho adoptivo da imaginação. Sou imaginação. Imagino sem me imaginar, porque a criação de tudo o que se imagina é um nano da memória que o Universo conserva em seu poder, no seu acto de criar o que a criação imagina, imaginando esta poeira cósmica, em que cada um de nós, é um simples fragmento do Cosmos que se imagina para além de toda a imaginação que é um concerto de criação pura. Há criação sem imaginação? Haverá imaginação sem criação? Ou serão elas a fecundação uma da outra ou a outra da fecundação que nos eleva a razão e à ascensão de um viajante, que descobre a cada passo que cria, a indisciplina imaginativa que disciplina o acto de criar o êmbolo cósmico que nos teoriza os fragmentos racionais do irracionalismo, que encontra em cada uma das esquinas do seu fascínio, os espaços dos bonequeiros humanos que brincam com a imaginação do absurdo, criando a simbologia do seu desastre organizado. A imaginação que todos nós somos, coloca-nos nas tiras de uma banda, criada pelas ilusões de uma racionalidade que destrói à Humanidade as cores naturais da beleza que foi criada pela imaginação de quem nos pintou o movimento, em que todos rodamos, sem que se perceba que a animação deste Universo, em estado puro de imaginação criativa, seja o maquinista do livro que vai sendo impresso, sem que a realidade da nossa racionalidade de imaginação criativa se espante, quando percebe que somos apenas o microcosmos da neblina que nos veste a invisibilidade da imaginação, que não nos cria imaginados, porque somos filhos da irracionalidade que nos criou a imaginação da criação mal criada. Eis-me filho adoptivo da imaginação.


    Jorge Brasil Mesquita

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